Aparecido Raimundo de Souza
A CRIATURA APARECEU do nada, na frente
do Genésio. Genésio deu um salto de lado, como se fugisse de algum fantasma
repentino:
- Que isso? Quem é você? Como entrou aqui? De que
buraco saiu?
A figura estranha, toda de preto, dos pés a
cabeça, se abriu num sorriso largo mostrando apenas uma arcada de dentes
perfeitos:
- Não acredito! Não está me reconhecendo?
- Por tudo quanto é mais sagrado. Não. Vou
perguntar de novo. De que buraco saiu?
Em resposta, a estrangeira afastou o véu que lhe
cobria inteiramente o rosto. Genésio topou, diante de si, com uma mulher de
beleza incrível. Jamais, em toda sua vida, se deparara com uma formosura tão
pecaminosamente rara.
- E agora?
- Continuo boiando...
- Pelo amor de Deus, Genésio. Não me peça para
desenhar. Desde pequena era péssima aluna com os lápis coloridos e os pincéis.
Principalmente com os pincéis.
- Mesmo assim não estou conseguindo coordenar
minha mente atrapalhada ao seu semblante angelical.
A linda fez um gesto repentino, e, como num passe
de mágica, surgiu, em suas mãos, uma lâmina encurvada presa a um cabo de
madeira.
- E agora? – Ficou mais fácil?
- Essa foice? Meu Pai eterno!
- Até que enfim, Genésio. Sou eu mesma...
Genésio começou a tremer. Tinha motivos? Esses
não faltavam.
- OK. Conte até dez – resmungou de si para si. -
Respire. Você é amiga do Xenofonte. Veio me cobrar o dinheiro que devo a ele.
Agora lembrei. Da última vez me ameaçou de morte. E você veio...
A garbosa interrompeu de novo.
- Genésio, me escuta. Não conheço nenhum Xenofonte. Não sei de qual
dinheiro está falando...
- Então...
- Genésio, eu sou a Morte. A sua senha chegou até
mim e eu aqui estou para lhe buscar.
O rapaz literalmente incrédulo caiu na
gargalhada:
- Morte? Kikikikikiki... essa foi boa... conta
outra... acho que vamos nos divertir um bocado.
Dessa vez foi a Morte quem sorriu:
- Genésio, chegou a sua hora. Olhe aqui. Essa é a
sua senha. Confira: 666666666666666666666666666662.
- Fala sério, moça. Tudo bem. Confesso que estava
enrolando o Xenofonte. Vou lá dentro buscar a grana. Dá um minuto.
- Genésio, me escuta. Já falei e vou repetir. Não
conheço nenhum Xenofonte. Vim aqui buscar você. Seu tempo aqui na terra acabou.
Olhe a sua senha: 666666666666666666666666666662.
- De onde você tirou essa droga de senha?
A morte apontou o dedo em riste para o alto:
- Não tirei Genésio. Ele mandou. E quando Ele
manda... não se discute, se cumpre. Vamos?
A Morte tentou pegar Genésio pelo braço, mas ele
escapuliu num novo salto e se pôs em sobreaviso.
- Genésio, não torne as coisas mais difíceis. Me
acompanhe...
- Olhe minha amiga. Não sei quem você é e como
entrou em meus domínios. Acabei de chegar, tomei um bom banho, jantei, bebi uma
tacinha de vinho e agora, por favor, só preciso descansar. Tive um dia cheio...
enfadonho cansativo... por favor, dê o fora...
A Morte caminhou até a janela e se quedou a olhar a rua. A noite estava maravilhosa e resplandecia num céu lindo e estrelado. Um perfume inebriante exalava diretamente das roupas daquela jovem intrusa. Um perfume, por sinal, embriagador. Pena que a tresloucada só abrira a boca para falar coisas que ele não queria ouvir.
- Genésio, você não é burro. Não se faça de besta
agora.
- Como é seu nome, moça?
- Já disse. Meu nome é Morte.
- Tirou uma boa hora para me perturbar a
paciência. Tudo bem. Você venceu. Diga aquele famigerado que vou pagar. Vou lá
dentro, no meu quarto, buscar a grana. Espere aqui.
- Genésio, você não vai a lugar nenhum. Lá dentro
não tem dinheiro. Você e eu sabemos disso. Seu bolso está mais duro que pau de
tarado. Você tem, realmente, uma merreca guardada numa caixinha de sapato
embaixo do criado-mudo. Valor que não chega a dez reais. Oito reais e quinze
centavos para ser mais exata.
- Não consegui descobrir como chegou a essa
conclusão. Vi que você quer brincar. Ok! Vamos entrar na sua. O que realmente
quer de mim?
- Nada. Só a sua vida. Ela acabou. Estou aqui,
agora, na sua beira. Vim lhe buscar. Olha aqui a sua senha:
666666666666666666666666666662...
- Pare com isso. Cansei dessa história de senha.
Tudo bem. Dá um prazo que levanto o dinheiro do Xenofonte. Agora, por favor, me
deixa descansar...
- Genésio, meu lindo, sua estrada acabou aqui.
Vamos. Não me faça perder a paciência.
- Prove que você é quem diz ser.
- Acabei de fazê-lo. Disse quanto você tem numa
caixinha de sapato.
- Pura sorte... olha engraçadinha. Me dá uma
prova real. Essa aí da caixinha de sapato não valeu...
- Está bem. Você resolveu repetir a façanha de
São Tomé.
- Quem é São Tomé?
- Discípulo de Jesus. Ele só acreditava vendo.
- Você é dura na queda, moça. Como é seu nome de
verdade?
- Morte.
- Me convença!
- Façamos um trato. Se eu provar, embora não
precise..., se eu provar que sou a Morte você encarará e aceitará a minha vinda
aqui no seu apartamento numa boa?
- Sim.
- Sem pestanejar?
- Naturalmente.
- Vira comigo sem complicações?
- De braços dados. Para que toda a vizinhança
aqui do prédio me veja com você e depois saia por ai comentando: “nossa, o cara
é um tremendo de ‘um galinha’”.
- Pois bem. Se isso fará de alguma forma bem ao
seu ego, estou de pleno acordo. Não gosto de defuntos tristes e chorões se
lamentando atrás de mim. Vamos começar pela sua vida amorosa. Preparado?
- Sempre.
- Você tem três mulheres. Bárbara de vinte e
cinco anos, Mônica de dezoito, e Gabriella de quinze. Incrivelmente uma não
sabe da outra. Você sai com as três em dias alternados. Até agora deu sorte,
vez que leva a trinca nos mesmos restaurantes e pizzarias...
- Continue...
- Mônica está grávida.
- Como?
- Calma. Ainda não contou prá você. Está
esperando a hora certa.
- Princesa, seu primeiro fora. Eu não gero filho.
Fiz vasectomia. Em vista disso, não existe hora certa. Logo...
- Eu sei. Você fez em dezembro do ano passado.
Todavia, Mônica desconhece essa parte (como muitas outras) da sua vidinha
dupla. Agora o melhor da festa. Sua beldade trai você com seu irmão Elias.
- O quê?!
- Isso que acabou de ouvir. O filho que ela
espera é dele.
- Escuta aqui... eu...
- Tenha fé. Deixa terminar. Vamos por partes.
Passemos à segunda. A Bárbara é uma Maria vai com as outras. Só usa você para
comer bem, frequentar bons restaurantes... e ainda lhe fazer de trouxa.
- Como assim?
- Bárbara tem um caso com o Arlindo.
- Arlindo? Quem é esse Arlindo?
- O dono do posto de gasolina onde você abastece
seu carro.
- Meu Genésio amado!
- Uau! Percebo que está caindo em si. Ótimo.
Chamando Jesus de Genésio. Bom indício, excelente começo... estamos fazendo
progressos...
- Xenofonte encheu a sua cabeça. Aquele safado!
- Genésio, esqueça o Xenofonte. Vim atrás de você
porque o Pai me deu a sua senha. Vou repetir: 666666666...
- Chega. À merda com essa senha. Não sei como
descobriu tudo isso... espera lá: tem um detalhe que ninguém sabe. Um segredo
que guardo a sete chaves. Duvido que você...
- Genésio, eu sei qual é esse segredo... como já
sabia da sua vasectomia...
- Então vomite. Qual é o segredo?
- Gabriela é a única que ama você. De verdade.
Sem esperar nada de sua pessoa. Porém, ela está com os dias contados. O mal
dela é incurável.
- E qual é o mal dela?
- Câncer nos ossos...
Genésio desmontou o corpo no sofá. Empalideceu.
- Meu Deus!
- Os pais dela engolem você porque são pobres. Há
uma atenuante. Você ajuda a família. Daí não levarem você à polícia por
pedofilia. Todo o bairro quer ver você na cadeia, por ludibriar uma menor. E
não estão errados concorda? - Você está com a garota por piedade. Você gosta da
loira falsificada, a Mônica. Ama também a Bárbara, embora sabendo que o amor
dela não vale um tostão furado. Gabriella a quem você despreza e faz sexo à
contra gosto, grosso modo, por fazer, seria capaz de dar a vida que logo lhe escapará
para ficar com você. Acredite meu prezado, ficará. Seu destino está ligado ao
dela. As outras, no entanto..., darão a você, uma banana bem grande. Sequer
farão a gentileza de comparecerem em seu velório...
- Termine...
- O que sinalizo é que ela, a Gabriella, está com
os dias contados. Devo vir buscá-la dentro de quinze ou vinte dias... e como
Deus escreve certo por linhas tortas, você ficará com ela para sempre... apesar
de seu desprezo, da sua cara de pau, da sua covardia, enfim... desculpe pela ousadia.
Não me é permitido julgar ninguém... nem posso...
- Se ela vai morrer em quinze ou vinte dias...
não vejo como...
- Por isso virá comigo agora. Há toda uma
preparação lá em cima, antes da chegada dela... daí a sua passagem hoje, sem
mais delongas...
- Então tudo isso que você falou até aqui não é
armação? Você é mesmo a Morte?
- Em carne e espírito. Pronto? Prometeu vir
comigo. Chegou a hora...
- Irei, com certeza. Não criarei nenhum tipo de
obstáculo. Só queria pedir um favor. Um derradeiro se for possível. Me
concederia?
- Peça... e sopesarei a possibilidade.
- Gostaria de dar uma espiada nas minhas... nas
minhas três mulheres. Saber o que estão fazendo nesse exato momento...
- Seja feita a sua vontade. Não reclame depois...
Com um gesto, a Morte criou uma espécie de tela
plana projetando as mulheres no branco da parede. A primeira da lista, a
Mônica. A safada apareceu aos beijos e abraços com o Elias. “Mônica, eu te amo!
Quero me casar com você”. – “Eu também, Elias. Me dá um tempo. Preciso me livrar
do mala do Genésio, seu irmão”. “E quanto ao filho?” – “Pretendo tomar um bom
dinheiro do trouxa...”.
- Meu Pai eterno, que vagabunda...
- Vamos à próxima, Genésio. Lembrando aqui um
detalhe. Esse seu irmão ai como toda a sua família desconhece que você fez a
tal da vasectomia. Vamos mais...
Surgiu, na sequência, a Bárbara na cama, aos
amassos com o Arlindo, do posto.
- Tira isso, tira isso, pelo amor de Deus.
- OK... você é quem manda.
Num abrir e piscar de olhos pintou na tela
improvisada, a Gabriella: “Mãe, pai sei... sei que vou... sei que vou morrer.
Minha... minha hora... minha hora está... prestes. Chama... o Gene... Pre...
preciso... preciso ver... o... preciso ver o Gene...”.
- Basta. Absorvi o necessário. Estou
convencido...
- Vamos senhor?
- Espera. Posso ir vê-la agora? Me dá um
minuto... por favor?
A morte se quedou estática. Por um milésimo de
segundo pareceu ter perdido a voz. Contudo...
- Vou lhe conceder esse favor. Que o Altíssimo me
perdoe...
Sem saber como, num abrir e fechar de olhos,
Genésio se viu tocando a campainha na porta da casa de Gabriella. Quem veio
atender, a mãe da garota.
- Meu filho, estávamos tentando ligar para
você... Graças a Deus. Venha depressa... Gabi está mal... piorou de ontem para
hoje...
Genésio é levado ao quarto de Gabriella. A menina
pareceu criar forças sobrenaturais quando o viu chegado à sua beira, o homem a
quem amava do fundo de seu coração. Os pais se retiraram para que ficassem a
sós:
- Gene..., que bom que você veio... estou... estou...
morrendo...
- Calma, meu amor. Você não vai morrer agora...
relaxa. Olha, presta atenção no que vou lhe dizer. Logo, eu e você estaremos
juntos vivendo nosso amor. Acredite... minha princesa. Existe um lugar
maravilhoso, bem longe daqui que nos espera... nesse lugar nosso amor será para
todo o sempre...
- Gene...
- Espere mais uns dias... confie em mim...
Gabriella, entretanto, o rostinho feliz pareceu
entrar numa espécie de convulsão imprevista. Desesperadamente começou a pelejar
pela vida. Lutou igualmente pelo seu amado. Os pais retornaram chamados às
carreiras. O médico que assistia a adolescente chegou minutos depois. Quando
tudo se acalmou um pouco, a mãe de Gabriella se lembrou de Genésio (que poucos
minutos atrás, pedira para ficar esperando na sala). Foi nessa hora, perceberam
que o rapaz não estava dormindo, ou cochilando, estirado no sofá. GENÉSIO
ESTAVA MORTO.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza,
de Sertãozinho, Ribeirão Preto, São Paulo.
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