terça-feira, 14 de maio de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Os aplausos da desgraça

Aparecido Raimundo de Souza

UM PERNILONGUINHO TEIMOSO, mal saído das fraldas, se vira para sua mãe e manda a pergunta:
- Mamãe, me deixa ir ao cemitério com tio Muriçoca?
- Com uma condição, filho.
- Qual, mãe?
- Que volte cedo.
- Prometo.
Montado nessa prometência o Pernilonguinho partiu todo alegre. Amou ver os coveiros abrindo um monte de sepulturas e depois descendo os caixões às covas. Percebeu que seu tio perturbou incessantemente as pessoas que assistiam àquelas cerimônias estranhas fazendo voos de reconhecimento, ora pousando no nariz de uma, ora na orelha de outro, na perna, nos braços, onde tivesse carne nova à vista. As criaturas se abanavam nervosas, suadas, enfastiadas, usando as mãos, jornais e lenços. Pernilonguinho amou esse passeio e intimamente pensou em repetir a dose.

Dito e feito. No final de semana seguinte, importunou de novo a mãe que trabalhava catando restos de comidas num amontoado de lixo próximo de seu barraco:
- Mamãe!
- Fala meu filho.
- Me libera para ir ao cinema?
- Depende. Com quem?
- Com tia Pulguinha.
- Que filme pretendem ver?
- “A Mosca” com um tal de David Cronenberg e Greena Davis.
- Uau! Estou gostando da sua curiosidade à flor da pele. Percebo que meu filhote está afiado com a sua geração. Parabéns. Pode ir. Mas já sabe. Acabou o espetáculo, caminho da roça. Nenhuma parada, sequer para um refrigerante.
- Está bem, mamãe. Acabando a seção, voltarei correndo.

De novo, o Pernilonguinho saiu a passear, desta feita, com a tia Pulguinha grudada em seus costados, de carona. Como dissera à mãe, voltou para o aconchego de sua moradia tão logo o filme epilogou. Durante a exibição, ficou deveras boquiaberto ao ver como a tia Pulguinha pulava de uma cadeira à outra, enraivecendo a galera que assistia à película. Em questão de minutos, todo mundo se coçava, como se alguém tivesse jogado pó de mico nas poltronas. 


Outro final de semana não demorou a chegar. E o Pernilonguinho, animado e alegre, foi ter com a genitora, o papo de sempre:
- Mamãe...
- Fale, meu lindo.
- Tia Carapanã me convidou para ir à praia. Como eu não conheço o mar...
- Nem pensar. Deus o livre e me livre e guarde!
- Mãe, a senhora me conhece. Não vou fazer arte.
- Se me prometer que ficará longe das ondas...
- Com certeza. Bem longe.
- Lembre filhote, que você não sabe nadar. O mar é perigoso, traiçoeiro... água não tem cabelo...
- To ligado, mãe. To ligado.
- Só na areia?
- Só na areia.
- Não caia na besteira de querer surfar como a desmiolada da sua tia.  A sovela da sua tia não tem um pingo de juízo.
- Eu sei mamãe... mas eu tenho...
- Estamos combinados. Pode ir. Todavia, volte para o lanche das três...
- Ta bom, mamãe.
Pernilonguinho partiu contente para a nova aventura. Quase não coube em si de encantamento, ao ver o mar de perto pela primeira vez. Ficou extasiado e prometeu a si mesmo que aquela não seria a derradeira vez. Voltaria em outros dias, em outras ocasiões para continuar o seu deleite, diante daquela imensidão de tanta água que se perdia lá longe, de encontro ao céu. Não deixou de reparar, evidentemente, na tia sugadora de sangue que tirou literalmente a paz e o sossego dos banhistas toda vez que voava e pousava em suas costas, em seus rostos e para irritar, além dos limites, até nos lanches e nas refeições piqueniqueados por toda a superfície da areia branca e escaldante.

No domingo seguinte, esperou papai Pernilongo sair e assim que a criatura escafedeu no ar, chegou para a mãe, como de costume e não deixou por menos. Buzinou sonoro, no ouvido da sua primeiríssima:
- Mamãe, eu posso ir ao shopping?
- Você agora não para mais em casa, filho. Que loucura!
- Mãe, a senhora sabe que não sou de fazer arte nem desobedecer.
A representante da linhagem das Dipteras coçou os olhos.
- OK. Depende, meu pequerrucho. Quem irá com você, desta vez?
- Meus amigos aqui do pátio dos carros abandonados.  Falo dos filhos e primos das Culicidaes e das Anopheles.
- Tenho medo!
- Do que, mamãe?
- É muito perigoso. Shopping nos finais de semana... meu Jesus protetor dos insetos, só de pensar na aglomeração das pessoas...
- Mamãe, eu prometo. Vou me comportar...
- Quem garante?
- Dou a minha palavra.
- Tudo bem, meu filho, pode ir. Por tudo quanto é sagrado. Não se meta em encrencas. Seus amiguinhos dos veículos e pneus abandonados não são flores que possam ser cheiradas.
- Mamãe, fala sério.  Sei me cuidar.

Como das vezes passadas, o Pernilonguinho levou a termo seu intento. No shopping, ou mais precisamente na praça de alimentação, aprendeu com os coleguinhas como pousar nas pessoas, nas crianças, a morder com vontade seus tenros pescoços. Pernilonguinho, a certa altura, resolveu relaxar as asas num copo de refrigerante além de picar com toda a sua força as pernas de uma garota loirinha que se  não largava o celular. Como lhe dissera os demais do grupo, essas mordidas aqui e ali, ao acaso, poderiam gerar mais à frente, a malária, a dengue e outras enfermidades tidas como pragas epidemiológicas.   Algumas até incuráveis, que levaria os desprevenidos à morte. Nessas brincadeiras sem precedentes, Pernilonguinho (e a sua turminha de desmiolados) contaminou uma quantidade enorme de seres humanos. Final da tarde voltou satisfeito e quase não coube em si de tanto contentamento. 

Impreterivelmente mais um final de semana se fez presente. O Pernilonguinho largou seus desenhos preferidos na televisão, tomou o lanche da tarde e correu a encher o saco da mãe que passava as roupas de papai Pernilongo.
- Mamãe, mamãe... posso ir no restaurante?
O que você vai fazer no restaurante?
- Os “mano” vão me ensinar a passar mais doenças nos idiotas.
- Bom, muito bom. Aliás, excelente. Quero que você, meu filho, aprenda com precisão esse ofício. Dele depende a nossa sobrevivência. Quanto mais contaminados...
- Eu sei, mamãe. Os “mano” me deram um toque...
- Disso depende nossa sobrevivência.
- O que é sobrevivência?
- Continuarmos vivos.
- Legal, aliás, tri legal. Vou aprender e prometo picar o maior número de bobalhões. Vivaaaaaa...
De fato, o Pernilonguinho se educou a como importunar as pessoas e voar de um lado para outro, em intermitência desvairada e o principal, a como passar doenças as mais diversas para os seres humanos. Voltou alegre para o lar e a mãe, ao ver a euforia estampada em seu pequeno, se exultou com o filhote amado.

Não demorou muito, o domingo seguinte entrou radiante pela janela do quarto do Pernilonguinho e inundou a sua felicidade de adolescente. Leu a mensagem dos amiguinhos no Whatsapp:
- Mamãe, mamãe, acabei de ser convidado para logo mais à noite ir ao teatro.
- Não, filho. Teatro é perigoso. Você não faz ideia...
- Ah, mãe, deixa eu ir. É só hoje.
- Não, não, não, e não. E hiper super perigoso. Você nem calcula que infelicidade, que infâmia é o tal do teatro. 
- Mamãe, é só hoje... deixa!
- Quem vai com você?
- Todas as larvas dos Aedes das velhas latas do lixão aqui do lado.
- Está bem, meu filho. Vá. Mas cuidado com as palmas. Fique longe delas. São mais perigosas que as ondas do mar.
O Pernilonguinho foi. Esqueceu de indagar da mãe o que eram as tais palmas. “Tudo bem – pensou – tomarei cuidado”.

Estava na primeira fileira, junto com os demais.  Adorou a peça, os atores, as roupas, as falas. No final do primeiro ato, entretanto, por azar, as luzes se apagaram. O público em manifesto vocal enorme, ovacionou se colocando em pé e não só aclamou, explodiu em uma monstruosa salva de palmas. Nessa balbúrdia inesperada, o Pernilonguinho terminou esmagado entremeiado (às tais palmas que a sua mãe mencionara) aos gozos de um cidadão que gritava estridentemente: “bravo, bravo, bravoooooo!...”.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do Rio de Janeiro. 14-5-2019

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