Aparecido Raimundo de Souza
Santa Luzia do Monte
Sagrado não se estendia além de um lugarejo pacato e tranquilo sediada à
margens direita de um rio de leito suave, e onde as pessoas de canto a canto se
conheciam pelo primeiro nome, ou em decorrência de um apelido advindo de algum
familiar ou alguém mais chegado à vida cotidiana. No geral, tudo seguia um
ciclo de vida sopitado. A praça central virara um “point” obrigatório de
começos de tardes para onde se convergiam não só os jovens, mas também as
crianças em alvoroços barulhentos, os namorados e os idosos num regozijo
reinante que se avultava até por volta das vinte e duas, mais tardar às vinte e
três horas, quando então se iniciava a debandada de retorno, cada um voltado
para o conforto de seus respectivos lares.
Nessa praça se situava o seu Luiz, o pipoqueiro oficial e sua mulher, dona Almerinda das pamonhas –, o Benjamim do cafezinho, o Nicanor das cocadas e dos pés de moleques, e os poucos comerciantes quando encerravam as suas atividades ao longo da rua principal, onde ficavam o mercado, a padaria, o açougue, a farmácia e a funerária. Como toda cidade esquecida nos cafundós dos centros efervescentes, havia a igreja da Padroeira. Ou mais precisamente a de Santa Luzia. O santuário dela se arrimava defronte à praça e o palanque do coreto antigo (onde em tempos idos), as bandinhas dos dois grupos escolares se ajuntavam em datas comemorativas regidas pela batuta do maestro Otto Canavieiro. Em dias de hoje, o propugnáculo desse espaço virou palco ativo de moradores de ruas e usuários de drogas advindos de outras localidades, o que contribuiu para afastar a maviosidade dos futuros músicos a perderem no “para sempre” o viço dos saudosos tempos em que se aprendia a ler partituras ou tocar um instrumento qualquer.
Mesmo tom os bancos de
cimento, os postes de madeira das luminárias acendidas todos os dias, ao chegar
das dezoito horas, pelo seu Belizário, que alimentava os surrados lampiões e o
colossal jardim todo desflorido plantado pelas antigas administrações da
prefeitura se pegaram carcomidos pelo decorrer dos anos, e não só deles –
igualmente pelo descaso dos colaboradores dos prefeitos – numa sucessão sem
tamanho, o que contribuiu, sobejamente para marcar, de forma retrógrada, o
ápice das batidas do grandioso coração que vivificava as bases do esquecido
vilarejo. Justamente ali, num local embaixo das sombras generosas de árvores
centenárias, as únicas que insistiam em seguir lutando pela sobrevivência, a
gloriosa Laudicea costumava se sentar para ouvir as histórias dos seus pais,
avós e outros que se juntavam na mesma sintonia meridiana.
Entre uma e outra, ela se
luxuriava a urdir pequenos nós nos próprios cabelos e, de contrapeso, ajudava a
avó, dona Cotinha, a produzir as suas bonecas de pano para, com as vendas,
manter a sustentação dos alimentos mais prementes não se olvidarem das prateleiras
contíguas às despensas da cozinha. As histórias desse centro nevrálgico se
materializavam como uma tapeçaria estonteante que conectava o passado ao
presente. Havia histórias de bravura e amor, de mistérios ocultos e figuras
indecifráveis. Laudicea se fizera uma
ouvinte atenta, absorvendo cada palavra como se fosse uma réspice (oração
sagrada). Ela acreditava piamente que cada conto “atonado” tinha o poder de
transformar a realidade, como se as palavras fossem fios invisíveis que
desobstruíssem para melhor, o destino das pessoas.
Uma tarde, quando o sol
preparava a mochila para ir embora e voltar dia seguinte, uma nova alma chegou
ao vilarejo. Esse, um viajante maltrapilho, as roupas sujadas da poeira de
tantos quilômetros percorridos, acimado com um chapéu largo e seboso, uma manta
que parecia não ver água por um bocado de janeiros. Essa criatura fora do comum
para os padrões daquele pedaço de chão, se achegou à localidade e se juntou ao
largo do reduto. Em poucas palavras (e no correr dos dias) se soube que também
contava histórias. A maior parte delas, misticofrenias (uma espécie de
transtorno que faz as pessoas criarem relatos sem pé nem cabeça) nascidas de
céus e mares distantes, apimentadas de aventuras fantásticas e inverossímeis.
Os domiciliados que por ali viviam, em pouco tempo ficaram pasmos e encantados.
Todavia, foi a “menina de
tranças” quem mais as escutou com a devida dosagem da atenção que emanava da
fluidez das suas curiosidades à flor da pele. O viajante em poucos dias
diversificou lorotando crônicas e causos os mais estapafúrdicos, e, entre esses
rolos e bololôs, o “chegado” narrou um imaginoso que despertou na adolescente
Laudicea, a de uma garotinha de oito anos que tinha o poder de fazer os desejos
se tornarem realidade. Para isso, ela precisava simplesmente engastalhar um fio
de ouro que não se fazia visível aos olhos comuns. Esse suposto cordel, uma vez
trançado, poderia realizar qualquer desejo que a menina mentalizasse. Em
oposto, a donzelinha carregava uma responsabilidade imensa: os anelos
almejados, como se fossem uma espécie de orexia, obviamente de fatos
intrincados que não se traduziam tão simples, e cada um deles, tinha lá as suas
consequências no “à depois.”
Quando o repertório
dessas histórias se fez concluso, o viajante misterioso, dezoito dias depois da
sua aparição se despediu e deixou a bucólica Santa Luzia do Monte Sagrado tão
enigmaticamente de quanto havia aportado. Laudicea ficou sem norte, ao sabor da
mente repletada de perguntas e um revolvimento inquieto martelando dentro do
peito. Na noite da partida do estrangeiro, ela não conseguiu conciliar o sono.
A imagem fúlvida (viva e cativante) do fio de ouro e da tal garota que
realizava desejos dançava tresloucadamente em seus pensamentos. Manhã seguinte,
Laudicea decidiu que queria tentar. Precisava, carecia, tinha urgência. Se
fazia imperioso colocar em pratica, sem mais delongas o escutado. Por conta, ao
invés de usar apenas fitas coloridas, pediu à avó um pouco de sua linha
dourada.
Esse conduto (composto de
um fio simples), para ela, a incrível “menina de tranças,” do mais profundo do
seu âmago, acreditava piamente que ele reunia todas as qualidades necessárias
tipo as daqueles povos indígenas da antiguidade – que evocavam rituais pajelâmicos
(cultos místicos realizado por um pajé indígena visando curar enfermidades
futuras). Enquanto conglomerava o “fio, ou o barbante dourado” em seus cabelos,
ela se ateve a um único desejo: um só. Que a sua querida Santa Luzia do Monte
Sagrado nunca perdesse (ainda que acontecesse algo sobrenatural), ou deixasse
despencar por terra a sua essência de paz, de amor e amizade. A vida continuou
a fluir como sempre. Entretanto, algo sutil havia mudado. E para melhor. As
pessoas começaram a se unir mais, a ajudar umas às outras de maneiras
inesperadas. Os problemas da pequena cidadezinha pareciam menores, e a sensação
límbia (o mesmo que acertada e correta) de uma comunidade unida e coesa crescia
a cada dia.
Embora Laudicea nunca
tenha revelado a ninguém o que fizera, todos os habitantes sentiram que havia
algo especial pairando no ar. Os anos passaram. Laudicea cresceu. Se tornou uma
moça bonita. Mais do que já era. Se formou professora e se casou com um menino
que, desde que se pegara apaixonada pelas malhas do amor, se tornou esposa
desse garoto (na época um vizinho seu) que fora embora para a capital e voltou,
anos depois, formado em medicina. Laudicea nunca deixou a sua cidade de berço,
e sempre manteve a tradição das “tranças” e o fio dourado dentro de seu “eu
oculto.” Em tempo algum precisou de invocar mais desejos, uma vez que
descobrira a verdadeira magia da felicidade plena e que, para mantê-la em firme
evidência bastava acreditar que um pouco de bondade e esperança poderiam fazer
e não só fazer, operar maravilhas.
Quando ela chegou à casa
dos sessenta, junto com o seu marido doutor e filhos (que, à semelhança do pai,
seguiram as suas trilhas), a inoxidável “Menina de tranças” (após a morte de
todos os seus entes queridos) deixou definitivamente Santa Luzia do Monte
Sagrado para explorar a capital. Em paralelo, o mundo. Levou consigo, nessa
viagem, não só o fio dourado, mas a certeza plena de que os verdadeiros
encantos não se faziam construídos de fios de ouro, ou barbantes para se
costurarem bonecas. Sobretudo, se avultavam reais e imorredouros, em face de
pequenas ações, corações e mentes voltadas para um único objetivo: o bem comum.
Assim, a fabulosa “Menina de Tranças” se tornou uma lenda viva em sua
cidadezinha natal. Não apenas como aquela criança inocente que cuidava de seus
cabelos cheios de tranças multicores, que ouvia histórias e que ajudava a avó a
criar bonecas de pano. Ela se fez além das tranças, como a jovem que, num único
desejo sincero, ajudou a tecer um destino brilhante e imorredouro para todos que
circundavam ao seu redor.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo, 13-9-2024
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Eu aqui de novo. Alguém, por acaso, já parou para pensar no que o autor Aparecido Raimundo de Souza quis realmente nos dizer na sua crônica Menina de Tranças publicado na sexta-feira passada, dia 13? Penso, ele quis dizer muitas, muitas coisas. O texto é de composição simples e acima de tudo nos mostra uma história encantadora e rica em detalhes que revela a magia das pequenas ações e da bondade genuína. A narrativa traz à tona a vida em um vilarejo pacato e a figura cativante de Laudicea, a Menina de Tranças, que se destaca não apenas pela sua beleza e delicadeza, mas também pelo impacto positivo que causa em sua comunidade. A história, do começo ao fim, é marcada por uma atmosfera mágica e nostálgica, com um enredo que mistura realismo e elementos fantásticos. Laudicea, com suas tranças adornadas e seu espírito acolhedor, se torna a personagem central que, através de um desejo sincero e uma pequena ação, consegue transformar a sua cidade natal de forma profunda e duradoura. A chegada do viajante misterioso e suas histórias exóticas adicionam um toque de mistério e uma motivação para a jovem, que decide usar um fio dourado emprestado da avó, para realizar seu desejo de manter a essência de paz e do amor em sua comunidade. A metáfora do fio de ouro é um símbolo poderoso na narrativa, representando a ideia central de que a verdadeira magia não está em objetos materiais, mas nas ações e intenções do coração. A história destaca como a bondade e a esperança podem criar um impacto significativo, e como um desejo puro e sem outras intenções pode contribuir para um bem maior. Além disso, o texto faz uma crítica braba e ao mesmo tempo sutil, à deterioração dos espaços públicos e à mudança dos tempos, mostrando que, mesmo em um cenário aparentemente estático, há espaço para transformação e renovação através de atitudes positivas e amorosas. Centrada na mesma ótica, Laudicea, ao longo dos anos, evolui de uma jovem com tranças coloridas para uma mulher realizada que carrega consigo a verdadeira essência da felicidade e do bem comum. Sua jornada é um testemunho de que o verdadeiro valor está nas pequenas ações que moldam e enobrecem nossas vidas e as daqueles ao nosso redor.
ResponderExcluir(Fim da primeira parte)
Por Tatiana Gomes Neves
tatianagomesnevesistoegente@gmail.com
do Sítio Shangri-Lá nas divisas de ES/MG
Segunda e última parte do comentário de A menina de tranças, de Aparecido Raimundo de Souza.
ResponderExcluirContinuando, a história não só celebra a magia da bondade e da união, mas também se torna um legado, um conto-crônica que inspira e ressoa como uma lenda viva. A Menina de Tranças como um todo, se transforma em um símbolo de esperança e de como a verdadeira magia reside em viver com amor e compaixão. No Menina de Tranças, a meu entendimento como leitora, não só do Aparecido Raimundo de Souza, como de outras matérias publicadas na fabulosa Cão Que Fuma, especificamente transmite uma mensagem sobre o poder transformador da bondade e da esperança. Através da história de Laudicea, uma jovem com tranças e um coração generoso, o autor ilustra brilhantemente como as ações sinceras e as intenções puras podem gerar um impacto profundo e positivo na vida de uma comunidade. E geram. A narrativa destaca que, embora a vida possa parecer estagnada ou deteriorada, pequenos gestos de amor e preocupação pelo bem-estar coletivo têm o poder de revitalizar e unir as pessoas. A metáfora do fio dourado simboliza a ideia de que a verdadeira magia não está em objetos ou encantos externos, mas nas atitudes e no desejo de promover o bem. Em essência, e em resumo, tirando algumas palavras um tanto rebuscadas do Aparecido (quem sou eu para criticar tais palavras), só vim falar do bucólico e do gracioso. O texto celebra a transformação que ocorre quando alguém usa as suas qualidades e ações para tão somente melhorar a vida dos outros, mostrando que a verdadeira felicidade e impacto positivo vêm de contribuir para o bem comum e cultivar uma mentalidade de bondade e esperança. O que aqui escrevi, acreditem aqueles que me lerem, serve para eu expressar como leitora, a gratidão de poder me encantar e me sentir feliz e realizada diante de uma boa leitura. A propósito; eu gostaria, para encerrar, de um dia poder visitar a Santa Luzia do Monte Sagrado.
Tatiana Gomes Neves, do sítio Shangri-Lá, entre as divisas dos estados do Espírito Santo e das Minas Gerais.
tatianagomesnevesistoegente@gmail.com
Agradeço as referências generosas à nossa revista.
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