sexta-feira, 1 de abril de 2011

[O cão do Sócrates] A engenharia da Greve Geral

António Ribeiro (O cão de Sócrates)
O meu dono não viu a greve geral de 24 de novembro de 2010. Passou o dia fechado no seu gabinete a ver uma longa-metragem. É um filme de 17 horas que foi preparado pelos seus assessores e intitulado O Dia Mais Longo e Lindo e que tem na capa da caixa (com quatro DVD) uma fotografia do sr. Primeiro-ministro muito sorridente, mais novo e sem olheiras. Não é a primeira vez, desde que cá estou, que o meu dono vê este filme. Sempre que há um grande momento de crise no país o sr. Primeiro-Ministro liga o leitor de DVD e enfia-se no gabinete a ver o filme. Eu já o tentei ver duas vezes, mas acabo sempre por adormecer ao fim de 10 minutos. A primeira vez foi quando saíram as notícias maldosas que punham em causa o diploma do meu dono (neste caso esteve dois dias a ver o filme!), a outra quando fizeram aquela malandrice de dizer que o sr. Primeiro-ministro tinha feito uns favorzinhos para acelerar a construção de um centro comercial na outra banda.
Desta vez prometi a mim mesmo que ia ver o filme de uma ponta a outra. Passei a manhã a entrar e a sair dos gabinetes cá da casa a lamber todas as chávenas de café que encontrei e em vez de me deitar de barriga no chão, como fiz das outras vezes, fiquei sentado a olhar para o ecrã de televisão. O filme é uma colagem de imagens de arquivo da emissão da RTP do dia 20 de fevereiro de 2005 sobre as eleições legislativas que o meu dono ganhou com 45 por cento dos votos. Lá aparece o engenheiro Sócrates a votar (esta imagem repete-se mais 5 vezes ao longo do filme), o engenheiro Sócrates a comentar o ato eleitoral (4 vezes), o engenheiro Sócrates reunido na sede do partido (7 vezes), o dr. Santana Lopes a reconhecer a derrota do seu partido e a felicitar o engenheiro Sócrates (12 vezes), o discurso de vitória do engenheiro Sócrates (14 vezes) e a aparição vitoriosa do engenheiro Sócrates à janela do hotel (23 vezes). A parte final do filme (acho que ocupa todo o quarto DVD) mostra a tomada de posse do sr. Primeiro-ministro e o discurso que fez nessa saudosa cerimónia (25 vezes). Foi assim que o meu dono passou o dia da greve geral. Eu fiquei contente por ter aguentado a maratona de DVD sem adormecer, embora depois tenha dormido 14 horas seguidas.

Este foi um acontecimento a que só um número muito restrito de colaboradores do meu dono teve acesso. Mais ninguém no país teve conhecimento deste facto. Não pude, por isso, deixar de sorrir quando ouvi os comentadores políticos afirmarem que o sr. Primeiro-ministro tinha montado um gabinete de crise e seguido a greve hora a hora.
Apesar de o meu dono não ter dado pela greve, aquele dia não lhe correu nada bem. Foi, até, um momento de total derrota da política seguida pelos. Primeiro-ministro. Os números da adesão à jornada de luta, avançados pelas centrais sindicais, mostraram que cerca de 2 a 3 milhões de portugueses aderiram à greve. Ora, isto significava que, naquele final de ano, ainda havia uns bons milhões de portugueses que tinham emprego. E foi aqui que o meu dono falhou rotundamente. Apesar do esforço dos seus Governos em aumentar significativamente o número de desempregados de forma a acabar, de uma vez por todas, com os protestos dos trabalhadores e impedir qualquer tipo de greve geral, o meu dono não tinha conseguido ir além do insignificante número de 600 mil desempregados, o que colocava a taxa de desemprego nuns míseros 11 por cento.
Perante este fracasso, não admira que o meu dono esteja sempre a invejar o sucesso alcançado pelo vizinho primeiro-ministro espanhol que já conseguiu uma taxa de desemprego de 20 por cento com cerca de 4,5 milhões de desempregados: “Los portugueses são unos ingratos, José Luís. Estão haciendo grieves e não mi agradiecem por ainda estiarem unos milhionis com emprieguios! Como consiegues tu fazier tantios desemplegadios, companhiero?”. Foi só uns dias depois da greve que o meu dono me confidenciou o que pensava: “Sabes, cão, quem esteve por detrás desta greve foi o engenheiro Belmiro de Azevedo, pá!”. Apesar de andar à procura de um novo dono e das nossas relações andarem muito tremidas, é nestas alturas que tenho de reconhecer que o sr. Primeiro-ministro tem um faro político como ninguém, capaz de deixar muitos de nós envergonhados.
António Ribeiro, in "O cão de Sócrates", página 153
Digitação: JP
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