terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Osso e carne

Aparecido Raimundo de Souza

EDDIE AGORA SÓ PENSAVA na Mulher Cadeira e nada o demovia dessa ideia. A família apostara que logo ele se esqueceria dessa nova garota como as demais que passaram pela sua vida. De uma bem recente, ainda restavam marcas indeléveis. A Mulher Samambaia. Isso mesmo. Eddie estivera caído por ela, a ponto de fazer algumas loucuras. Quase acabou preso. Por fim, se desencantou da Dani Souza, quando soube pelos amigos e confirmou mais tarde, ao ler em revistas especializadas em celebridades, que ela engravidara do jogador Dentinho.

Desde então Dani passou a representar página virada em sua vida. O negócio, agora, era a esfuziante e não menos bela Mulher Cadeira.  Amor à primeira troca de olhares mais delongados. A tal da Mulher Cadeira, trabalhava num shopping movimentadíssimo, como vendedora numa loja de celulares. Eddie passou, deu uma olhada básica pela vitrine, voltou, tornou a encarar. Na terceira cruzada, entrou porta adentro, chegou com tudo para uma sondada mais de perto no terreno.

Juraria, os dedinhos cruzados, que a garota lhe endereçara um sorriso meio tímido, todavia, forte o bastante para cair matando e investir no mais novo pedaço de mau caminho. Assim fez. Como quem não quer nada, se achegou. Com fingido interesse por um determinado aparelho, começou a fazer perguntas e mais perguntas. Havia uma enorme quantidade de celulares nas mais variadas cores e estilos espalhados numa grande bancada expositiva.
- Com esse aqui o senhor tem acesso à Internet, ao Google, ao Youtube e ao Facebook...
- Conseguirei ver meus recados no MSN e no WhatsApp? 

E a encantada, sorridente e solícita:
 - Não só verá como o senhor igualmente, em tempo real, poderá responder e-mails e, claro, interagir com seus amigos, parentes, namorada... Tem uma função pouco conhecida. A “Citação”. É um recurso para responder mensagens específicas.
- Entendi. E este?
- Sofisticadíssimo! Além de tudo o que acabei de enumerar, essa preciosidade vem equipado com televisão, rádio FM, MP4, MP5, MP6, MP8 e MP10.  Gostou do modelo?

Eddie, visivelmente encabulado:
- Por favor, nada de senhor...
- Hábito.
- Eu compreendo, mas, por gentileza...
- Ok. Sem o senhor...
- Não me disse seu nome?
- Aryane.

Eddie aproveitou a deixa do nome. Poderia ser um caminho. Por que não tentar?
- Como a SteinKopf, a capixaba de Vila Velha que ganhou fama como uma das Panicats do “Pânico na TV”, da Band?
- Quem dera! Minha beleza passou longe daquela musa.
- De forma alguma. Particularmente acho você mais refinada. Sem mencionar a elegância e o porte de princesa.
- Me sinto lisonjeada. Só não imagine aí na sua cabecinha que me preocupo com o biquinho de meus seios...

- Por que, a Aryane que conhecemos da televisão tem problemas com essa parte do corpo?
- Sim.
- Desconhecia esse particular... Vivendo e aprendendo.
- Pois é. Nem tudo é o que parece ser. Minha xará tem esse pequeno contratempo.
- Volto a repetir: você é mais atraente que ela.
- O senhor está sendo bondoso.
- Não, sincero.

Aryane se empolgou com esse enaltecimento:
 - De verdade?
- Acredite! De verdade. Mata uma curiosidade?
- Até duas.
- A que horas sai?
- Às 22 horas. Por...?
- Me daria o prazer de poder vir lhe buscar?

- Com certeza. O prazer será todo meu.
- Espero que não tenha um namorado ciumento...
- Sem compromisso. Livre, leve e solta...
- Sendo assim, aqui estarei plantado nesse horário, à sua espera.
- E eu à sua chegada.
A partir desse bate papo, Eddie entrou em desespero. A impressão que o atormentava era a de que o relógio marcaria meia noite, mas, as dez que ele tanto esperava, nem por reza braba.

Finalmente, após longa e cansativa exaustão, o instante sonhado. Donzela à tira colo decidiram dar uma parada na praça de alimentação. Ela pediu refrigerante. Ele cerveja. Ela optou por batatinhas fritas. Ele por uma porção de calabresa. Final de noite, quase onze e meia, shopping fechando as portas, ponto de ônibus lotado para embarque. Hora da despedida. Cada um seguiria para sua casa.
- Verei você de novo?
Foi a partir daí que Aryane contou que, pela manhã, das oito até as cinco fazia freelancer em comerciais como modelo para uma empresa de móveis e utensílios domésticos.

Nos comerciais ela protagonizava a figura da Mulher Cadeira. À noite, das dezenove às vinte e duas horas, encarava uma ocupação extra como vendedora na loja de departamentos onde ele a vira pela primeira vez.
- Espera aí. Eu ouvi direito? Mulher Cadeira?
- Isso mesmo.
- E o que você faz?
- Me passo por uma cadeira, onde o público entra para comprar e acaba dando comigo aglomerada no meio de mesas, sofás, estantes, camas, guarda roupas, etc., etc...

Eddie ficou meio que espantado e pasmo:
- E esse pessoal senta em você?
- Literalmente!
- Meu Pai Santíssimo! E sua estrutura suporta?
(Risos)
- Tipo assim: fico de joelhos, estico os braços e me prostro como se fosse uma peça de venda, evidentemente com um pano colorido me cobrindo todo o corpo, da cabeça aos pés. Todo mundo vem, me olha, e uns mais afoitos acaba dando uma sentadinha... Ou pelo menos tentando...

- Nunca se machucou?
- Só de mentirinha... Aí comunico a minha gerente, saio por quinze ou vinte minutos, dou uma volta, como alguma coisa, olho algumas lojas...
- Entendi. Legal. Nossa, que susto!
- Lembra que falei que nem tudo é o que parece ser?
- Com todas as letras. E quanto a mim? Conseguirei dar uma sentadinha?
- Você quer?
- Muito!

E Aryane, se abrindo como mala velha:
- Ta legal. Eu deixo. Prometo.
- Aguentará meu peso?
- Só você sentando pra gente saber.
- Ei gata, vou ser direito e reto, sem mimimis... Já que você disse que não tem ninguém... E levando em conta que caí de quatro por sua pessoa... Quer namorar comigo?
 O ônibus que a levaria embora nesse momento pintou no pedaço. Ela correu afoita, em meio a uma massa enorme de pessoas que, igualmente, pretendiam embarcar.

Eddie tentou correr atrás dela, insistindo na pergunta, aos berros e gritos:
- Você não respondeu. Aryane, Aryane: quer namorar comigo?!
A garota, todavia, afobada para embarcar, não teve tempo de dizer sim ou não.  Eddie a perdeu entre empurrões de pernas e corpos. A condução se afastou e ele ficou ali por algum tempo, parado, triste, vendo o coletivo se distanciar. Seu coração de homem, no momento seguinte, se encheu de pesada e densa solidão, enquanto lágrimas caiam por sua face em indisciplinada abundância.     
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Rio de Janeiro.  25-2-2020

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