domingo, 13 de outubro de 2024

[As danações de Carina] Os sonhos não morrem jamais

Carina Bratt

Ofereço o presente texto para todas as crianças. Nessa passagem do dia 12. Elas, no amanhã serão os jardins floridos de um Novo Mundo que surgirá repleto de sonhos.

DESDE PEQUENA –, vivo sonhando. ‘Pousam nos meus sonhos as borboletas (*). Virou rotina nas minhas noites, vaguear por lugares deslumbrantes. Nessas fantasias noturnas, cada ‘passeio-viagem’ me leva para o centro de cidades barulhentas, onde prédios altos parecem furar as nuvens e tocar os calcanhares do infinito. Falando em prédios altos, ano passado fiquei por cinco dias nos Emirados Árabes e tive a grata satisfação de subir no Burj Califa. Na época, o arranha céu mais alto do planeta. Sempre em meus sonhos, ele ‘aparece’ me trazendo visões as mais variadas e empolgantes, de quando estive fotografando a cidade lá do andar 160.

A última vez em que ele me ‘apareceu’ –, euzinha estava no topo –, ou mais precisamente grudada na torre. Lembro de um lugar envolto por uma névoa densa, onde o tempo parecia não passar. À minha frente, só nuvens. Para onde olhasse, nada via. De repente, tudo se fez escuridão. Nessa hora, uma menina, de uns quinze anos, com cabelos longos e olhos que brilhavam como estrelas. Ela estava sentada confortavelmente e flutuava numa espécie de tapete. Atrás dela, servindo de recosto, um travesseiro em forma de um jarro de flores com rosas vermelhas. Ao me ver ali, em pé, olhando para o nada, ela, com um sorriso lindo dos olhos vivazes, indagou:
— Por que você está triste?

Sua voz chegou até mim suave e envolvente. Eu não sabia o que responder. A imagem dela, tão serena, batia de frente com a realidade que eu conhecia.
— Eu não estou triste –, menti.
Contudo, a verdade se escondia turvando as minhas palavras. Ela sorriu de novo, e dessa vez o seu gesto iluminou a escuridão ao nosso redor.
— Às vezes, as pessoas têm medo do que não entendem. Eu não sou um mistério –, somente uma amiga.
Suas palavras reverberavam como um eco familiar, despertando, dentro de meu ‘eu’ uma sensação de conforto.

Conversei com ela sobre os sonhos e desejos que deixamos para trás e as memórias que a partir de coisas desfeitas ou não realizadas, nos assombram. Falamos também sobre a vida e a morte, como se as barreiras entre nós não existissem. Calma lá! Ela estava viva ou morta? Me belisquei por duas vezes. Doeu. Ela estava morta. Seu nome, Angélica. Ela me contou sobre os lugares que nunca visitou, as risadas que não pôde compartilhar. Eu a ouvia, encantada, sentindo que havia algo sagrado naquele diálogo.
— Você pode me visitar sempre que quiser –, disse ela –, a certa altura (altura?!) como se a sua existência dependesse disso. E eu acreditei!

Acordei em seguida, com o coração pesado, mas a mente leve. Aquele pequeno diálogo flutuava em minha memória. Pairava como um lembrete de que a concordância compartilhada ou mera conexão, transcende até mesmo os limites da vida. E, mesmo que a menina não estivesse mais aqui, ali, ou acolá, a sua presença permanecia viva dentro de mim. O sonho continuou a ecoar em minha mente enquanto tentava entender a profundidade daquelas palavras. A mocinha tinha uma sabedoria que parecia vir de tempos antigos, como se conhecesse segredos do mundo que eu ainda não havia descoberto. O travesseiro-jarro de flores, agora se fixara numa imagem vívida, ou melhor, se fizera num símbolo de tudo o que eu conhecia de belo e efêmero.

Em nosso diálogo –, perguntei a ela sobre o que acontece depois...
— Você sente falta de algo?
Eu a via tão tranquila, como se não houvesse dor em sua ausência.
— Não sinto falta –, ela respondeu – mas sou grata por tudo o que vivi. A vida é feita de pequenos e quase imperceptíveis momentos, e cada um deles tem o seu valor.
Essa frase me marcou. Permaneceu imutável como se ela quisesse me ensinar a valorizar cada instante, mesmo os mais corriqueiros. Falamos depois sobre as cores do céu ao amanhecer, o suave chegar da noite, o cheiro da chuva e a alegria de um riso compartilhado.

A harmonia entre nós parecia real, como se o tempo e o espaço não fossem barreiras, apenas aspectos da experiência.
— Você pode encontrar beleza até na dor – ela disse –, seus olhos brilhando com uma intensidade que eu não conseguia descrever. A dor também é uma forma de amor. A saudade que sentimos é a prova viva e imorredoura de que amamos profundamente.
A cada palavra, eu sentia uma paz crescente, como se uma parte de mim estivesse se reconciliando com perdas e memórias que eu carregava. O travesseiro-jarro-encosto com as rosas vermelhas, parecia vibrar com cores mais vivas, cada flor dançando ao sabor do vento.

Entendi depois, aquela imagem das rosas. Meu Deus, nada mais que um lugar onde o luto e a celebração da vida coexistiam em harmonia.
Em dias de hoje, quando acordo, ainda sinto a presença da Torre de Dubai, e da menininha Angélica ao meu lado, como uma brisa suave. A vida, então, me parece um pouco mais leve, e eu aqui dentro de meu mais secreto, sei percebo, tenho consciência que aquela conversa tinha me transformado. Agora, deitada na rede de balanço, no avarandado do meu apê, olhando a rua lá embaixo, a lagoa, o Cristo no Corcovado, logo em frente, eu entendo que, mesmo nas ausências (quantas ausências eu carrego em meu coração?!).

Na verdade, não sei. Perdi a conta. No entanto, tenho plena convicção, podemos encontrar formas de celebrar a afinidade que tivemos. Diria, sem medo de errar, foi uma coisa unânime. Verdadeira. Efêmera. Decidi que, a partir daquele sonho (e de outros mais que me forem dados vivenciar pelo Criador), buscarei a beleza nas pequenas coisas, como Angélica me ensinou. E, quem sabe, em cada lembrança, eu a veja novamente, sorrindo para mim, me lembrando sempre de que a vida continua, mesmo quando a gente menos espera. Ainda que dependurada em êxtase numa torre de um prédio nos píncaros do 160 andar lá nos cafundós do sudeste da península Arábica.

(*) ‘Atterra nel mio sogno la farfalha. Que colore avrebbe’ (Marien Calixte em seu livro ‘Atlantico!’ em edição traduzida para o italiano. Editora Matzneller Editions - Bolzano 1994 - 60 páginas.)

Título e Texto: Carina Bratt, da cidade de Guarapari, no Espírito Santo, 13-10-2024

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