Aparecido Raimundo de Souza
HOJE FUI
DE NOVO PASSAR O FINAL DE SEMANA no sítio de meu avô João Raymundo.
Logo que cheguei e após ter acabado de tomar o café e saído para o terreiro,
escutei quando ele disse ao Waldir, seu capataz:
- Não se esqueça de mandar a peãozada dar o Armando para os
cavalos comerem...
Confesso que esse fato me deixou deveras encabulado e
constrangido. Sobretudo, aturdido, de queixo caído. Vovô criava e
comercializava cavalos da raça Mangalarga Marchador no sitio, entre outras
espécies de igual naipe, embora essa, em especial, sobressaísse entre as
demais.
Entre atônito e espantado, surpreso e atabalhoado, aquele
fato (ou melhor, aquela conversa dele com o Waldir) me deixou com a pulga atrás
da orelha. Não era possível que meu querido avô, a quem eu nutria um carinho
especial, e alimentava uma paixão doentia, fosse capaz de fazer uma maldade tão
grande com um pobre ser humano. O Armando era isso. Um ser humano. E vovô meu
herói favorito. Morava num lugar especial dentro de meu peito. Assim como o
Armando. Vovô fazia todas as minhas vontades, como também as de minha irmã
Luzia, filha de meu pai Roberto com outra companheira, a Ermelinda.
O Armando em questão vinha a ser um dos filhos da Catarina.
Catarina labutava na cozinha junto com a Mirtes. Ambas sob os olhos atentos de
vovó Martinha preparavam a nossa comida e também a dos empregados. Armando
contava doze anos. Magramente esquelético alto e branquelo, parecia nunca ter
visto a luz do sol na vida, embora vivesse exposto às intempéries rudimentares
da fazenda. Diferente da Sandrinha, sua irmã. Sandrinha estava como eu, na casa
dos quinze anos. Moça bonita, cabelos compridos, seios fartos, pernas bem
torneadas, possuía uma bundinha que fazia inveja aos meus pendurados. Eu e
Armando gostávamos de espiá-la às escondidas (tomando banho peladinha como veio
ao mundo), na cachoeira que distava da casa grande mais ou menos meio
quilômetro.
Eu e Armando éramos como irmãos. Unha e carne. Dente e
cárie. Xícara e pires. Quando na fazenda, pulávamos cedo da cama e saíamos
aprontar. Soltávamos pipas no quintal, matávamos passarinhos, botávamos pedras
e galhos de árvores no leito das linhas dos trens que cortavam a fazenda. De outra feita, soltávamos as galinhas que os
empregados custavam para prender depois no galinheiro, botávamos fogo na mata.
Enfim. Armando, o meu melhor amigo. Do peito, a quem confessávamos nossos
pecados infantis um ao outro, sem medos e receios da entrega, a depois, aos
nossos responsáveis.
Armando sabia que eu tinha uma quedinha pela irmã dele. Em nossas
algazarras gritos e aprontações nos chamávamos de cunhado. “Se você casar com a
minha irmã – dizia ele num sorriso franco -, será meu cunhado”. Nunca
brigávamos, mesmo quando certa vez, ao partirmos para as peraltices roubei e
escondi as roupas da Sandrinha, que a se ver sem nada para voltar para as
obrigações junto à mãe, botou a boca no mundo quando saiu das águas límpidas e
frias da cachoeira.
Portanto, vovô João querer dar de comer aos cavalos o meu
melhor amigo, o Armando, me deixou sem chão.
Precisava fazer algo. Afinal, ele era meu amigo e mais que isso, a
futuro, seria meu cunhado. Eu casaria com a Sandrinha, nem que precisasse mover
céu terras e mares para conseguir tal intento. Na minha inocência, imaginei
aqueles cavalos brutamonteados se fartando das partes do pobre do Armando. Lado
outro, sabia que o coitado não aguentaria, na peida, aquele falo descomunal.
Constantemente assistíamos as éguas que coabitavam com os animais. Na hora em
que os peões amarravam as fêmeas nas cercas, ou em árvores (o que eles chamavam
de cobertura) e o ferro entrava, nos doía as estocadas até os ossos. O Armando não seguraria o rojão. Um pé de
mesa daquele tamanho, puta que pariu! Seu fiofozinho explodiria junto com as
pregas.
Diante desse inevitável, o que fazer? Estava com um nó na
garganta. Contar a verdade? Se o fizesse, exatamente a quem me abriria?
Esquecer? Deixar quieto? Não. Jamais. Ainda que não quisesse, precisava alertar
alguma criatura que se predispusesse a me ouvir. No entanto, quem? Com Waldir?
Credo em cruz! Ele seria o carrasco que daria a ordem de execução. Algum dos
funcionários? Impossível! Ao todo uns setenta. Catarina? Vovô poderia manda-la
embora. Mirtes? Nada a ver. Vovó?
Vovô João nem pensar. Meu Deus! Fora de cogitação.
Certamente meu velho consanguíneo se enfureceria. Eu seria expulso da fazenda.
Pior, me proibiria de voltar àquele paraíso que eu tanto amava. Sem levar a
termo concreto que não mais veria a Sandrinha, o grande amor porvindouro da
minha vida. Sandrinha, Sandrinha, por meu amigo e por ela, pelo meu coração,
decididamente necessitava fazer algo. Tomar uma decisão. Uma decisão urgente.
Sem mais delongas. Resolvi falar com o Waldir.
Afinal, seria ele o capataz de vovô, quem levaria o meu
amigão para o abate. Andava, pois, meu “cunhadinho”, na corda bamba. Em péssima
situação, por sinal. Carecia fazer isso ou nunca mais me perdoaria. Criei
coragem. Imbuído nela, fui.
- Seu Waldir - vomitei, de chofre. - Quando é que o senhor
vai dar o meu amigo Armando para os cavalos? Por acaso vai ser hoje?
- Não estou entendendo, meu pequeno patrãozinho. Seu amigo?
Que amigo?
- É, meu amigo. Vovô não lhe deu a ordem hoje, depois do café?
- Sim. Deu. Mas... que amigo?
- O Armando. O senhor acha que ele vai aguentar um pedaço de
tora igual aos mourões que são cortados para cercar os currais? Pense num troço
daquele tamanho entrando na sua... o senhor sabe onde... o Armando é tão
franzino e definhado! Poderá morrer... imagine... afinal de contas ele não tem
uma... uma perereca igual ao das éguas que vivem aí, soltas pelas quintas de
vovô.
Seu Waldir captou a minha mensagem. A ficha caiu. Deu uma
risada longa e gostosa ao instante em que se ajoelhou à minha altura:
- Patrãozinho, precisamos desfazer um grande equívoco
aqui...
- Que isso?
- Equívoco? A mesma coisa que confusão.
- Mas seu Waldir, o Armando – interrompi, de novo, aos
prantos. – Ele é meu amigo... é dele que falo. E vovô mandou o senhor dar ele
para os cavalos. Eu ouvi toda a conversa...
Seu Waldir voltou a gargalhar, não sem antes me acalmar.
- Não chore meu patrãozinho. Vou lhe explicar todo esse
mal-entendido. Não é o seu amigo Armando que vamos dar agora à tarde para os
cavalos... minha Mãe Santíssima, de onde você tirou essa ideia?
- Vovô...
Seu Waldir colocou a mão direita em minha boca:
- Armando, meu pequeno, nada tem a ver com seu amigo
Armandinho, de quem gosto tanto, filho de dona Catarina, nossa cozinheira. Esse
Armando ao qual se referiu seu avô, meu patrão, é uma espécie de papa que damos
aos cavalos, para abrir-lhes o apetite...
Diante desse esclarecimento me acalmei. Sai correndo,
desembestado, alegre, saltitando o coração, misturando lágrimas e emoções, emoções
e lágrimas, num só contentamento dentro do âmago ainda em frangalhos. Meu amigo
Armando e seu rabicó estavam salvos.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, jornalista. De Brasília, Capital Federal. 13-7-2018
Colunas anteriores:
Os grandes enganos da vida , se dão nas incompreensões simples da vida.
ResponderExcluirTiago de Souza
Cabe aqui uma reflexão profunda sobre o Armando (comida) e o Armandinho, filho de dona Catarina.
ResponderExcluirCarina Bratt
da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro