domingo, 20 de outubro de 2024

[As danações de Carina] Sinceramente? Não sei!...

Carina Bratt

O QUE ACONTECERÁ depois, quando um dia, não sei a hora, o momento, o segundo, não importa. O que sei, é que essa coisa do ‘o que acontecerá depois’ às vezes me tira do sério. Me amedronta a alma. Me faz perder o ar. A infâmia da incerteza, nossa! Essa infeliz fica pairando como uma sombra... que droga! O que acontecerá quando eu me for daqui? Na verdade, eu finjo que me importo, mas acreditem, minhas caras leitoras da ‘Grande Família Cão que Fuma’, é tudo uma coisa sem maiores melindres. Quando eu me for daqui, quero que todos que convivem comigo (direta ou indiretamente) se lembrem de mim pelos sorrisos que deixei em cada encontro.

Foto: Stephen Leonardi

Que em cada canto do prédio onde moro, desde os porteiros aos demais empregados, recordem de um pequeno pedacinho das minhas histórias, dos meus ‘Olás,’ dos meus ‘Bons dias,’ das ‘Boas tardes’ e dos meus ‘Fiquem com Deus.’ Até os elevadores que me levam para cima e me trazem de volta, para baixo, onde às vezes, em face das correrias entro às carreiras e me contemplo no espelho retocando a maquiagem, ou dando uma geral nos cabelos, terminando no andar do Aparecido, e, com ele, me envolvendo, submissa, num amplexo que me faz sair do real e ver estrelas onde não existem nem rastro delas. Certamente, todos, sem exceção, serão testemunhas dos meus passos inquietos e apressados.

Na padaria, na farmácia, no mercadinho, alguém, sentirá falta dos meus cumprimentos matinais acompanhados de uma piadinha ruim, sem graça, porém, sincera. A velha Borges de Medeiros, a Lagoa Rodrigo de Freitas, o Cristo, a pracinha onde me sento com a mamãe, e, em outras ocasiões, me aboleto para ler e observar as crianças brincando, parecerá um pouco mais silenciosa. As noites em que me aventuro a andar de bicicleta pelo calçadão, terá um longo trecho vazio e escasso de mim. Contudo, euzinha espero que a alegria que agora me contagia, siga embalando os rostos tristes que, por vezes, cruzam comigo.

Mesmo tapa no rosto da saudade, a galera da padaria, onde todos os dias compro meus pães quentinhos, tomo meu café com leite e mando para dentro dois os três pedaços de bolo de laranja ou de chocolate. Depois, na sequência, peço para embalar alguma coisa para levar para o Aparecido. Quando eu me for daqui, espero que os amigos que fiz e as memórias que criei, sejam como raízes profundas e firmes na Terra que agora piso. Que sejam imorredouras como a Pedra da Gávea e o suntuoso painel sempiterno do Corcovado, seus braços abertos envolvendo o perpétuo da cidade. Que as lembranças igualmente sejam, assim como o vento que sopra meus cabelos e espalha meus sorrisos para todos os cantos que humildemente batizei de ‘Meu Lar.’

As outras vias ao entorno do meu prédio, essas que conheço tão bem, obviamente guardarão os ecos dos meus sapatos e sandálias. No mesmo trilho, as tardes preguiçosas terão breves toques de nostalgias que logo crescerão em dimensões. Quem sabe também, uma nova Carina venha ocupar meu banco favorito, sonhando com novas idéias para escrever as próximas crônicas dos domingos que ainda nem acordaram dentro de meu ‘eu.’ Quando eu me for daqui, espero que os pequenos e cálidos mimos – tipo assim, um sorriso dado, um aperto de mão, uma proseada despretensiosa se torne, ou se transforme em bons prenúncios e que esses prelúdios durem para sempre, no ‘para-sempre-que-não-perde-a-realeza.’

Quando eu me for daqui, creio, haverá um desprovido de conteúdo nos corações de muitos. Meus amigos e amigas mais chegados repassarão mentalmente aquelas tardes alvissareiras, e acredito mais, sentirão alguma coisa remoendo por dentro com a voz dorida da minha deserção.  E o Aparecido, carinhosamente o Apa? Ah, esse sim! Talvez ele sinta falta de tudo. Das nossas trocas rápidas de olhares, dos acenos de cabeças, dos gestos mais tresloucados acumulados em minutos sutis e íntimos, xodós e audácias que somente as nossas emoções pecaminosas à flor da pele têm o poder de incendiar o escondidinho de nossas irracionalidades em extasiadas ebulições.

A minha cama redonda ficará quadrada sem a presença dele. Os meus lençóis retorcidos, os travesseiros amassados, um pôr dentro do outro. A calcinha e a cueca da derradeira chama das ‘pegadas extasiadas’ pelo calor dos sexos molhados resplandecerá. O piano solitário num canto da sala, o chuveiro aberto dos nossos banhos demorados, a esparramação de água por todo o chão... a própria fuga dela se esvaindo pelo ralo escancarado. Meus escritos que ele lê e emite opiniões; as nossas briguinhas de ‘mentirinha’ onde às vezes ele escreve umas palavras erradas e eu dou uma bronca e tomo outra na fuça, quando acerto o texto para o português correto. Quando eu me for daqui meu apê se quedará vazio. Meus móveis chorarão, minha tevê emudecerá. Minhas músicas, meus filmes... tudo se entulhará de um mutismo sem medida, sem retorno e sem talvez.

Os vizinhos do meu pavimento e de outros andares que compartilham gestos cordiais nos encontros, sejam na portaria, na garagem, no elevador, ou no ‘cada-um-na-sua-porta-de-acesso;’ até o jornaleiro da esquina que guarda os livrinhos de Caça palavras, dos Numerix e outros tantos à guisa de passatempos inteligentes que amo de paixão ficarão à deriva. Uau!... quando eu me for daqui a minha inópia se fará em músicas de sons duradouros. A noite longa celebrará o vazio com suas ruas repletas de folhas ao tempo em que melodias virão encantar recônditos apaixonados. E o melhor de tudo: a solidificar a vontade de cada um, em particular, em continuar vivendo sem atalhos; subsistindo em cada momento desse agora; prolongando o aprendizado da vida densa; como se ela fosse Ú N I C A. E acreditem: lá no fundo, ELA É.

Título e Texto: Carina Bratt, de Guarapari, no Espírito Santo, 20-10-2024 

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