sexta-feira, 24 de maio de 2019

[Aparecido rasga o verbo] A tara pela caca

Aparecido Raimundo de Souza                                                

NÃO ERA A PRIMEIRA VEZ que o Elizeu fazia aquele pedido esquisito. Marina até certa altura tirou numa boa. Pensou que o namorado estava zoando com a sua cara:
- Faz prá eu ver, meu amor. Faz para eu ver. Estou louco pra me deleitar com esse momento...
O pedido veemente e lacônico surgiu assim, sem mais nem menos. E passou a ser constante e inverossímil no decorrer dos meses de namoro. Elizeu queria que a namorada, sentada no vaso do banheiro a calcinha arreada até os joelhos, fizesse suas necessidades fisiológicas para que ele, em carne e osso, visse bem de perto e cheirasse se possível. 
- Zeu, meu amor, não tem o menor cabimento. É muito pessoal. Estou travada. Qualquer outra coisa, tudo bem, mas...

Marina realmente andava catando cavacos, e logo debandou por becos e sendas tortuosas tropeçando entre a cruz e a espada. Literalmente se viu presa, acorrentada num beco sem saída. Até onde a possibilidade se apresentava coerente, realizava os desejos –, ou melhor –, as barbáries do namorado. Começou o rol pelo simples trocar de roupas. Depois a coisa tomou outros rumos. Elizeu cismou de espiá-la na hora do xixi. Até aí, sem problemas. Contudo, a criatura não se conformou e partiu para situações mais agressivas, tipo, querer que ela se masturbasse com um membro de borracha que ele comprara num sex shop.  Entrava em transe, ao observar o corpo dela, pelo buraco da fechadura, enquanto a gostosa tomava banho e se ensaboava. Passo seguinte, Elizeu resolveu dividir o chuveiro. Marina, muito a contra gosto, depois de um caminhão de desculpas acabou concordando. Não queria brigas. Amava o sujeito, apesar dos  pesares. Todavia, agora, o cara chegara ao limite. Pirara de vez.

Viajava na maionese, a velocidade espantosa, com certeza. Exigia que ela fizesse um cocô na frente dele.
- Amor, não tem condições.
- Só uma vez. Só uma... 
- A coisa fede muito. Desagradável, isso...
E daí?  Você não aguenta o cheiro?  Eu te amo minha princesa. E se te amo, também posso suportar.
Marina não dispunha de mais rotas de fuga e portas de escape para onde seguir ou correr. Ao marcar encontros rotineiros com o rapaz, saia de casa prontinha da silva. Nada de ceder aos impulsos do amado. Se fossem a um restaurante evitava beber. Se depois do cinema partissem para o apartamento dele evitava o toalete. Segurava a vontade até em casa na tranquilidade do lavabo de seu quarto.

Ultimamente Elizeu vinha passando dos limites toleráveis para a paciência de uma senhorita de dezenove anos. Primeiro namorado, primeiro amor da sua vida. Para ela, tudo girava como num conto mágico em ascensão. Todavia, de uma hora para outra, Elizeu passou a ter comportamentos atípicos e destituídos da normalidade. Não respeitava mais os espaços da namorada. Gritava com ela como se tivesse diante de si um bicho qualquer. “Caga desgraçada!”.

Sem levar em conta que se tornara chato, repetitivo, cansativo, ignorante. Até uns bons tabefes o infeliz acabou lhe desferindo, porque, numa festa entre amigos da faculdade, o sujeito queria que ela misturasse a sua urina com a dele e bebesse adicionada à cerveja. Elizeu não agia como nas primeiras semanas, quando a conheceu no parque de diversões que chegara à cidade. Deixara de ser cortês, cavalheiro, alegre, brincalhão. O desditoso, agora, carregava uma fixação doentia na cabeça: ver Marina defecando. Realmente, coisa de gente sem juízo, desequilibrada, sem uma ponta de razão na cabeça. Com tantos atrativos para ser admirado, o mala sem alça cismara logo de filmar a moça de bunda suja, obrando (como se diz na gíria “soltando um barro”, “batendo uma laje”).  

Que fazer?  Que decisão tomar?  Ceder, ou mandar o idiota de vez, para o espaço? A pressão se fez brutal, a tanta e tamanha, que não teve alternativa. Transigiu:
- Está bem, Zeu. Eu cago para você ver se isso realmente lhe dá algum tipo de prazer.
- Muito, meu amor. E prova o quanto você me ama e me quer.  Qualquer dia destes...  te levo em casa e solto, no vaso, uma bostinha bem cheirosa. Acho que você vai gamar no meu cocozinho...
- Acho que você é pirado, Zeu. Só uma pessoa insana iria querer ver alguém expelindo os excrementos do organismo e ainda ir às nuvens e se simpatizar com uma coisa tão disparatada.

- Você não é uma alguém qualquer Marina.  É o meu amor, a minha vida, a razão do meu tudo. Minha namorada que eu gosto tanto e escolhi para me casar, ter filhos, viver uma vida a dois, envelhecer ao lado...
- Mas o que isso tem a ver com o fato de querer me flagrar de bunda enlameada?

- É um desejo meu que baila aqui dentro do peito, princesa. Um desejo particular. Um desejo incontrolável e incontroverso. Ver você fazendo força, contraindo o rosto para a titica cair na privada paciente, tranquila, sem atropelos. Vou amar de paixão sentir seu traseiro sujinho de merda. Pretendo conhecer todos os seus cantos e recantos, curvinhas e retas, lugarzinhos jamais vistos, pontos nunca tocados, fendas rachaduras, cortes, enfim, tudo, tudo, tudo...
- De onde você tirou essas idéias macabras?

- Macabras? Chama a isso de macabro?
- E não é?
- Meu amor. Vou lhe contar um segredo de família. Não deveria, mas para você... papai, quando conheceu a mamãe, logo na primeira vez que saiu com ela, o  velho  pediu para que desse um peido...
Risos.
- Um... um peido?
- À primeira vista mamãe achou impróprio, meio fora de esquadro. Pensou que tivesse conhecido um sujeito normal, quando se dava conta o safardana não passava de um piradão  sem modos, ou princípios, faltando um parafuso na cachola.  Depois, com o passar dos dias, dos meses, acabou concordando.
- Concordando?

- Sim. Plenamente. Mamãe peidou para papai. E saiba Marina, minha linda, mamãe peidou com vontade, com força. Até hoje ele gosta de cheirar os bufões que ela solta no escurinho de suas investidas. E agora, meu amor, abaixa esse seu bumbumzinho lindo e se declame aos meus queixumes. Solta um barro, bate uma laje. Caga, borra, me passa um telegrama. Tenho a impressão que até gozarei ao ver a portinha de seu cuzinho cheinho de merda. Vai, amor, solta a onça. Meu nariz está preparado para receber esse cheiro maravilhoso, estonteante, que certamente sairá de dentro de você. Libera, escorrega o moreno...

Sem saída e acuada, embaraçada, vexada, humilhada e atordoada, Marina finalmente entrou na paranoia. Condescendeu. Tirou de vez a calcinha, descentou da bacia da privada, se postando ao lado dela. Agachada, custou um bocado. Por fim, bosteou com vontade. Enquanto arriava o calhau, Elizeu sorriu de forma estonteante, como se tivesse assistindo a algo até então nunca visto ou imaginado. De fato, nunca, até aquele momento. Por momentos, pareceu entrar numa espécie de choque convulsivo, efervescente, seguido de um entusiasmo desordenado e mítico. Gritou de alegria, de prazer, chegou a ponto de, a certa altura, meter as mãos na merda e se lambuzar dos pés a cabeça. 

Era a primeira vez que Marina se prestava a descer tão baixo num relacionamento onde à tara alucinante do namorado saia dos limites da razão e adentrava por sendas jamais imaginadas por ela.  Antes de se limpar, chorou copiosamente. Derreteu a sua vergonha em lágrimas como nunca antes fizera. Chegara ao fim do túnel. Isso com certeza. E lá, atabalhoada nos cafundós da sua desonra, não vira nenhuma luz para clarear a sua falta de juízo e pontilhar a sua imbecilidade. Passara por cima dos seus valores, da sua timidez, da sua hombridade.

Jamais cogitara ou julgara conseguisse se franquear inteiramente sanada, a se doar sem nódoas à aflição daquele constrangimento. Acomodada ao lado do vaso, a bunda voltada, reganhada em abundância lícíga para o rosto do namorado, se abriu num xixi inesperado e intempestivo. Após essa falha, não deu para segurar mais. Soltou a franga. Matriculou o robinho na natação, para que ele, seu amor, se sentisse o personagem mais feliz do planeta. A certa altura teve consciência de que a sua inocência fora, de vez, pras cucuias. Um peido incontrolável saiu das coxias rasgando a cena. Tumultuando a plateia travou a função. Ela ruborizou. Voltou a chorar muito, desta vez com mais convulsividade. E se questionou incessantemente a partir de então: valeria a pena se expor assim, para aquele traste que lhe dizia amar do mais profundo de seu coração?

Que espécie de amor improbo, alienado aquele, em que o escolhido da sua vida, o seu príncipe sonhado pedia coisas absurdas, como fazer cocô para que ele visse, tocasse, cheirasse e se lambuzasse? Aquela figura cruel, bestificada, ali, ao seu lado, alisando as fezes que saíra de dentro de suas entranhas o fazia rir e gritar ao mesmo tempo, gritar e rir, desordenadamente, como uma criança diante de um brinquedo novo. E pensar que Eliseu, não outro, senão o príncipe que ela escolhera para ser seu namorado, seu marido, seu tudo para o resto de uma vida inteira. Valeria a pena?! Nunca encontrou (mesmo depois de casada com o sujeito e lá se vão quase quinze anos) a resposta adequada que desfizesse as suas impertinências e apoquentações.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, ES. 24-5-2019

Colunas anteriores:
Lucio Mauro vai embora e nos deixa a “Ofélia” sem o seu “Fernandinho”

Um comentário:

  1. Ao ler o texto de Aparecido, "A tara pela caca", cheguei a conclusão que as mulheres, de um modo geral, continuam submissas, obedientes, dóceis e amáveis aqueles homens vagabundos e sem brio. Os verdadeiros e eternos cafajestes sem vergonha, desequilibrados e tarados, lunáticos e mentecaptos. Essas criaturas se acham os machões e senhores do pedaço, tipo assim, como se fossem os donos da cocada branca e preta. Os reis do belo sexo flágil. Esse tempo da submissão como a do personagem Elizeu, já passou. Ficou esquecido nas brumas do passado. Caiu de moda. A Marina, em contrapartida, representa (ainda a maioria, infelizmente), daquelas mulheres que não descobriram o seu lugar, que ainda não acordaram para a vida. Dito de forma mais objetiva: as que se deixam levar pela leviandade de seus companheiros. Que apanham que são lesionadas, que são machucadas e contundidas na sua moral. Apesar disso ficam caladas, mudas, estáticas. A imprensa todo dia nos mostra a face oculta das desgraçadas homicidiadas (ou erroneamente posta pelos legisladores fazedores de leis, idiotizados, como as feminicidiadas), ou mortas, a tiros, a pauladas, atropeladas, esganadas e esfaqueadas, entre outras barbáries que levam à óbito. O Elizeu precisa acabar. Sair de cena, ser retirado de cartaz. A Marina carece criar vergonha, saber se portar diante de seu “bem amado”. Certo que entre quatro paredes vale tudo, do canguru perneta ao chupar a cana dura com a boca contrária. Todavia, se submeter a fazer o que fez como descrito no texto de Aparecido, valha-me Deus, Nossa Senhora. É se rebaixar aos fundilhos da perversão, da contaminação dos princípios que regem a vida a dois. O texto de Aparecido é, na verdade, não uma “tara pela caca”, um aviso, uma alerta para essas idiotinhas patricinhas que ainda não se acharam, ou não se encontraram como MULHERES. Acordem para a vida. Deixem que as Marinas existentes dentro de vocês floresçam para a vida plena. E que saibam viver essa totalidade, essa completudicidade no verdadeiro e amplo sentido de se imporem e se darem o respeito a que todas as Marinas “pela ai” realmente merecem.
    Carina Bratt(de Salvador, na Bahia).

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