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Mao Zedong proclama a criação da República Popular da China em 1949 |
Carlos Alberto Sardenberg
Nem convém falar assim, em
público, mas há momentos em que o pensamento rompe nossas barreiras e cogita da
eficácia do despotismo esclarecido. A gente observa a desgraça que políticos
democraticamente eleitos espalham pelo mundo afora e imagina: e se tivéssemos
um líder com capacidade intelectual e visão de futuro absolutamente extraordinárias,
uma pessoa do bem, com senso de justiça social? Esse líder, com poderes
absolutos - quer dizer, sem os constrangimentos de lidar com políticos
interesseiros e populistas - não poderia fazer um imenso bem ao país?
Está falando da China - é,
pelo menos, o que se diz lá mesmo. O primeiro déspota teria sido Deng Xiao
Ping, que no final dos anos 70 venceu a camarilha dos herdeiros de Mao, e
lançou as reformas econômicas pró-capitalismo que trouxeram a China à posição
de hoje. Além disso, Deng teria solucionado muito bem um problema difícil para todos
os déspotas, esclarecidos ou não, que é a sucessão.
Deng não deixou um sucessor,
mas um grupo, um sistema, instalado no Partido Comunista. Assim, a China
emplacou três décadas crescendo a taxas anuais de 10% e, mais importante,
retirou da pobreza algo como 800 milhões de pessoas - os chineses que hoje
vivem na parte urbana e desenvolvida.
E, para deixar o leitor ainda
mais perturbado com este pensamento tão incorreto quanto tentador, o sistema
chinês oferece neste momento mais duas demonstrações de sua eficiência política
e visão de futuro. Primeira, a sucessão: ao longo deste ano, de maneira
organizada e pré-anunciada, serão substituídos o presidente do país e chefe do partido,
Hu Jintao, e o primeiro-ministro, Wen Jiabao.
A outra demonstração é um
surpreendente estudo estratégico que o governo chinês encomendou junto ao Banco
Mundial - e que foi preparado por economistas do banco e do Centro de Pesquisa
de Desenvolvimento do Conselho de Estado da China. O título: "China 2030,
construindo uma sociedade de alta renda, moderna, harmoniosa e criativa."
É o que parece, uma tentativa
de antecipar o futuro, um documento de 468 páginas, "pensando" como a
China pode saltar de um país de renda média para alta, ou seja, de emergente para
rico. Parte da constatação de que o modelo dos últimos 30 anos - trabalho duro,
salário baixo, muita economia, pouco consumo, tudo exportado - não vale mais.
Trata-se, pois, de uma troca
organizada de sistema.
Reparem: o Banco Mundial é
parte do sistema financeiro global, junto com o FMI e Banco de Compensações
Internacionais, o banco central dos bancos centrais. Logo, trata-se do coração
do capitalismo global. E, como seria de se esperar, o estudo sugere menos
estado e mais mercado, menos governo agindo diretamente na economia e na
sociedade e mais espaço para a ação dos indivíduos.
Prestaram atenção? Esse é o
estudo preparado com a autorização e o apoio do Conselho de Estado da ditadura
do PC chinês. Claro, o relatório não propõe a derrubada da ditadura e a
introdução da democracia, mas sugere que não haverá como escapar de uma
sociedade mais aberta, em consequência mesmo do enriquecimento e da formação de
cidadãos mais expostos ao mundo.
Tudo considerado, como
ficamos? A atual versão chinesa do despotismo esclarecido - regime de monarcas
europeus do século 18 - pode ser repetida em outros países?
A resposta mais comum é
"não". De maneira geral, entende-se que o caso chinês é único sob diversos
aspectos. Por exemplo, como sair do desastre sangrento do período maoista para
uma democracia liberal clássica, em um país de mais de um bilhão de pessoas, em
situações tão diferentes? E como promover a mudança dramática de uma economia
rural muito pobre para outra industrializada sem uma marcha forçada pelo egime?
Finalmente, a China seria
única pela sorte. Acabou que o poder ficou nas mãos de um Deng Xiao Ping. E se
a luta interna tivesse terminado com a vitória da viúva de Mao, Jiang Qing?
Isso poderia perfeitamente ter acontecido e a China hoje seria uma imensa
Coreia do Norte.
O que nos leva ao outro lado
da história. Não se podem colocar as fichas em um regime que depende tanto de
acasos históricos. Se começa com um déspota estúpido e mau caráter, fica quase
impossível derrubá-lo. Observem como é difícil afastar os ditadores dos países árabes.
No Brasil, já tivemos ditaduras variadas, mas não esclarecidas.
Além disso, é preciso colocar
na balança os custos da expansão chinesa, a começar pelas pessoas assassinadas
na Praça Tiananmen, que justamente reivindicavam mais abertura e benefícios
econômicos. É difícil, entretanto, fazer esse balanço: a ditadura esconde seu passivo.
Em resumo: a China já está aí,
se prepara para o futuro e ainda nos perturba. Na economia e na política.
Título e Texto: Carlos Alberto
Sardenberg, O Globo , 01-03-2012
Colaboração: Rafael Picate
A guerra civil chinesa terminou em 1949, quando o Partido Comunista chinês tomou o controle da China continental e o Kuomintang (KMT) recuou para a ilha de Formosa (Taiwan). Em 1º de outubro de 1949, Mao Tse-tung proclamou a República Popular da China, declarando que o "povo chinês se pôs de pé". O termo "China Vermelha" foi um nome frequentemente usado para a China dentro do bloco capitalista, especialmente até meados dos anos 1970, quando as relações com o Ocidente melhoraram.
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