sábado, 26 de outubro de 2024

Uma voz divina

Jostein Gaarder


Sócrates picava os seus próximos no flanco, não tendo, porém, a intenção de os atormentar. Havia algo nele que não o deixava agir de outra forma. Repetia frequentemente que ouvia interiormente uma voz divina. Sócrates insurgia-se, por exemplo, com a condenação de pessoas à morte. Além disso, se recusava a denunciar inimigos políticos. Por fim, isso iria lhe custar a vida.

No ano de 399 a. C. foi acusado de “corromper a juventude” e de “inventar novos deuses”. Com uma maioria à justa, foi declarado culpado por um júri de 500 membros.

Podia ter pedido o indulto. Poderia, pelo menos, ter salvo a sua vida, se estivesse disposto a deixar Atenas. Mas se o tivesse feito, não teria sido Sócrates, porque a própria consciência – e a verdade – eram mais importantes do que a vida. Insistia que só agira para o bem do Estado, mas, mesmo assim, foi condenado à morte. Pouco tempo depois, e em presença dos seus amigos mais próximos, bebeu uma taça de cicuta.

Por que, Sofia? Por que é que Sócrates teve de morrer? Há muitas pessoas que ainda fazer esta pergunta. Mas ela não foi o único na história a ir até às últimas consequências e a morrer em nome das suas convicções. Já mencionei Jesus, e entre Jesus e Sócrates há, de fato, muitas afinidades. Vou referir apenas algumas.

Tanto Jesus como Sócrates eram já considerados pelos seus contemporâneos pessoas enigmáticas. Nenhum deles escreveu a sua mensagem, por isso estamos completamente dependentes da imagem que os seus discípulos nos dão deles. Sabe-se, no entanto, que ambos eram mestres na arte de comunicar. Além disso, se expressavam de uma forma clara, o que tanto poderia encantar como irritar. E ambos acreditavam ser portadores de uma mensagem maior que eles mesmos. 

Desafiavam aqueles que detinham o poder na sociedade porque criticavam todas as formas de injustiça e de abuso de poder. E ainda: esta atividade custou a ambos a vida. Inclusivamente nos processos contra Jesus e Sócrates vemos claros paralelismos. Ambos poderiam ter talvez pedido o indulto e salvo assim as suas vidas. Mas acreditavam estar a trair as suas convicções se não fossem até ao fim. E o fato de terem enfrentado a morte de cabeça erguida os tornou dignos da confiança de todos, mesmo após a morte.

Se faço este paralelismo entre Jesus e Sócrates não é porque os ache semelhantes. Queria apenas sublinhar que é impossível dissociar a sua mensagem da sua coragem.

Título e Texto: Jostein Gaarder, in “O mundo de Sofia”, Editorial Presença, Lisboa, 4ª edição, 1995, páginas 65 e 66; Digitação: JP, 26-10-2024

"A Morte de Sócrates", por Jacques-Louis David (1787)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-