José Manuel Fernandes
Renzi perdeu o referendo, e perdeu bem: a
reforma constitucional era errada e perigosa. Só a cegueira e arrogância das
elites europeístas permitiu que nessa derrota se visse apenas a vitória
populista
Primeiro que tudo, absoluta
claridade: se tivesse podido votar no referendo italiano, votaria “não” sem
qualquer hesitação. Ou estado de espírito. E fá-lo-ia porque a reforma proposta
pelo primeiro-ministro demissionário Matteo Renzi é uma reforma errada e, no
caso italiano, perigosa. Muito perigosa mesmo.
O que é extraordinário em todo
o psicodrama que se criou em torno desta consulta eleitoral é que enquanto os
jornais, as rádios e as televisões se enchiam de previsões catastrofistas sobre
as consequências de um “não”, poucos ou quase nenhuns se preocuparam em
explicar o que estava em causa, o que ia ser votado, quais os argumentos a
favor e contra. O guião foi sempre o mesmo: de um lado, um Renzi europeísta; do
outro, um bando de populistas. Poucos se interrogaram sobre o porquê de figuras
como Mario Monti irem votar “não” – essa “dissidência” não encaixa no guião do
momento, em que tudo o que sai da norma é de imediato catalogado como
“populista” ou mesmo de “extrema-direita”.
O Financial Times, essa bíblia
da elite europeia, escrevia aqui há uns dias que “os eleitores são hoje o elo
fraco da Europa”. É uma formulação verdadeiramente extraordinária, pois coloca
o mundo de pernas para o ar. O elo fraco da Europa é a própria Europa, ou mais
exactamente uma União Europeia construída de forma pouco democrática, para não
dizer quase autocrática. Ora uma Europa onde as elites têm medo dos cidadãos
não é muito diferente da França da corte de Luís XVI, a quem a plebe
horrorizava – é uma Europa surda à realidade, autista na sua autossuficiência.
É por isso necessário saber
separar o trigo do joio, e podemos começar precisamente por Itália e pelo seu
referendo. Eu votaria “não” porque – tal com os editorialistas da The Economist e do The Observer, para citar dois jornais de orientações
diferentes – penso que, primeiro, a Itália precisa sobretudo de reformas
económicas; e, depois, que a solução para os bloqueios do sistema político
italiano não passavam por alterações constitucionais que davam excessivo poder
ao primeiro-ministro e ao seu partido.
Em Itália os governos são
pouco estáveis? São: vamos para o 63º executivo em 70 anos. Mas durante muitas
décadas a Itália funcionou e cresceu mesmo com essa instabilidade governativa.
Pior, bem pior, era a corrupção endémica, mas essa sofreu um rude golpe com a
operação “Mãos Limpas”, que limpou o sistema político e transformou o mapa
partidário. Mais: a instabilidade governativa é filha do cuidado que os autores
da Constituição italiana tiveram para evitar uma excessiva concentração de poderes,
pois a memória dos tempos de Mussolini estava bem fresca.
A reforma constitucional que
Matteo Renzi propunha não se limitava a reequilibrar um regime constitucional
que, passados 70 anos, pode precisar de um ajuste: subvertia literalmente o
sistema de pesos e contrapesos que limitam o poder do executivo. Conjugada com
a lei eleitoral que daria um enorme bónus eleitoral ao partido mais votado,
permitiria que uma força política com o apoio de um terço do eleitorado ou
pouco mais pudesse ter uma maioria absoluta na câmara baixa do Parlamento ao
mesmo tempo que a câmara alta passava a ter um poder quase decorativo, como o
que já hoje tem o Presidente da República, e com as regiões perderem também
prerrogativas.
Não deixa de ser paradoxal que
um primeiro-ministro que chegou ao poder através de uma viragem orquestrada no
interior do seu próprio partido tenha querido criar um sistema próximo de uma
“ditadura de primeiro-ministro”. Tal como é significativo que, ao mesmo tempo,
o Renzi “reformista” tenha há muito estava desaparecido em combate, aparecendo
agora a adoptar políticas populistas – isso mesmo: populistas – destinadas a
tentar recuperar apoio popular a tempo de ganhar o referendo. Perdeu a sua
aposta, e perdeu de forma clamorosa. E felizmente que perdeu agora, pois era
pior – digo eu hoje por hoje, com aquilo que hoje se sabe – que perdesse daqui
por uns tempos, em próximas eleições e para um Movimento 5 Estrelas em alta nas
sondagens.
O equilíbrio de poderes é um
dos aspectos mais sensíveis de uma arquitectura democrática, sendo que a
democracia é o regime do governo limitado pela lei e por outros poderes que o
fiscalizam e controlam. Não é o regime do chefe referendado em eleições, por
mais livres e justas que estas sejam.
Escreveu-se assim direito por
linhas tortas – isto é, evitou-se um mal maior através de um mecanismo
referendário, o tal que por definição é susceptível de ser deturpado por
argumentos populistas.
Mas não me fico por aqui. A
derrota das elites europeias neste referendo, tal como a sua derrota no
referendo do Brexit, não teve como consequência a catástrofe económica que logo
se abateria sobre os povos mal comportados e, por arrasto, todos nós. A
economia do Reino Unido continua a comportar-se melhor do que a da zona euro e,
sendo ainda cedo para perceber o que se vai passar em Itália, no dia a seguir
ao referendo não houve nenhuma reacção de pânico.
É pois altura de serenar e
procurar separar o trigo do joio. O populismo é, não se tenha dúvida, um “espectro que paira sobre a Europa”, como notava
recentemente o Journal of Democracy,
mas não podemos cair da tentação de os enfiar todos no mesmo saco, de os tratar
todos da mesma forma. Pode ser muito conveniente para os que condenam qualquer
desvio à ortodoxia europeísta, mas a verdade é que não existem diferentes tipos
de populismos (nesse mesmo número do Journal
of Democracy há mesmo um interessante ensaio do cientista político grego
Takis S. Pappas a esse propósito), como há sólidos argumentos democráticos
entre os cépticos da construção europeia.
Há muitos anos que venho
defendendo a necessidade de as elites europeias escutarem com humildade a
mensagem que lhes está a ser enviada pelos eleitorados. Mais: como a imprensa
dos Estados Unidos parece começar a reconhecer, é igualmente importante que os
jornalistas deixem de circular apenas entre essas elites e procurem ir ao
encontro dos que não se sentem representados pelos actuais sistemas políticos –
algo que só depois do choque da eleição de Donald Trump alguns parecem
dispostos a fazer.
Ora o que continuo a notar é o
contrário. No dia em que o candidato da direita radical austríaca recolhe 47%
dos votos numa eleição presidencial, deitam-se foguetes e há mesmo quem titule
que a “maré” está a virar. Esta cegueira é inquietante pois não permite
perceber o que levou eleitores tradicionais, de décadas, dos sociais-democratas
e dos cristãos-democratas, a votarem no candidato do FPÖ. Ou a não entenderem
que a eleição de Alexander Van der Bellen, o candidato “verde”, não se deve ao
seu “cosmopolitismo” europeísta, antes a um voto contra Norbert Hofer. Os
sentimentos que sustentaram o crescimento do FPÖ não desapareceram de um dia
para o outro e haverá um preço elevado a pagar se não o percebermos.
De resto, repito, falar de
“populismos” começa a ser a forma mais confortável de certas elites europeias
fazerem ouvidos moucos às preocupações reais dos eleitorados.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
6-12-2016
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