Paulo Tunhas
Os princípios, os bons, excelentes e
magníficos princípios que nos põem tão contentes connosco, dispensam-nos
demasiadas vezes de reflectir sobre a nossa responsabilidade.
O pior título jamais dado a um
livro é indiscutivelmente o da autobiografia do poeta chileno, e Nobel da
Literatura, Pablo Neruda: Confesso que vivi. Durante décadas pensei
assim e continuo a pensá-lo. Mas, como em muitos casos destes com palavras, a
razão da detestação permaneceu-me em parte vaga. Hoje apeteceu-me perceber
melhor.
Há, em primeiro lugar, o
flagrante e ostensivo contentamento consigo mesmo. Como coisa distinta da
expressão da felicidade, as manifestações de exagerado contentamento consigo
mesmo, quando não são pura e simplesmente ridículas, do pior ridículo, tendem a
irritar. Porquê? Porque mostram que o sujeito que assim se vê não quer deixar
transparecer, mesmo sublimado de uma maneira qualquer, o que na sua vida, como
na vida de todos nós, foi medo, erro, humilhação, fracasso, falta de respeito
pelos outros, cobardia e outras coisas assim igualmente desagradáveis. O
contentamento consigo mesmo (como coisa distinta da expressão de felicidade,
insisto) irrita pela suspeita imediatamente provocada de ocultações mais ou
menos conscientes.
Não, é claro, que a exibição
extensa e minuciosa de desgraças e sofrimentos se recomende verdadeiramente. A
parcimónia no capítulo é até aconselhável. Há, ainda por cima, como Espinosa, o
filósofo, nos explicou, boas razões para não cedermos à triste paixão
retrospectiva da culpabilidade e a outros arrependimentos vários. O género História
das minhas calamidades (um título de que sempre gostei e que, no caso
do seu autor original, tinha uma forte razão de ser) interessa apenas num caso
ou outro. Mas proclamar, com a característica demonstração de satisfação e de
contentamento próprio, Confesso que vivi é ainda pior.
Além disso, há nisto a pouca
subtil insinuação de superioridade moral, outra coisa que irrita, e não pouco.
Só alguém que se sinta moralmente superior pode confessar que viveu. Os pobres
mortais não se costumam ver a si mesmos suficientemente apolíneos para falarem
com encenado despreendimento da sua vida. Só um elevado sentimento de
superioridade moral permite essa curiosa e artificial condescendência.
E como não notar a falta de
imaginação? O acto central da imaginação é, num certo sentido, e sem romantismo
nenhum, o do reconhecimento que, nas palavras célebres de Rimbaud, la
vraie vie est ailleurs. Mesmo que a verdadeira vida chegue a nós, ou nós,
por sorte ou engenho, a ela, há qualquer coisa na imaginação que nos obriga a
pensá-la sempre como algo que nos escapa. Devemos provavelmente agradecer (mas
não “confessar que agradecemos”) os nossos encontros com a verdadeira vida, que
até podem ser muito duráveis. “Que bela vida vivi!” é, mais do que aceitável,
invejável. Mas Confesso que vivi não. O problema terrível, a
obscenidade, para utilizar a expressão que convém, está mesmo no “confesso”, na
tal superioridade moral que a palavra quer dar a ver. A vida é a única coisa
que não se confessa com trajos apolíneos. Conta-se, se estivermos para aí
virados: mas não se confessa.
A superioridade, e, já agora,
a falta de imaginação, têm a ver com a convicção de se viver de acordo com
princípios que não se põem nunca em causa. Há gente assim, cuja mínima acção é
apresentada como resultado da suposta inspiração por um princípio. Não de um
impulso, não de um preconceito qualquer reconhecido como um preconceito, não de
um desejo ou outro – mas de um princípio. Só o sentimento de obedecer a
elevados princípios permite essa peculiar confissão, que não é a revelação do
maravilhamento surpreendido com a existência mas do maravilhamento com sermos
quem somos e com termos tão bons princípios.
Os bons princípios, e a nossa
satisfação com eles, ajudam-nos de facto imenso a confessar que vivemos.
Dispensam-nos, idealmente, várias perguntas. Se o que fizemos não deveríamos
não o ter feito. Se poderíamos, face ao que agora nos parece ter sido um erro,
e magicamente colocados nesse momento anterior do tempo, tê-lo evitado. (Há sem
dúvida casos em que sim, mas há muitos casos em que não, mesmo aqueles que mais
trapalhadas na vida nos causaram.) E por aí adiante. Resumindo: os princípios,
os bons, excelentes e magníficos princípios que nos põem tão contentes
connosco, dispensam-nos demasiadas vezes de reflectir sobre a nossa
responsabilidade.
O que é à sua maneira terrível
em tudo isto é quando essa satisfação consigo mesmo é transportada para o plano
político e se torna, por assim dizer, colectiva. O sentimento de superioridade
moral, a perda da imaginação que nos faz aceder a um mundo de possibilidades
variadas, e, por isso mesmo, nos permite sermos tolerantes com os outros, a
crença em princípios dotados de uma justeza inquestionável, a ausência de uma
reflexão sobre a nossa responsabilidade, a não ser no quadro rígido da
“autocrítica”, tudo isso, passando para o plano político, anuncia, sempre anunciou,
o pior. O título da autobiografia de Neruda traz consigo um pouco disto tudo.
Confesso que sempre me fez medo.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
8-12-2016
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