quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Já nascemos mortos

Vitor Cunha

A eutanásia é inevitável. É preciso estarmos cientes disso. Não há forma de travar os “avanços civilizacionais” em democracias liberais num mundo globalizado. Se não for aprovada amanhã, será no próximo ano, daqui a dois anos, daqui a quatro…, mas será sempre aprovada. O nosso desígnio nacional é, como já é há muito tempo, o de legislar a modernidade.

Em Portugal, o normal é aprovarem-se coisas antes que a generalidade das pessoas sinta necessidade de as compreender. Não é bem uma democracia, o que nem me parece uma falha: é o que é, uma espécie de ditadura senatorial que perpetua a luta de classes divididas entre os iluminados, que querem o bem da sociedade, e os indiferentes às causas, que vivem a sua vidinha bem longe da decrepitude.

Caso haja um referendo à eutanásia, é possível que a participação seja bastante reduzida e o resultado se divida entre o “sim” e o “não”. Até é bastante plausível que vença o “sim”. Há um motivo para isso, que é o do mundo contemporâneo exigir uma simplificação da vida a estados permanentes de bem-estar.

Não dizemos que estamos felizes, dizemos que somos felizes, como se a vida se reduzisse a um estado de perpétua instagramização. Quem quer ver fotos do momento em que não aguentamos mais e mijamos nas calças em redes sociais? Quem quer ver aquela massa instantânea que atiramos para o micro-ondas quando ninguém está a ver? Quem quer ver uma boazona de biquini a verter uma pinga de vinho de pacote para um copo do Mickey Mouse enquanto desoladamente atiramos o hamburger congelado para a frigideira depois de buscarmos os miúdos à escola?

A vida resume-se a um perpétuo estado de férias paradisíacas intagramáveis. É um mundo em que ninguém defeca. Ninguém sofre, ou se sofre, é de forma extraordinariamente contrastante com o estado permanente de felicidade que impomos a nós próprios.

É apenas natural que se legalize eutanásia e que ao longo dos anos esta se venha a generalizar para toda e qualquer forma percepcionada de sofrimento. Quero eutanásia porque o Bobi morreu, o meu menino. Não aguento o sofrimento.

Sempre fomos uma sociedade que afasta o mais possível a morte das contemplações mentais de cada um. Agora, tornamo-nos numa sociedade que não contempla sofrimento como parte integrante da vida. No futuro, seremos completamente unidimensionais – gay, preto, cristão, liberal, mulher – e construídos para a obsolescência programada. Cervantes já o sabia no século XVII. O Velho do Restelo é sistematicamente visto como uma personagem do velho mundo.

A eutanásia é o menor dos nossos males. Na realidade, é só um sintoma, nem é o essencial da doença.
Título, Imagem e Texto: Vitor Cunha, Blasfémias, 19-2-2020

Bilhete de ida, by Henrique Monteiro

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