terça-feira, 10 de março de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Ecnéfia

Aparecido Raimundo de Souza

QUANDO TRANSITO PELOS becos e corredores entremeados dos prédios do conjunto habitacional onde resido, vindo ou indo do apê da minha namorada, em direção ao meu, geralmente tarde da noite, aproveito e espio compridamente como não querendo nada, para as centenas de apartamentos que se descortinam diante de mim. Procuro neles um rastro de qualquer coisa que me desperte para longe dessa agonizante solidão que me devora. Reclamo, para mim mesmo, meu próprio veneno.

Alguns retiros surgem iluminados, outros nem tanto. O fato é que eles dão, num plano com perímetro pré-definido, uma geral das cozinhas e salas, banheiros e quartos. Me sinto, nessas horas, como uma bólide espião, a penetrar na atmosfera terrestre, devassando, ferindo a intimidade de uma porção de famílias que não conheço. Apesar disso, olho, vasculho, perscruto, disserto, reivindico, evoco, disseco, escarneço, extasio, sinoptizo à procura de alguma coisa. O que, exatamente? Não sei ao certo!

Em busca de algo inusitado? Talvez! Algum pormenor marcante que chame a atenção. Difícil alinhar! Numa dessas buscas incessantes pelo anônimo oculto, pelo omitido clandestino, dias atrás, capturei um casal fazendo amor num quarto de uma unidade no primeiro andar. Não paro, todavia, diminuo os passos. Escuto. Tudo ao meu redor vira uma espécie de gravador e eu tento memorizar esse prazer momentâneo e etéreo. É como despertar de um marasmo até então entrevado e cutucar a libido.

A mulher açoitada não grita.  Contudo, eu posso ouvir a sua voz ininteligível e adocicada enquanto está sendo vergastada pelo seu companheiro de cama. Vem até mim, trazidos pelo silêncio da noite calma, gemidos entrecortados, intervalados divididos em pequenos cortes dosados e espaçados. Alopro. A nudez do momento como se temesse ser vista por olhos difusos, se esconde em areia movediça dos meus sentidos em alerta. O rapaz, mais afoito e voraz, dá a impressão de estar faminto de sexo. E está.

Como tal, faz com que o móvel que os acolhe, ranja sobre os próprios pés em contato com o assoalho. Dentro dessa sintonia peculiar do apadrinhamento dos corpos se interligando no mesmo amplexo do insaciável, e vandálico (que certamente os regala as entranhas), eu viajo... Levito, voo longe, como um pássaro que acabou de fugir de uma gaiola. Chego a me perder no firmamento estrelado que me espia lá do alto. De outra feita, moldo aos meus ouvidos a voz rouquenha de um homem na cozinha cantarolando Rick&Rener ao tempo em que frita alguma coisa.

Nessas horas pela busca do inimaginável, eu finjo estar falando ao celular. Essa loucura dos tempos modernos ajuda a encobrir o real fato da minha presença àquela hora num lugar indevido. Quando a fuzarca me interessa, e o ócio dos meus imaginosos se faz num instante cheio de buracos, neles, me perco da realidade. Freio os chinelos numas estancadas básicas em nome do desproposital, fazendo com que o trajeto com pouco mais de cinco ou dez minutos se prolongue por uns vinte.

Descubro numa dessas peregrinações, logo na primeira curva antes da minha portaria, alguém tomando banho. A luz acesa na unidade desnuda aos meus sentidos curiosos o chuveiro jorrando a água em abundância, o que me permite distinguir apenas uma parte da cabeça. É, sem dúvida, uma mulher. Com seus cabelos longos, seguidos dos movimentos rápidos do abaixar e do se levantar em gestos cadenciados, me leva a supor que ela deva estar se ensaboando. No final desse intercurso, usque com vistas para os janelões panorâmicos de minha sala, há um apartamento de fundos e uma só janela frenteada para o beco.

Com certeza o cômodo de uma adolescente. Como sei? O ambiente todo cor de rosa, praceja uma cortina branca e rala, de tecido fino, entreaberta, através da qual me estupra a luminosidade da tela de uma televisão ligada num canal pornográfico. O panorama desse aposento se faz renovado de uma noite para outra. Ora, ao passar indo namorar, ouço essas músicas confusas, ora em regresso, chegam ao meu nariz resquícios de uma fumaça diferenciada, tipo esses cigarrinhos que os jovens gostam de fazer uso para saírem do chão e desembestarem em busca de sabe-se lá o quê.   

Fico por algum tempo observando as janelas, os vidros, as telas de proteção para impedirem à entrada de pequenos insetos. Existe uma série delas, decoradas com plantas as mais diversas, colocadas nos desvãos enfeitando os resguardos dos parapeitos. Em outras, capto varais de tetos repletados por roupas coloridas dependuradas, e, em tantas mais, essas molecas em peças de gesso à imitação de “meninas namoradeiras”, os braços cruzados, como se debruçadas ao sabor do acaso, fiscalizando, num mutismo inextinguível, os passantes que vão e vem.    

Numa noite chuvosa, coisa de uma semana atrás, me lembro bem, abri o guarda-chuva e meti os pés para não me molhar tanto. Ouvi então um “psiu” benfazejo.  Por mais que procurasse de onde viera, esse aliciar, no vasto rol das comissuras, não consegui atinar de onde surgira. Esse gostoso sentimento repentino, para meu desassossego, se ampliou. A ponto de vir se multiplicando por noites em sequência, o que me deixa deveras cabreiro. Ainda agora, tantas noites depois da primeira vez, essa prática misteriosa se reproduz, se reitera, se acelera e me chega enigmática, preservado, quebra-cabeçado numa quimera quase utópica.

Em vão, sigo no encalço de descobrir enleado a tantas ventanas e aberturas, brechas e concavidades que se arreganham para mim, ao meu passar, quem sabe, num repente fortuito, em meio a três (…)  pontinhos, tenha a caridosa sorte de atinar de qual desses apartamentos abrolha essa cantada e melosa interjeição que me acena. Melhor dito, esse avocamento sorrateiro, encapotado num incógnito que mexe deveras com a minha insana e tresloucada imaginação. Espero, numa das minhas próximas vezes (ao passar refazendo o mesmo percurso), consiga ter mais sucesso. Enquanto isso não ocorre… Eu… Eu…
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital. 10-3-2020

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