sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Ganso afogado

Aparecido Raimundo de Souza

ESTOU TENDO um caso com a Arno. Arno não é uma moça qualquer. É diferente. É linda, bonita, magrinha como gosto, esperta, elétrica e despachada... quando está ligada no que precisa ser feito, parece chegar a 220 volts. Não estou falando de uma dondoca qualquer. Faço referência à Arno, a Enceradeira de mamãe. Ela não sabe ainda da minha loucura. Coisa antiga, desde o abençoado dia em que papai a trouxe aqui para casa. Tudo começou numa tarde de sábado, quando Ambrosina, a nossa empregada, depois de escravizar à pobrezinha, fazendo com que trabalhasse duro, lustrando os assoalhos da sala e dos três quartos, lhe deu uma folguinha arrastando a infeliz para o banheiro de serviço, colado à cozinha. Achei que era chegada a hora de atacar. Não perdi tempo:
— Nossa “migo”. Estou exausta – balbuciou a prestimosa assim que me viu chegar!
— Dá para perceber... respondi sem pensar em coisa melhor a ser dita.

— Ambrosina quer me ver morta e enterrada. Olhe para meu estado. Estou me sentindo um bagaço...
Procurei ser franco o melhor que pude:
— Sinto pena de você.
Arno me cravou uns olhos compridos e marejados de lágrimas:
— Você?
— Sim! Não posso?

Arno armou alguma coisa para dizer. No último instante resolveu engolir o que pretendia me jogar na fuça. Talvez achasse que me deixaria nervoso ou mais abestalhado do que aparentava. Ponderou e mediu as palavras antes de voltar ao diálogo:
— Pode, claro que pode. Mas vocês, humanos, não tem sentimentos em relação a nós.

Fez uma pausa breve e concluiu, sem papas na língua:
— Fazem a gente de escravos. Trabalhamos pior que burros de carga e no final das contas... Meu Deus do céu...
— Ei, não fale assim. Sei que dá um duro danado. Não é de hoje que estou de olho comprido em você.
— De olho? Como assim?
— Estou de olho, ora bolas.
— Desenhe...
— Não saberia desenhar...
— Pois então fale.
— É que... deixa pra lá.

— Fale. Seja o que for, vá em frente.
— Arno, me apaixonei por você. Perdidamente...
A enceradeira de mamãe, ou melhor, a Arno caiu numa estrondosa gargalhada. Quando se cansou, voltou a me fitar, desdenhosa:

— Quer dizer que temos aqui um garoto apaixonado?
— Me leve a sério. Por favor.
— Espera que eu acredite?
— Pergunte ao seu Rossi, o Escovão...
— O que o senhor Rossi, meu amigo Escovão tem a ver com isso?
— Ele sabe de tudo...
— Tudo?

— Me abri para ele. Para quem mais?
— E por qual motivo justo ele?
— Porque é um senhorzinho em idade bem avançada. Sabe melhor que ninguém dessas coisas.
— OK. Vamos supor que eu acredite...
— Deveria. Falo a verdade.
— O que foi que disse exatamente a ele?
— Que me apaixonei por você.
— E ele?
— Achou normal na minha idade. A certa altura me confidenciou que anos atrás, quando ainda moço, caiu de quatro por uma jovem linda e simpática geladeira que atendia pelo nome de Frigidaire.

— E ele ficou com ela?
— Não.
— Por?
— A tal Frigidaire era apaixonada por um cara esquisito. Um tal de Britânia. Segundo ele, um liquidificador metido a besta que no final das contas sumiu do pedaço e ninguém mais soube dar notícias de seu paradeiro.
— E você acha normal um ser humano se apaixonar por um eletrodoméstico?
— Sim. Acho normal. Afinal de contas, cá entre nós, você é uma moça bonita, tem um porte elegante, dá conta do recado sem reclamar...
— Que mais?
— Quando não está trabalhando fica quietinha no seu canto.

Fiz uma breve pausa e continuei:
— Não se mistura. É atenciosa, simples, e me parece...
— Termine...
— Me parece ter uma tristeza muito grande no peito. Uma coisa que machuca você e lhe deixa, às vezes, para baixo.
— Quanto a isso é verdade. Na mosca!
— Então. Deixa eu me aproximar de você. Prometo que não irei decepcionar o seu coraçãozinho.
Arno deu um sorriso meio entristecido:
— Todos dizem a mesma coisa...
— Todos? Agora sou eu quem pede. Desenhe.

Arno ponderou mas acabou confessando:
— Faz anos me apaixonei por um Limpador de Vidros. Estávamos indo de vento em popa...
— E um certo dia ele não correspondeu?
— Não, meu lindo. O infeliz se apaixonou por uma Tábua de passar roupas. Num domingo, foi limpar as janelas do quarto dela, meio que afoito, se descuidou... acabou despencando do oitavo andar e babau. Desde sempre, me tranquei dentro de mim mesma.
— Se abra para mim...
— Promete me amar de verdade?
— Com todas as forças de meu ser.

A coisa rolou. Criou raízes. A ponto da Ambrosina me flagrar por diversas vezes fazendo sexo com a Arno em meu quarto. Contou para meus pais. Num primeiro momento, os velhos não levaram fé.

Segui em frente. Acredito, papai achou que a empregada tinha alguma birra antiga comigo. Birra ou alguma outra coisa mais séria. Belo dia, ele chegou cedo do trabalho, nem sei por qual motivo. A merda foi que me surpreendeu tomando banho agarradinho com a Arno. Não tomou nenhuma providência, todavia, relatou tudo à minha mãe. Uma semana depois foi a vez de mamãe me pilhar de calças curtas. Ainda assim, a coisa durou uns seis meses. Por derradeiro, degringolou. Acharam que eu havia perdido o juízo, ou que havia enlouquecido. 

Acabei internado como maluco numa espécie de “hospital-sanatório para doentes mentais.” Seis meses, desde que me jogaram lá. Meus pais que se danem —, pensei com meus botões. Estou precisando urgentemente dos carinhos e afagos da minha Arno. Vou fugir. Com essa ideia martelando, não perdi tempo. Aconteceu a oportunidade hoje à tarde, quase no final do domingo. Um dos enfermeiros foi ao banheiro fazer as suas necessidades fisiológicas.

Exatamente a dor de barriga do sujeito, a chave que me arreganhou as portas da liberdade. Sem perder tempo, vi surgir diante dos meus olhos a grande e única chance de sair daquele mausoléu. Deu certo. Após a fuga, corri aqui para minha casa e assim que entrei voei para abraçar a Arno. Estava cheio de saudades e logicamente repleto de segundas intenções.
— Meu amor – gritou ela, eufórica ao me ver de braços abertos, e os olhos cheios de lágrimas na entrada do quartinho das bugigangas ao lado da cozinha:
— Meu príncipe, onde você se meteu todo esse tempo?
— Estava num sanatório para malucos...
— Fiquei sabendo por alto. Graças ao Pai Maior está de volta. Que saudade!
— Arno, Arno, você fugiria comigo. Fugiria agora?
— Sem pensar duas vezes. Fale. Se abra. Mas antes, me esclareça, como conseguiu escapar do tal hospital de loucos?

— Depois. Por agora, vamos rachar no trecho. Ainda bem que hoje é domingo e o dia de folga da Ambrosina.
Ajudei a Arno a catar todas as suas tralhas. Malas prontas, tratamos de cair no mundo. Peguei um Uber. Fomos para a residência de uma tia minha, irmã de mamãe que não falava com ela.
— Agora me conta, gatinho – insistiu a Arno. Como fugiu?
— Foi fácil, princesa. Me disfarcei de bacia de privada. Deixei um dos enfermeiros prestes a se cagar pernas abaixo. Em contínuo, enquanto ele procurava o local de se aliviar e o rolo de papel sanitário que eu havia escondido, corri e me escondi num Furgão que todo dia, impreterivelmente vai levar o “jantar” de todos os funcionários e internados. E aqui estou. Graças a Deus, dei sorte de meus pais ainda não terem voltado do restaurante onde foram jantar com amigos. Sem falar que a parada coincidiu com a folga da Ambrosina.

Nesse interregno, capturei o olhar espantadíssimo do motorista que me vigiava pelo retrovisor. Pela cara dele, cheguei à conclusão que imaginou com seus receios: eu deveria, de fato, ter um parafuso a menos. Onde se viu uma pessoa normal conversar animadamente com uma enceradeira?

Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 27-9-2024

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Menina de Tranças 
Prisioneiro 

2 comentários:

  1. Voltei aqui, desta vez para falar do Ganso afogado, cuja publicação segue acima, trazida à baila nessa sexta-feira, 27.09. Simplesmente fantástico e inimitável, lírico e ao mesmo tempo louco. O texto de Aparecido Raimundo de Souza é uma obra de arte! Ele traz uma narrativa rica e cheia de humor, além de um toque de absurdidade que cativa e encanta e nos faz viajar por recônditos inimagináveis. O protagonista, ou seja, ele mesmo, com a sua paixão por uma enceradeira chamada Arno, explora temas de amor e loucura de uma maneira muito original. A forma como personifica a Arno, transformando essa musa sem fotografia, mas que no decorrer da leitura, imaginamos de corpo inteiro em toda a sua dinâmica e realeza é, ponto pacífico, uma figura encantadora e cheia de personalidade. A enceradeira se torna na visão dele, magnânima e genial. E a relação entre eles, embora surreal, provoca reflexões sobre a solidão e a aceitação e a busca incansável por uma conexão. A narrativa tem um ritmo envolvente e a construção do diálogo é dinâmica, permitindo que o leitor sinta a tensão e a leveza da situação. Além disso, a crítica social sobre a exploração dos trabalhadores (mesmo que aqui representados por um eletrodoméstico) é um detalhe interessante que dá profundidade à história. No geral, o Ganso afogado não vai além de um título. O texto nada tem a ver com ganso, muito menos com um ganso afogado. Talvez o Aparecido tenha escolhido esse nome exatamente para isso. Chamar a atenção do leitor. Quando os homens falam em afogar o ganso, fazem referência a uma transa sexual. Hoje vou afogar o ganso com a minha patroa. Logo de início descobrimos que o próprio Aparecido é o personagem central. Justo ele, o engraçadinho que se apaixona e se encanta por uma enceradeira. Nessa leitura meio que boba e pastoril, qual o sentido do texto na visão dele, autor, e qual a mensagem que deixa para nós, leitores? Fim da primeira parte. Continua na segunda e última.
    Tatiana Gomes Neves (Tati).
    tatianagomesnevesistoegente@gmail.com
    Sítio Shangri-Lá, divisa entre o ES e MG.

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  2. Segunda e última parte.
    Fácil a resposta, como tirar bala de criança. O texto de Aparecido Raimundo de Souza, ao retratar um homem apaixonado por uma enceradeira, utiliza o absurdismo para explorar temas profundos sobre amor, solidão e alienação. Aqui estão algumas conclusões minhas (quem quiser que discorde) para se não desvendar, tentar chegar perto da realidade que ele idealizou. Amor e Solidão: O protagonista se vê mais próximo de um objeto inanimado do que de pessoas ao seu redor. Isso pode refletir a solidão e a busca desesperada por afeto, mostrando como as conexões humanas podem falhar e levar alguém a buscar o amor em lugares inesperados. Segue a primeira, a alienação social: A relação com a Arno pode ser uma crítica à demência branda que muitas pessoas sentem em suas vidas cotidianas. A figura da enceradeira, a meu ver, simboliza o trabalho duro e a servidão e pode representar a luta de muitos que se sentem tratados como objetos em vez de seres humanos. De roldão teria também a desconstrução do normal: O texto desafia os arquétipos sociais ao apresentar uma paixão não convencional. Essa abordagem pode provocar os leitores a refletirem sobre o que é considerado normal e a importância de aceitar diferentes formas de amor. Eu arriscaria ir mais longe e falaria da crítica ao cotidiano: A narrativa também aborda a rotina opressiva e as relações de poder, como a dinâmica entre o protagonista, a empregada e os objetos domésticos. Isso pode ser visto como uma crítica severa à desumanização no ambiente doméstico e ao papel dos trabalhadores. No mesmo caminhar, a busca pela aceitação: O protagonista Aparecido anseia por aceitação e amor verdadeiro, mesmo que isso signifique se envolver com algo que a sociedade considera inaceitável. A crônica mostra que o desejo de conexão é universal, independentemente da forma pela qual venha a ser assumida. Em tapa paralelo, a mensagem do texto pode ser interpretada como um convite à reflexão sobre o que amamos, como nos relacionamos e as formas de afeto que podem surgir em um mundo muitas vezes desumanizado. Aparecido Raimundo de Souza utiliza o que tem de melhor dentro de sua cabecinha imaginativa. O humor e o absurdo para abordar questões sérias de forma acessível e provocativa. Nesse contexto todos, a ideia de se apaixonar por uma enceradeira ou uma geladeira pode parecer absurda e até inadmissível à primeira vista. No entanto, essa escolha pode ser vista como uma forma de crítica social e uma exploração dos limites do amor e da conexão humana.
    Tatiana Gomes Neves (Tati).
    tatianagomesnevesistoegente@gmail.com
    Sítio Shangri-Lá, divisa entre o ES e MG.

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