Carina Bratt
O SOL DE todas as manhãs, como um delírio irresistível, ou um gostar inexplicável, se filtrava pelos ramos das árvores, desenhando padrões irregulares de luzes multicores sobre o chão coberto de folhas, sem o viço da vida. Tudo ao meu entorno formava uma visão que eu conhecia bem; melhor dito, uma das muitas que eu apreciava em um tempo que parecia tão distante quanto um sonho esquecido numa das minhas gavetas do guarda-roupas.
Naquele tempo, na primavera florida dos meus quinze, meus dias se faziam
diferentes. A vida não se desenrolava com a pressa frenética que hoje conheço.
As horas passavam calmas como um manancial tranquilo, fazendo lembrar um
desenho de várias formas inauditas. A rotina não vinha marcada por alarmes
tresloucados e incessantes, ou grávidos de compromissos apressados; mas sim
abundavam por momentos de pausa e contemplação.
Me lembro de uma manhã em particular, uma daquelas que, para o sabor do
meu regozijo, parecia mais uma pintura infantil do que uma realidade
embrutecida. Eu caminhava, pés no chão, pelo bosque igualmente descalço, numa
quinta que ficava fundeada ao contíguo de minha casa, um lugar que conhecia
melhor que qualquer outro. O ar estava sempre ameno e o canto dos pássaros, os
mais diversos, inebriava a minha alma como uma espécie desconhecida de trilha
sonora.
Não havia pressa. Não havia amanhã, não havia um destino a ser descoberto. Apenas o prazer bucólico do ‘agora’, num simples estar presente. Nas caminhadas que eu empreendia, nada mais havia que um ‘ritual-matinal,’ vistoso e luzidio, uma forma de me conectar com algo maior que eu mesma. Por momentos, eu estancava os passos e parava os olhos num absorto reservado para observar cada folha, cada tronco, cada pequeno inseto que cruzava o meu caminho. Eu era feliz. E, como Ataulfo Alves, ‘eu não sabia...’
Havia, ainda, de contrapeso, uma sensação de infinita calma, como se o
mundo à minha delimitação fosse um romance de amor nos moldes de Nicholas
Sparks, que eu pudesse folhear lentamente, sem pressa para chegar ao fim. Nessa
época, bem me lembro, eu tinha o hábito de levar um caderno e uma caneta
esferográfica. Sentava por algum tempo à sombra de uma velha árvore meio
carcomida (onde se amoldavam às suas raízes entrelaçadas), me passava a
impressão de uma espécie de banco natural, como um ontem de tronco enterrado.
Então euzinha, menina moça na flor de um coração apaixonado, escrevia
pensamentos bobos, sem a maestria dos grandes autores. Dava vida plena às
ideias e às reflexões sobre o mundo. O meu mundo em particular, o meu pedaço de
chão destituído das maldades que hoje me cercam e me amedrontam. Recordo que eu
me envolvia num diálogo silencioso comigo mesma. E a outra criatura que havia
dentro de mim me respondia...
Uma conversa franca e sem interrupções, sem as pressões externas e só o
meu ‘eu’ e ‘ela,’ num intransponível ‘prodioso’ (o mesmo que prodigioso ou
extraordinário), bradava numa velocidade estonteante. O caderno de poucas
folhas, em tempo escasso, se via cheio de palavras e desenhos, frases bucólicas
que agora, na confusão da minha idade adulta, parecem quase etéreos, como se
fossem de uma vida ou de um ‘ontem’ anterior ao meu nascimento.
Confesso que foi num desses dias que encontrei um velho relógio em meio
a um matagal. Pura sorte, creio. O pobrezinho estava coberto de musgos,
enferrujado e quase invisível para a percepção dos desatentos. De pronto,
percebi que parecia uma relíquia de um passado distante. A partir desse achado,
fiz dele meu ponto de referência. Como assim? Eu explico: ao invés de seguir os
ponteiros do inexorável como uma escrava, eu desenhava a trajetória do sol
radiante, permitindo que ele ditasse a seu bel prazer o meu ritmo.
À tarde, já bem insulado de um dia maravilhoso, quando o sol começava a
se esconder atrás das plantações de infindáveis ruazinhas de cafezais que
cobriam a gleba da minha residência, eu retornava a passos apressados para o
meu lar, onde a cozinha (por obra de minha mãe) estava sempre perfumada com o
aroma de pão assando (para o dia seguinte) e o café fresquinho no bule, passado
poucos minutos. As simplicidades dos meus dias, das minhas andanças, bem ainda
dos meus devaneios, se multiplicavam reconfortantes.
A vida, como um todo, tinha uma cadenciação tranquila –, eu diria –, sem
medo de errar; se confundia num fluxo natural que respeitava os ciclos das
estações e as necessidades mais prementes do meu corpo e mente. A mudança desse
quadro veio gradualmente, como a erosão silenciosa de um barranco enorme e
sisudo que pescava sonolento e, tempos depois, dormia em sono pesado nos
cafundós quase às margens de uma rodovia ruidosa que levava à capital.
Os compromissos da minha existência adulta, o meu trabalho como
secretária do Aparecido e outros afazeres secundários, como o mal de Parkinson
de minha mãe, começaram a surgir. Com eles, os prazos para um amontoado de
pequenas outras coisas a se acumularem e a debandada incansável do tempo
inexorável tomou o lugar das longas caminhadas e das tardes que, iguais a mim,
se faziam preguiçosas.
O relógio de sol ficou mais velho. Seus ponteiros se tornaram brancos e
o seu mecanismo interior, de repente, repousou em um canto esquecido cheio de
rugas em cima da penteadeira do meu quarto. O ‘agora’ do meu dia a dia sempre
deixa um lembrete escrito com letras mal coordenadas e silenciosas, todavia, me
avivando a memória de um tempo que, embora tenha passado, ainda vive presente
no melhor das minhas memórias.
Na correria do meu corpo de mulher feita, percebo que a agitação
constante me faz olhar para trás, a contemplar o ‘meu-tempo-ontem’ com um misto
de saudade e gratidão. A vida corrida, as horas agitadas, os meus afazeres,
tudo tem seu próprio ritmo e desafios, e eu me adaptei a eles. Renasci como a
nascente de um rio que se curva para se ajustar às rochas e aos entraves em seu
caminho sem fim.
Apesar dos pesares, às vezes, quando o mundo fica muito barulhento e o
estresse se acumula, costumo fechar os olhos e me lembrar, saudosa, daqueles
longevos dias, onde meus dias iam e vinham tranquilos. Nesses momentos, me
lembro da paz encontrada em uma caminhada pelo bosque, me recordo da satisfação
de um caderno cheio de pensamentos e me sinto mulher inteira nesse simples
prazer de viver às pressas num conviver comigo mesma, sem a afobação de chegar
a lugar nenhum.
Apesar de tudo, essas lembranças agem dentro de mim como um consolo –,
tipo assim –, como uma promessa silenciosa de que, mesmo no meio das correrias
da cidade grande, dos atropelos às raias das afobações e as colisões com o que
ainda desconheço e se amolda à revelia do ‘estar por vir’, há um personagem sem
rosto, porém, vejo com os olhos da minha alma, a tranquilidade do meu ser, do
meu ‘eu’ reconditado (reconditado é como se eu dissesse o ‘meu interior ignoto
e insondado’).
Tenho plena convicção de que a paz, a minha paz dos tempos remotos, pode
ser encontrada. Como? Simples! Basta que eu saiba onde procurar. Talvez, em
algum momento do meu ‘futuro-hoje-agora’, eu me depare com um novo equilíbrio,
ou dito de forma mais cautelosa e equilibrada, me veja abraçada e quieta, num
novo lugar secreto dentro de mim, onde meus dias porvindouros possam ser
diferentes, como foram antes de eu me tornar uma adulta completamente insana e
sem juízo.
Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo, 8-9-2024
Anteriores:No tête-à-tête: como cair matando nas frustrações do dia a dia?
Acenos no Escuro
O Desvendamento misterioso da 'pilastra estuprada'
Quase uma turista extraviada
O Falso demônio da crucificação
Em poucas palavras
O trote
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-