Celebração mistura fé, história e doçura em homenagem aos santos gêmeos, atraindo crianças e mantendo viva uma tradição secular
Quintino Gomes Freire
Crianças pelas ruas, sacos de doces e uma alegria contagiante. Assim é o dia de São Cosme e Damião, celebrado principalmente no Rio de Janeiro, com distribuição de guloseimas que enche as ruas de cor e doçura. A data, que ocorre em 27 de setembro, tem origem religiosa, mas hoje ultrapassa as fronteiras da fé, tornando-se uma tradição popular no estado. Embora a Igreja Católica tenha designado o dia 26 de setembro para a celebração litúrgica dos santos, o dia 27 é o marco da festa nas ruas, especialmente para as crianças.
Cosme e Damião, irmãos gêmeos que viveram no século III, nasceram na região da Ásia Menor, atual Síria. Eles eram médicos e, segundo relatos, praticavam a medicina sem cobrar pelos seus serviços, o que os tornou conhecidos como protetores dos pobres e enfermos. Perseguidos pelo imperador romano Diocleciano, por volta do ano 300, foram condenados à morte após sobreviverem a diversas tentativas de execução. A história de sua bondade e dedicação à cura os elevou ao status de santos pela Igreja Católica.
“Cosme e Damião são figuras
importantes tanto na tradição católica quanto nas religiões de matriz africana,
como o candomblé e a umbanda, onde são sincretizados com os orixás infantis
conhecidos como Ibeji,” explica o historiador João
Martins. A celebração, inicialmente restrita ao campo religioso,
expandiu-se, tornando-se uma prática cultural que encanta gerações de crianças,
especialmente nas Zonas Norte e Oeste do Rio de Janeiro, onde a
tradição de distribuir doces ainda é forte.
Tradição secular de distribuição de doces
Desde o período colonial, a
festa de Cosme e Damião é celebrada no Brasil. O marco inicial foi a construção
de uma ermida em homenagem aos santos na cidade de Igarassu, em
Pernambuco, por volta de 1530, considerada uma das primeiras igrejas do país. A
comemoração se espalhou por todo o território, reforçada pelo sincretismo
religioso das religiões afro-brasileiras, que associam os santos a entidades
protetoras das crianças.
No Rio de Janeiro, a distribuição de doces é o ponto alto das celebrações. Em muitas ruas, devotos enchem saquinhos com pés-de-moleque, balas, pirulitos e outras guloseimas, distribuindo-os às crianças que percorrem o bairro de porta em porta. Maria do Carmo, uma das devotas da Zona Norte, afirma que a tradição é mantida em sua família há gerações: “Minha avó começou a distribuir doces quando era jovem, e agora eu faço o mesmo com meus netos. Para nós, é uma forma de devoção e também de manter viva a tradição que já faz parte da nossa cultura.”
Apesar das mudanças impostas
pelo tempo, como a crescente influência da tecnologia sobre o entretenimento
infantil, a tradição resiste. Crianças de várias idades ainda acordam cedo no
dia 27 de setembro para correr pelas ruas em busca dos famosos saquinhos de
doces. “Eu lembro quando era criança e passava o dia inteiro correndo
atrás dos doces. Era uma alegria só. Agora, vejo meus filhos fazendo o mesmo,” diz Carlos
Eduardo, morador do bairro do Andaraí.
Impacto cultural e fé
Além da doçura da tradição,
Cosme e Damião carregam um significado profundo na cultura religiosa
brasileira. Na umbanda e no candomblé, os santos são associados aos Ibeji,
orixás gêmeos que protegem as crianças. “O sincretismo entre os santos
católicos e os orixás reflete a miscigenação religiosa que forma a identidade
cultural do Brasil,” explica Ana Clara Freitas,
pesquisadora das tradições afro-brasileiras.
No Rio de Janeiro, a Igreja
de São Cosme e Damião, localizada na Rua Leopoldo, no bairro do
Andaraí, é um dos centros dessa devoção. Fundada em 1944, a paróquia realiza
missas e celebrações dedicadas aos santos, reunindo fiéis de todas as partes da
cidade. Durante as festividades, as ruas ao redor da igreja ficam repletas de
crianças e adultos que participam da tradição.
“A relação de São Cosme e
Damião com as crianças é muito forte, tanto pela tradição dos doces quanto pela
própria devoção aos santos. Eles são considerados protetores dos pequenos, e
por isso essa festa é tão importante para muitas famílias,” comenta Marcos
Lopes, pároco da igreja.
Um desafio para os tempos
modernos
Embora a tradição ainda seja
forte, há sinais de mudança. A modernidade, com a tecnologia cada vez mais
presente na vida das crianças, trouxe desafios para a continuidade das
comemorações. “Hoje, vemos muitas crianças mais focadas em celulares e
tablets, o que diminui um pouco a mobilização para as celebrações de São Cosme
e Damião. Mesmo assim, muitos pais ainda incentivam seus filhos a participarem
da tradição, mostrando que é possível conciliar o antigo com o novo,” analisa Sérgio
Pereira, sociólogo especializado em cultura popular.
No entanto, nem todos os
desafios são tecnológicos. A insegurança nas ruas e a crise econômica também
impactaram a distribuição dos doces. Com o aumento da violência, muitas
famílias optam por realizar pequenas festas em casa, ao invés de permitir que
as crianças circulem sozinhas pelas ruas. Mesmo assim, a festa de São Cosme e
Damião continua sendo uma celebração de resistência cultural no Rio de Janeiro.
“A tradição está mudando,
mas continua viva. Enquanto houver crianças correndo pelas ruas, atrás dos
saquinhos de doces, São Cosme e Damião sempre terão um lugar especial no
coração dos cariocas,” conclui Maria Clara, devota e
moradora de Madureira.
Título e Texto: Quintino
Gomes Freire, Diário do Rio, 27-9-2024
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