sexta-feira, 17 de maio de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Tal mãe, tal filha

Aparecido Raimundo de Souza

Quando não se pode dizer a verdade, mas se diz algo semelhante à verdade, não se está traindo a verdade”.
José Mauro de Vasconcelos – escritor. Autor do livro “O meu pé de laranja lima”.


O TELEFONE TOCOU INSISTENTEMENTE na residência da senhora Viviane Cardoso de Godói. Ao ouvir o som do aparelho se destrambelhando, fez sinal para que a sua filha Tati, de cinco anos, que tomava seu café matinal, atendesse. Antes que a menina tirasse o auscultador do gancho, a mãe insistiu com veemência para que a pequena dissesse a quem quer que estivesse do outro lado da linha (ainda que a figura do papa ou do presidente da república), não importava quem fosse, ela não se encontrava em casa. A guria, contudo, cara de poucos amigos, sem entender bulhufas, contestou:

- Mas a senhora está aqui, mamãe. É feio mentir.
- Faça o que eu digo e não faça o que eu faço. Eu não estou. Não está vendo que eu saí cedo?
- E a senhora foi aonde mamãe, às oito e meia da manhã?
- Invente uma desculpa qualquer. Seja criativa. Sei que arranjará uma boa desculpa. Atenda logo essa porcaria. A campainha dessa droga me irrita os tímpanos e me tira do sério! Vamos, Tati, se mexa... não estou pra ninguém. NINGUÉM!

A menina obedeceu, o semblante fechado:
- Alô?  Bom dia. Quem é?
- Bom dia, aqui é o Pedro das “bugigangas”. Dona Viviane se encontra?
- Não.
- Saiu?
- Mais ou menos...
- Como, mais ou menos? Ela está ou não?
- Não sei não senhor. Dona Rosa, a vizinha aqui do nosso lado esquerdo acabou de me dizer que ela foi abduzida.

- Não entendi. Foi o quê?!
- Abduzida.
- Abduzida?
- Foi o que eu disse.
- Meu Deus, que absurdo. A sua vizinha falou isso pra você?
- Sim senhor...
- Essa senhora que disse essa barbaridade está aí do seu lado? Deixa eu falar com ela. Passe, por gentileza, o telefone. É urgente.

- Não senhor. Dona Rosa deu meia volta e correu para avisar aos outros moradores próximos...
- Mocinha, como é o seu nome?
- O meu?
- É.
- Tati.
- Muito bem, Tati. Lindo nome.
- Obrigada. Foi papai quem escolheu. Se fosse pela vontade de mamãe eu seria batizada Sara.
- Quantos anos você tem, Sara?
- Eu? Cinco. E não é Sara, é Tati.

- Perdão, minha jovem. Tati. Legal. Nossa! A mim está dando a impressão de ser uma garotinha inteligente, criativa e extrovertida. Pretende ser o que quando crescer?
- Olha seu Pedro, estou pensando em Física.
- Professora de educação...?
- Não, física mesmo. Gosto de estudar as coisas absurdas.
- Entendo! - Minha linda, pegando o gancho desse assunto, acaso saberia me dizer, em poucas palavras, o que eu, particularmente, poderia deduzir dessa expressão “abduzida?”. Confesso minha criança, até agora, essa coisa toda é muito nova e desconhecida para mim...

- Saberia sim senhor.
- Estou pasmo! Vá em frente. Sou todo ouvidos. O que é ser abduzida?
- O senhor está fazendo hora com a minha cara. Parece até o tio Pequinês. Tio Pequinês não me leva a sério!
- Quem é esse tio Pequinês?
- O irmão cachorro de meu pai.
Risos.
- Tá bom. O que significa ser abduzida? Juro a você, minha curiosidade não é outra senão a de aprender, claro. Hoje em dia adquirimos conhecimento com os mais novos. Essa juventude tem futuro.
- Tá bom. Pela sua conversa, seu Pedro, isso quer dizer que o senhor nunca foi abduzido! Acertei?

- Com todas as letras, minha princesa. O que é, afinal, ser abduzido ou como sua mãe abduzida?
- Abduzida ou abduzido tanto faz. A ordem dos cavalos não altera a rotina das cocheiras. Abduzida ou abduzido é tudo aquilo que a física ainda não conseguiu responder. E nos engambela afirmando que abduzido é a mesmíssima coisa que ser raptada ou sequestrada.
- E não é? Não entendi. Poderia ser mais explícita?
- No caso da mamãe?
- No caso da sua mamãe.
- Então, seu Pedro, ela foi abduzida (e não raptada, nem sequestrada) quando saía agora cedo, por volta das oito horas, em direção à padaria. Em resumo, ser abduzida é ser levada do nosso planeta terra para outra dimensão. Nossa empregada está de folga hoje e ela resolveu ir às compras por sua conta e risco. Mamãe é muito apressada.

- Que loucura! Estou passado, Tati. Conte todos os detalhes.
- Segundo dona Rosa...
- Calma lá. Você falou nessa dona Rosa não tem dois minutos. Quem é dona Rosa? Sua empregada?
- Dona Rosa é a vizinha aqui do lado, dois portões abaixo do nosso... e a nossa empregada se chama Elzira. Hoje é folga dela.
- Continue...
- Segundo dona Rosa, desceu uma nave espacial num campinho de futebol aqui pertinho, colada ao supermercado. O supermercado (não sei se o senhor conhece aqui onde a gente mora) fica uns duzentos metros, mais ou menos da padaria onde mamãe pretendia ir...
- Não, não conheço. Só falei duas vezes com a sua mãe por telefone e umas quatro, via WhatsApp.
- Entendi. Como dizia, de dentro dessa geringonça saíram vários seres pequenininhos todos verdes.


- Todos verdes?
- Sim senhor. Verde-musgo. E tinham anteninhas amarelinhas e compridas com bolinhas brancas no alto de suas cabeças. Pareciam os anõezinhos da Branca de Neve. O senhor se lembra dos anõezinhos da Branca de Neve, não lembra?
- Mais ou menos. Mas deixa pra lá. Prossiga...
- Assim! Essas criaturinhas simplesmente chegaram, viram a mamãe na rua, sozinha e sem mais nem menos, sem nenhuma explicação, “botaram ela” pra dentro da tal espaçonave.
- Meu Deus! Que coisa! Inacreditável!... e depois?
- Depois seu Pedro, quando a dona Rosa deu o alarme os tais seres verde-musgo acho que se assustaram. Nisso se apressaram (arrastando a mamãe pelos cabelos) e sumiram de vez.

- Su... sumiram de vez?
- Sim e nesse sumiço...
- Minha princesa desculpe interromper. De onde você tirou essa historinha fantasiosa? Da sua imaginação, suponho?
- Não tirei. Aconteceu...
- Agora cedo?
- Cedinho mesmo. Tem uns quinze ou vinte minutinhos. A rua aqui onde eu moro, virou, num piscar de olhos, uma feira livre. O bairro em peso está sem saber o que fazer. Todo mundo abalado e em polvorosa.
- Com a chegada da tal nave?
- Não senhor. Com a levada à força e contra a vontade da mamãe por essa cambada vinda do espaço. Como disse, ela acabou de ser abduzida. Abduzida não raptada... ou sequestrada. 

- E seu pai? Cadê seu pai?
- Está trabalhando. Ia falar com a senhorita Norma do escritório dele avisando justamente na hora em que o senhor ligou.
- Meu Deus, criança! Vamos por etapa. Calma. Respira. Conta até dez. Quem é a senhorita Norma?
- A senhorita Norma é a secretária de meu pai.  Quando dona Rosa me deu a notícia de mamãe, ia exatamente fazer isso. Ai então o telefone berrou. Saí aos tropeções da mesa, onde tomava meu café para atender. Era o senhor! Nem sei o que vou dizer a ele...
- A ele? A ele quem?!

- Ao meu pai...
- Não entendi.
- É que ele ainda não sabe.
- Tati, minha linda, o que ele, seu pai, ainda não sabe?
- O que eu disse ao senhor...
- Nossa, Tati, você me disse tantas coisas. Estou boquiaberto... queixo caído... tremendo... juro por Deus. Se pudesse me ver...
- Eu estou me referindo ao que lhe disse até agora de mais importante...
- OK! De mais importante?

- Sim senhor...
- E o que foi? Desculpe. Você me falou tanta coisa, me encheu de informações, contou uma novela, me enredou de tal forma... perdi o rumo. Não consegui digerir toda essa babel. É muita coisa pra minha cabeça... 
- Seu Pedro, eu estou me referindo, repetindo o que informei ainda agorinha. O que eu disse de mais importante. Aliás, disse isso (o mais importante), se não me engano, pela segunda vez.
- Tá legal, desculpe. Falha minha. O que foi mesmo?! Me deu um branco áspero. Viajei como diz meu filho, na maionese...
- Eu disse que a mamãe não está. A mamãe como falei há pouco, foi A B D U Z I D A...

Tati tão convincente se fez no que abordava na conversação entabulada, que dona Viviane Cardoso de Godoi (que a tudo assistia e ouvia, diga-se de passagem, incrédula e estupefata), teve um piripaque momentâneo. Emoção, talvez. Caiu desmaiada. A menina largou o fone fora do gancho, com o tal do Pedro das “bugigangas” falando à deriva, dependurado no vácuo da sua ausência e se precipitou porta da frente, se esgoelando, literalmente por dona Rosa. Dona Rosa, desta vez, chegou, de fato, carne e osso, com meia dúzia de vizinhos, num alvoroço medonho. Alguém (da tropa que a acompanhava) ligou para o marido de dona Viviane. O pai de Tati chegou escoltado do doutor Marcos Capiloto (médico da família), vinte e cinco minutos depois.  
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Paraty, no Rio de Janeiro. 17-5-2019

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2 comentários:

  1. Tenho uma ligeira impressão que qualquer dia desses serei abduzida. Tem uma nave espacial rondando a minha porta.
    Carina
    Ca
    de Paraty RJ.

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    Respostas
    1. DIGA-ME O QUE FUMAS, OU QUE TOMAS!
      ESTÁS FORA DA CASINHA.
      LOL....

      Excluir

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