Aparecido Raimundo de Souza
QUANDO TRANSITO PELOS becos e corredores entremeados dos prédios do conjunto habitacional onde
resido, vindo ou indo do apê da minha namorada, em direção ao meu, geralmente
tarde da noite, aproveito e espio compridamente como não querendo nada, para as
centenas de apartamentos que se descortinam diante de mim. Procuro neles um
rastro de qualquer coisa que me desperte para longe dessa agonizante solidão
que me devora. Reclamo, para mim mesmo, meu próprio veneno.
Alguns retiros surgem iluminados, outros nem tanto. O fato é que eles
dão, num plano com perímetro pré-definido, uma geral das cozinhas e salas,
banheiros e quartos. Me sinto, nessas horas, como uma bólide espião, a penetrar
na atmosfera terrestre, devassando, ferindo a intimidade de uma porção de
famílias que não conheço. Apesar disso, olho, vasculho, perscruto, disserto,
reivindico, evoco, disseco, escarneço, extasio, sinoptizo à procura de alguma
coisa. O que, exatamente? Não sei ao certo!
Em busca de algo inusitado? Talvez! Algum pormenor marcante que chame a
atenção. Difícil alinhar! Numa dessas buscas incessantes pelo anônimo oculto,
pelo omitido clandestino, dias atrás, capturei um casal fazendo amor num quarto
de uma unidade no primeiro andar. Não paro, todavia, diminuo os passos. Escuto.
Tudo ao meu redor vira uma espécie de gravador e eu tento memorizar esse prazer
momentâneo e etéreo. É como despertar de um marasmo até então entrevado e
cutucar a libido.
A mulher açoitada não grita. Contudo, eu posso ouvir a sua voz
ininteligível e adocicada enquanto está sendo vergastada pelo seu companheiro
de cama. Vem até mim, trazidos pelo silêncio da noite calma, gemidos
entrecortados, intervalados divididos em pequenos cortes dosados e espaçados.
Alopro. A nudez do momento como se temesse ser vista por olhos difusos, se
esconde em areia movediça dos meus sentidos em alerta. O rapaz, mais afoito e
voraz, dá a impressão de estar faminto de sexo. E está.
Como tal, faz com que o móvel que os acolhe, ranja sobre os próprios pés
em contato com o assoalho. Dentro dessa sintonia peculiar do apadrinhamento dos
corpos se interligando no mesmo amplexo do insaciável, e vandálico (que
certamente os regala as entranhas), eu viajo... Levito, voo longe, como um
pássaro que acabou de fugir de uma gaiola. Chego a me perder no firmamento
estrelado que me espia lá do alto. De outra feita, moldo aos meus ouvidos a voz
rouquenha de um homem na cozinha cantarolando Rick&Rener ao tempo em que
frita alguma coisa.
Nessas horas pela busca do inimaginável, eu finjo estar falando ao
celular. Essa loucura dos tempos modernos ajuda a encobrir o real fato da minha
presença àquela hora num lugar indevido. Quando a fuzarca me interessa, e o
ócio dos meus imaginosos se faz num instante cheio de buracos, neles, me perco
da realidade. Freio os chinelos numas estancadas básicas em nome do
desproposital, fazendo com que o trajeto com pouco mais de cinco ou dez minutos
se prolongue por uns vinte.
Descubro numa dessas peregrinações, logo na primeira curva antes da minha
portaria, alguém tomando banho. A luz acesa na unidade desnuda aos meus
sentidos curiosos o chuveiro jorrando a água em abundância, o que me permite
distinguir apenas uma parte da cabeça. É, sem dúvida, uma mulher. Com seus
cabelos longos, seguidos dos movimentos rápidos do abaixar e do se levantar em
gestos cadenciados, me leva a supor que ela deva estar se ensaboando. No final
desse intercurso, usque com vistas para os janelões panorâmicos de minha sala,
há um apartamento de fundos e uma só janela frenteada para o beco.
Com certeza o cômodo de uma adolescente. Como sei? O ambiente todo cor de
rosa, praceja uma cortina branca e rala, de tecido fino, entreaberta, através
da qual me estupra a luminosidade da tela de uma televisão ligada num canal
pornográfico. O panorama desse aposento se faz renovado de uma noite para
outra. Ora, ao passar indo namorar, ouço essas músicas confusas, ora em
regresso, chegam ao meu nariz resquícios de uma fumaça diferenciada, tipo esses
cigarrinhos que os jovens gostam de fazer uso para saírem do chão e
desembestarem em busca de sabe-se lá o quê.
Fico por algum tempo observando as janelas, os vidros, as telas de
proteção para impedirem à entrada de pequenos insetos. Existe uma série delas,
decoradas com plantas as mais diversas, colocadas nos desvãos enfeitando os
resguardos dos parapeitos. Em outras, capto varais de tetos repletados por
roupas coloridas dependuradas, e, em tantas mais, essas molecas em peças de
gesso à imitação de “meninas namoradeiras”, os braços cruzados, como se
debruçadas ao sabor do acaso, fiscalizando, num mutismo inextinguível, os
passantes que vão e vem.
Numa noite chuvosa, coisa de uma semana atrás, me lembro bem, abri o
guarda-chuva e meti os pés para não me molhar tanto. Ouvi então um “psiu”
benfazejo. Por mais que procurasse de
onde viera, esse aliciar, no vasto rol das comissuras, não consegui atinar de
onde surgira. Esse gostoso sentimento repentino, para meu desassossego, se
ampliou. A ponto de vir se multiplicando por noites em sequência, o que me
deixa deveras cabreiro. Ainda agora, tantas noites depois da primeira vez, essa
prática misteriosa se reproduz, se reitera, se acelera e me chega enigmática,
preservado, quebra-cabeçado numa quimera quase utópica.
Em vão, sigo no encalço de descobrir enleado a tantas ventanas e
aberturas, brechas e concavidades que se arreganham para mim, ao meu passar,
quem sabe, num repente fortuito, em meio a três (…) pontinhos, tenha a caridosa sorte de atinar
de qual desses apartamentos abrolha essa cantada e melosa interjeição que me
acena. Melhor dito, esse avocamento sorrateiro, encapotado num incógnito que
mexe deveras com a minha insana e tresloucada imaginação. Espero, numa das
minhas próximas vezes (ao passar refazendo o mesmo percurso), consiga ter mais
sucesso. Enquanto isso não ocorre… Eu… Eu…
Título e texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de São
Paulo, Capital. 10-3-2020
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