Aparecido Raimundo de Souza
- Mamãe, me deixa ir ao cemitério com tio Muriçoca?
- Com uma condição, filho.
- Qual, mãe?
- Que volte cedo.
- Prometo.
Montado nessa prometência o Pernilonguinho partiu todo alegre. Amou
ver os coveiros abrindo um monte de sepulturas e depois descendo os caixões às
covas. Percebeu que seu tio perturbou incessantemente as pessoas que assistiam
àquelas cerimônias estranhas fazendo voos de reconhecimento, ora pousando no
nariz de uma, ora na orelha de outro, na perna, nos braços, onde tivesse carne
nova à vista. As criaturas se abanavam nervosas, suadas, enfastiadas, usando as
mãos, jornais e lenços. Pernilonguinho amou esse passeio e intimamente pensou
em repetir a dose.
Dito e feito. No final de semana seguinte, importunou de novo a mãe
que trabalhava catando restos de comidas num amontoado de lixo próximo de seu
barraco:
- Mamãe!
- Fala meu filho.
- Me libera para ir ao cinema?
- Depende. Com quem?
- Com tia Pulguinha.
- Que filme pretendem ver?
- “A Mosca” com um tal de David Cronenberg e Greena Davis.
- Uau! Estou gostando da sua curiosidade à flor da pele. Percebo que
meu filhote está afiado com a sua geração. Parabéns. Pode ir. Mas já sabe.
Acabou o espetáculo, caminho da roça. Nenhuma parada, sequer para um
refrigerante.
- Está bem, mamãe. Acabando a seção, voltarei correndo.
De novo, o Pernilonguinho saiu a passear, desta feita, com a tia
Pulguinha grudada em seus costados, de carona. Como dissera à mãe, voltou para
o aconchego de sua moradia tão logo o filme epilogou. Durante a exibição, ficou
deveras boquiaberto ao ver como a tia Pulguinha pulava de uma cadeira à outra,
enraivecendo a galera que assistia à película. Em questão de minutos, todo
mundo se coçava, como se alguém tivesse jogado pó de mico nas poltronas.
Outro final de semana não demorou a chegar. E o Pernilonguinho,
animado e alegre, foi ter com a genitora, o papo de sempre:
- Mamãe...
- Fale, meu lindo.
- Tia Carapanã me convidou para ir à praia. Como eu não conheço o
mar...
- Nem pensar. Deus o livre e me livre e guarde!
- Mãe, a senhora me conhece. Não vou fazer arte.
- Se me prometer que ficará longe das ondas...
- Com certeza. Bem longe.
- Lembre filhote, que você não sabe nadar. O mar é perigoso,
traiçoeiro... água não tem cabelo...
- To ligado, mãe. To ligado.
- Só na areia?
- Só na areia.
- Não caia na besteira de querer surfar como a desmiolada da sua
tia. A sovela da sua tia não tem um
pingo de juízo.
- Eu sei mamãe... mas eu tenho...
- Estamos combinados. Pode ir. Todavia, volte para o lanche das
três...
- Ta bom, mamãe.
Pernilonguinho partiu contente para a nova aventura. Quase não coube
em si de encantamento, ao ver o mar de perto pela primeira vez. Ficou extasiado
e prometeu a si mesmo que aquela não seria a derradeira vez. Voltaria em outros
dias, em outras ocasiões para continuar o seu deleite, diante daquela imensidão
de tanta água que se perdia lá longe, de encontro ao céu. Não deixou de
reparar, evidentemente, na tia sugadora de sangue que tirou literalmente a paz
e o sossego dos banhistas toda vez que voava e pousava em suas costas, em seus
rostos e para irritar, além dos limites, até nos lanches e nas refeições
piqueniqueados por toda a superfície da areia branca e escaldante.
No domingo seguinte, esperou papai Pernilongo sair e assim que a
criatura escafedeu no ar, chegou para a mãe, como de costume e não deixou por
menos. Buzinou sonoro, no ouvido da sua primeiríssima:
- Mamãe, eu posso ir ao shopping?
- Você agora não para mais em casa, filho. Que loucura!
- Mãe, a senhora sabe que não sou de fazer arte nem desobedecer.
A representante da linhagem das Dipteras coçou os olhos.
- OK. Depende, meu pequerrucho. Quem irá com você, desta vez?
- Meus amigos aqui do pátio dos carros abandonados. Falo dos filhos e primos das Culicidaes e das
Anopheles.
- Tenho medo!
- Do que, mamãe?
- É muito perigoso. Shopping nos finais de semana... meu Jesus
protetor dos insetos, só de pensar na aglomeração das pessoas...
- Mamãe, eu prometo. Vou me comportar...
- Quem garante?
- Dou a minha palavra.
- Tudo bem, meu filho, pode ir. Por tudo quanto é sagrado. Não se meta
em encrencas. Seus amiguinhos dos veículos e pneus abandonados não são flores
que possam ser cheiradas.
- Mamãe, fala sério. Sei me
cuidar.
Como das vezes passadas, o Pernilonguinho levou a termo seu intento.
No shopping, ou mais precisamente na praça de alimentação, aprendeu com os
coleguinhas como pousar nas pessoas, nas crianças, a morder com vontade seus
tenros pescoços. Pernilonguinho, a certa altura, resolveu relaxar as asas num
copo de refrigerante além de picar com toda a sua força as pernas de uma garota
loirinha que se não largava o celular.
Como lhe dissera os demais do grupo, essas mordidas aqui e ali, ao acaso,
poderiam gerar mais à frente, a malária, a dengue e outras enfermidades tidas
como pragas epidemiológicas. Algumas
até incuráveis, que levaria os desprevenidos à morte. Nessas brincadeiras sem
precedentes, Pernilonguinho (e a sua turminha de desmiolados) contaminou uma quantidade
enorme de seres humanos. Final da tarde voltou satisfeito e quase não coube em
si de tanto contentamento.
Impreterivelmente mais um final de semana se fez presente. O
Pernilonguinho largou seus desenhos preferidos na televisão, tomou o lanche da
tarde e correu a encher o saco da mãe que passava as roupas de papai
Pernilongo.
- Mamãe, mamãe... posso ir no restaurante?
O que você vai fazer no restaurante?
- Os “mano” vão me ensinar a passar mais doenças nos idiotas.
- Bom, muito bom. Aliás, excelente. Quero que você, meu filho, aprenda
com precisão esse ofício. Dele depende a nossa sobrevivência. Quanto mais
contaminados...
- Eu sei, mamãe. Os “mano” me deram um toque...
- Disso depende nossa sobrevivência.
- O que é sobrevivência?
- Continuarmos vivos.
- Legal, aliás, tri legal. Vou aprender e prometo picar o maior número
de bobalhões. Vivaaaaaa...
De fato, o Pernilonguinho se educou a como importunar as pessoas e
voar de um lado para outro, em intermitência desvairada e o principal, a como
passar doenças as mais diversas para os seres humanos. Voltou alegre para o lar
e a mãe, ao ver a euforia estampada em seu pequeno, se exultou com o filhote
amado.
Não demorou muito, o domingo seguinte entrou radiante pela janela do
quarto do Pernilonguinho e inundou a sua felicidade de adolescente. Leu a
mensagem dos amiguinhos no Whatsapp:
- Mamãe, mamãe, acabei de ser convidado para logo mais à noite ir ao
teatro.
- Não, filho. Teatro é perigoso. Você não faz ideia...
- Ah, mãe, deixa eu ir. É só hoje.
- Não, não, não, e não. E hiper super perigoso. Você nem calcula que
infelicidade, que infâmia é o tal do teatro.
- Mamãe, é só hoje... deixa!
- Quem vai com você?
- Todas as larvas dos Aedes das velhas latas do lixão aqui do lado.
- Está bem, meu filho. Vá. Mas cuidado com as palmas. Fique longe
delas. São mais perigosas que as ondas do mar.
O Pernilonguinho foi. Esqueceu de indagar da mãe o que eram as tais
palmas. “Tudo bem – pensou – tomarei cuidado”.
Estava na primeira fileira, junto com os demais. Adorou a peça, os atores, as roupas, as
falas. No final do primeiro ato, entretanto, por azar, as luzes se apagaram. O
público em manifesto vocal enorme, ovacionou se colocando em pé e não só
aclamou, explodiu em uma monstruosa salva de palmas. Nessa balbúrdia
inesperada, o Pernilonguinho terminou esmagado entremeiado (às tais palmas que
a sua mãe mencionara) aos gozos de um cidadão que gritava estridentemente:
“bravo, bravo, bravoooooo!...”.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, jornalista. Do Rio de Janeiro. 14-5-2019
Colunas anteriores:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-