segunda-feira, 13 de setembro de 2010

R$ 520,00 por uma vida

Martha Mendonça, com Cristiane Segatto, Revista Época, 10 de setembro 2010

A história absurda do menino de 14 anos que morreu porque as autoridades se recusaram – mesmo com ordem da Justiça – a fornecer um aparelho simples para ajudá-lo a respirar 


Maria das Graças e Antônio na sala de casa coma foto de Fabinho.
 Eles sentem tristeza e revolta coma perda do filho

Eram 16h06 do dia 9 de agosto quando Fábio de Souza do Nascimento morreu de insuficiência respiratória. Ele viveu 14 anos, com os pais e a irmã mais velha, num condomínio popular de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Gostava de pipa e videogame, de desenho animado e futebol. Torcia pelo Flamengo. Adorava churrasco e misto-quente. Sonhava em ser motorista de caminhão.
Um mês depois de sua morte, a pipa rosa que Fabinho gostava de empinar está presa na parede, na entrada da sala do sobrado humilde de seus pais. É o símbolo de uma vida interrompida, de um drama familiar – e também de um crime. Intimadas pela Justiça a fornecer a Fabinho um balão de oxigênio que poderia ter lhe salvado a vida, ao custo de R$ 520 por mês, autoridades dos governos federal, estadual e municipal discutiram, procrastinaram, ignoraram a determinação judicial até que fosse tarde demais.
O caso de Fabinho revela as falhas trágicas do sistema de saúde no Brasil, que pela lei deve garantir tratamento a qualquer cidadão, mas na prática tem de lidar com recursos escassos, que, em muitas ocasiões, levam ao descaso com as ordens judiciais. Submetido a um transplante de medula há quatro anos, ele desenvolveu uma doença pulmonar. Necessitava de um balão de oxigênio em casa. Seus pais conseguiram o equipamento na Justiça. Mas nunca o receberam. A União, o Estado e o município do Rio de Janeiro levaram seis meses empurrando a responsabilidade um para o outro. Aí ficou tarde demais.

Fabinho não teve uma vida fácil. A mãe – Maria das Graças Ferreira de Souza, mineira de Ponte Nova, uma dona de casa de 57 anos – e o pai – Antônio Serafim Nascimento, de 56, paraibano que faz bicos como pedreiro – se alternam ao contar sua história. De vez em quando param de falar para chorar. Outras vezes sorriem juntos com alguma lembrança. Com apenas 1 ano e 7 meses, o filho foi diagnosticado com câncer. Tinha linfomas pelo corpo e teve de passar por vários tratamentos. Até que aos 10 anos passou por um transplante de medula, no Instituto Nacional de Câncer (Inca). A irmã, Fiama, três anos mais velha, foi a doadora. A cirurgia, bem-sucedida, parecia ser o início de uma nova vida para ele. Não foi.
Perto do Natal de 2006, quando Fabinho parecia ter pela primeira vez uma rotina normal de criança, começou a ter tosse constante e dificuldade de respiração. O diagnóstico: doença do enxerto contra-hospedeiro, uma reação do organismo às células recebidas no transplante. Ela pode atingir vários órgãos. No caso de Fabinho, foi o pulmão. Após alguns períodos de tratamento no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, os médicos recomendaram que ele tivesse em casa um aparelho concentrador de oxigênio. “Era uma forma de dar dignidade a sua vida e protegê-lo de crises respiratórias mais graves e fatais”, diz a pneumologista Marina Andrade Lima, que o atendeu nos últimos meses de vida e fez o laudo médico para a Justiça. Com o aparelho, as crises de Fabinho poderiam ser controladas, e, na avaliação dos médicos, ele tinha grandes chances de viver muitos anos.
Maria das Graças e Antônio procuraram a Defensoria Pública da União no Rio de Janeiro para entrar com uma ação. A Justiça lhes deu ganho de causa em dois dias: a União, o Estado ou o município do Rio deveriam fornecer o equipamento – imediatamente. Dois meses depois, em abril, a Defensoria telefonou para os pais de Fabinho. O aparelho não chegara. A União se defendia na Justiça dizendo que o Sistema Único de Saúde (SUS) descentraliza esse tipo de demanda, e quem devia pagar o aparelho era o Estado ou o município. O Estado apresentara decisões judiciais anteriores que dirigem ao município a atribuição. O município alegava que, por se tratar de um fornecimento de “alto custo” e “média complexidade”, era de responsabilidade estadual (leia o quadro abaixo) . Um aparelho desse tipo custa R$ 3.800. Ele requer um cilindro de alumínio, que custa R$ 50. É no cilindro que fica a carga de oxigênio, que deve ser renovada todo mês, a um custo de R$ 40. O Poder Público em geral não compra aparelhos, aluga-os. O preço, nesse caso, seria de R$ 520 por mês.
A Defensoria recorreu, pedindo o sequestro da verba necessária ao aluguel do equipamento e a prisão dos secretários que não cumpriram a ordem da Justiça. Dado o jogo de empurra entre as autoridades, o juiz da 10ª Vara da Justiça Federal, Fábio Tenenblat, decidiu que o município deveria dar o aparelho a Fabinho em 48 horas. Três meses depois, em agosto, Fabinho ainda não tinha o equipamento. E estava mais debilitado. Tinha falta de ar e cansaço. O nebulizador ficava ligado quase ininterruptamente, mas já não funcionava como paliativo. Antônio levou o filho ao Inca para receber oxigênio. Precisou carregá-lo nas costas, da Central do Brasil, onde o ônibus vindo de Jacarepaguá os deixou, até a Praça da Cruz Vermelha, onde fica o hospital – a 1 quilômetro e meio de distância.
No dia seguinte, a crise voltou, e Antônio foi de novo à Defensoria, revoltado. A advogada Maria Cecília Lessa da Rocha fez nova comunicação à Justiça no dia 5 de agosto, uma quinta-feira. No fim de semana seguinte, a família de Fabinho teve um Dia dos Pais ruim. Ele mal andava e estava sem fome. Algo raro, segundo a mãe. Mesmo nas crises, Fabinho sempre fora boa boca. A madrugada foi de terror, diz Maria das Graças. Às 4 horas, Fabinho tentou levantar-se e desmaiou. A mãe chamou uma ambulância, que chegou em meia hora. Ainda na porta de casa, o menino teve uma parada cardíaca. Foi reanimado, mas sua resistência havia caído muito. Morreu no meio da tarde, no Inca, de insuficiência respiratória.

A Copa do Mundo vem aí! 

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