Carina Bratt
O QUE ACONTECERÁ depois, quando um dia, não sei a hora, o momento, o segundo, não
importa. O que sei, é que essa coisa do ‘o que acontecerá depois’ às vezes me
tira do sério. Me amedronta a alma. Me faz perder o ar. A infâmia da incerteza,
nossa! Essa infeliz fica pairando como uma sombra... que droga! O que
acontecerá quando eu me for daqui? Na verdade, eu finjo que me importo, mas
acreditem, minhas caras leitoras da ‘Grande Família Cão que Fuma’, é tudo uma
coisa sem maiores melindres. Quando eu me for daqui, quero que todos que
convivem comigo (direta ou indiretamente) se lembrem de mim pelos sorrisos que
deixei em cada encontro.
Foto: Stephen Leonardi |
Na padaria, na farmácia, no mercadinho, alguém, sentirá falta dos meus cumprimentos matinais acompanhados de uma piadinha ruim, sem graça, porém, sincera. A velha Borges de Medeiros, a Lagoa Rodrigo de Freitas, o Cristo, a pracinha onde me sento com a mamãe, e, em outras ocasiões, me aboleto para ler e observar as crianças brincando, parecerá um pouco mais silenciosa. As noites em que me aventuro a andar de bicicleta pelo calçadão, terá um longo trecho vazio e escasso de mim. Contudo, euzinha espero que a alegria que agora me contagia, siga embalando os rostos tristes que, por vezes, cruzam comigo.
Mesmo tapa no rosto da saudade, a galera da padaria, onde todos os dias
compro meus pães quentinhos, tomo meu café com leite e mando para dentro dois
os três pedaços de bolo de laranja ou de chocolate. Depois, na sequência, peço
para embalar alguma coisa para levar para o Aparecido. Quando eu me for daqui,
espero que os amigos que fiz e as memórias que criei, sejam como raízes
profundas e firmes na Terra que agora piso. Que sejam imorredouras como a Pedra
da Gávea e o suntuoso painel sempiterno do Corcovado, seus braços abertos
envolvendo o perpétuo da cidade. Que as lembranças igualmente sejam, assim como
o vento que sopra meus cabelos e espalha meus sorrisos para todos os cantos que
humildemente batizei de ‘Meu Lar.’
As outras vias ao entorno do meu prédio, essas que conheço tão bem,
obviamente guardarão os ecos dos meus sapatos e sandálias. No mesmo trilho, as
tardes preguiçosas terão breves toques de nostalgias que logo crescerão em
dimensões. Quem sabe também, uma nova Carina venha ocupar meu banco favorito,
sonhando com novas idéias para escrever as próximas crônicas dos domingos que
ainda nem acordaram dentro de meu ‘eu.’ Quando eu me for daqui, espero que os
pequenos e cálidos mimos – tipo assim, um sorriso dado, um aperto de mão, uma
proseada despretensiosa se torne, ou se transforme em bons prenúncios e que
esses prelúdios durem para sempre, no ‘para-sempre-que-não-perde-a-realeza.’
Quando eu me for daqui, creio, haverá um desprovido de conteúdo nos
corações de muitos. Meus amigos e amigas mais chegados repassarão mentalmente
aquelas tardes alvissareiras, e acredito mais, sentirão alguma coisa remoendo
por dentro com a voz dorida da minha deserção.
E o Aparecido, carinhosamente o Apa? Ah, esse sim! Talvez ele sinta
falta de tudo. Das nossas trocas rápidas de olhares, dos acenos de cabeças, dos
gestos mais tresloucados acumulados em minutos sutis e íntimos, xodós e
audácias que somente as nossas emoções pecaminosas à flor da pele têm o poder
de incendiar o escondidinho de nossas irracionalidades em extasiadas ebulições.
A minha cama redonda ficará quadrada sem a presença dele. Os meus
lençóis retorcidos, os travesseiros amassados, um pôr dentro do outro. A
calcinha e a cueca da derradeira chama das ‘pegadas extasiadas’ pelo calor dos
sexos molhados resplandecerá. O piano solitário num canto da sala, o chuveiro
aberto dos nossos banhos demorados, a esparramação de água por todo o chão... a
própria fuga dela se esvaindo pelo ralo escancarado. Meus escritos que ele lê e
emite opiniões; as nossas briguinhas de ‘mentirinha’ onde às vezes ele escreve
umas palavras erradas e eu dou uma bronca e tomo outra na fuça, quando acerto o
texto para o português correto. Quando eu me for daqui meu apê se quedará
vazio. Meus móveis chorarão, minha tevê emudecerá. Minhas músicas, meus filmes...
tudo se entulhará de um mutismo sem medida, sem retorno e sem talvez.
Os vizinhos do meu pavimento e de outros andares que compartilham gestos
cordiais nos encontros, sejam na portaria, na garagem, no elevador, ou no
‘cada-um-na-sua-porta-de-acesso;’ até o jornaleiro da esquina que guarda os
livrinhos de Caça palavras, dos Numerix e outros tantos à guisa de passatempos
inteligentes que amo de paixão ficarão à deriva. Uau!... quando eu me for daqui
a minha inópia se fará em músicas de sons duradouros. A noite longa celebrará o
vazio com suas ruas repletas de folhas ao tempo em que melodias virão encantar
recônditos apaixonados. E o melhor de tudo: a solidificar a vontade de cada um,
em particular, em continuar vivendo sem atalhos; subsistindo em cada momento
desse agora; prolongando o aprendizado da vida densa; como se ela fosse Ú N I C A. E acreditem: lá no fundo, ELA É.
Título e Texto: Carina Bratt, de Guarapari, no Espírito Santo, 20-10-2024
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