terça-feira, 3 de setembro de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Como se fosse a velha crucificação encarnada

Aparecido Raimundo de Souza

“Para todos os malucos que ainda conseguem ver o mundo com os olhos de um cego dos ouvidos, há sempre um par de óculos dentro do congelador da geladeira da minha tia.”
Frase de Aristeu Encarnação da Boa Morte em seu livro “Morro de raiva quando falam no momento em que estou interrompendo.” Editora do Autor Desconhecido, Barretos, São Paulo.

NO FUNDO, eu sabia; aliás, tinha certeza de que, nos programas matinais de uma apresentadora sem qualificação para desfilar na tela da minha TV, eram ditas as mesmas coisas corriqueiras de todos os dias do ano. Bobagens que se repetiam exatamente com as idênticas informações (talvez mudasse algumas poucas palavras entre um dia e outro). Entretanto, no geral, terminava tudo numa configuração cansada e envelhecida, sem trazer nada de novidade. Mesmo norte, ela não estabelecia um diálogo positivista que me restituísse à esperança de continuar vivendo. Crucificado, aturdido, apalermado, continuei, como uma besta quadrada, sentado no sofá de dois lugares que comprei e coloquei na minha sala. Vi seus olhos, na primavera dos trinta, se voltarem para os meus. Ouvi seus lábios dizerem palavras que me tiraram o ar, me arrancaram do chão. Senti, mesmo com um chute nos colhões, cantar dentro de mim uma canção numa voz de taquara rachada. Essa se assemelhava à melodia de um amor insólito, que falava de uma paixão avassaladora, porém, tudo assim meio distante ou, pior, completamente desfocado de uma realidade palpável que pudesse soltar uns puns e dizer: “Nossa, essa droga valeu a pena. Ao contrário de seu rabo: ele peida bem.”

No meu circuito mental surgiram, de repente, os poetas que recitavam (e ainda declamam, acredito) o amor, onde se faziam presentes as mulheres sem noção, tipo essas figuras “noiadas” que, num simples e corriqueiro descuido, se afogariam sem as respectivas calcinhas em um mar de águas procelosas por homens apatetados e tolos, que somente fomentavam desprezos e inseguranças, além da total falta de alguma coisa fascinante e mágica que desse a entender (pelo menos a discernir) ou poder chamar verdadeiramente de “amor.” Ouvi, no mesmo “zumbido-tapa” no meio dos ouvidos, as donzelas que escreviam longas cartas para um destinatário impossível. Todas começavam assim: “Meu Deus, me diga onde encontro o meu cobertor de orelha... Será que é assim tão difícil para o senhor?”

Topei incansavelmente com seres derrotados que se perturbavam diante da beleza e do angelical, de forma a nunca mais voltarem a ser normais e centrados, porque não tiveram condições físicas e mentais para explicar com coerência o emaranhado das verdades contidas nas canções românticas e também nos velhos livros de poesias de Rubem Braga e Mário Quintana. Todas essas coisas me fizeram lembrar os moinhos de vento numa noite eternamente igual, onde eu (logo eu) lutava desesperadamente como Dom Quixote, todavia, sem as forças fulminantes de achar a minha eterna e doce Dulcinéia.

Desfilaram também, nessa eloquência ímpar e tresloucada, os meus momentos mais endiabrados, isto é, aqueles instantes esquizofrênicos advindos de um coração que inaugurara para mim os minutos mais latentes, que logo em seguida se confundiam com as cinzas dos cigarros que eu bebia em desespero incontido. De contrapeso, se faziam presentes, em minha alma, uma coleção de prazeres mundanos e mórbidos, notadamente os que tinham o condão de ferirem as pessoas do meu relacionamento, e tais desgraças sempre davam os ares quando a tarde chegava e caía com tudo de ruim em derredor dos meus acabrunhamentos. Por esse motivo, passei a viver na pele de uma anta fujona os derradeiros minutos de uma vida vazia e insossa, sem um objetivo positivo a ser alcançado. No mesmo trilhar, me deparei com a falta de sorte — aquela fortuna venturosa que até bem pouco tempo me transbordava a mente de recordações alvissareiras. Foi exatamente nesse momento e nesse caminho que me vi, cara a cara, com um leque de figuras diabólicas que me atrapalharam o “ser eu mesmo” e, mais além, na hora em que a magia estupenda da transfiguração me brindaria, me contemplando com as dádivas da felicidade e o destino, por certo, me daria uma trégua e me deixaria inexplicavelmente aquietado e em completa paz de espírito, a merda toda se degringolava.

Como a brasa do desejo queimando forte na carne, perfurando o mais profundo do meu ser. Mas valeu a pena? Claro que valeu. Através desses entraves, vi, sobretudo, tomei conhecimento nessa viagem meio lá, meio cá, introspectiva e marota, e, no mesmo tom, me flagrei enrolado dos pés à cabeça com as interferências maledicentes de alguns espinhos que absurdamente perturbaram a tarde mansa. Aprendi aos tapas que (os espinhos, quando crescem, machucam mais, ferem fundo e, geralmente, não se pode extirpá-los pelo esquecimento). Tempos à frente, como num passe de uma varinha de condão, se desintegravam. Tão simples como o desligar da minha televisão. E assim foi. Meu mundinho de ociosidades virou uma sequência infernal de fantasmas, tipo assim, como se viessem aprisionados por um vento imensurável e impiedoso. Esse quadro me crucificou e, na verdade, ainda me põe de quatro. Em meu agora, tudo parece assim, uma loucura arranjada feita de espinhos. Daí ter o sentido exato da crucificação, como se ela fosse uma doença antiga encarnada. Apesar de tudo — agora me dirigindo a sua pessoa —, não sei o que isso tem a ver... só sei dizer que gosto muito de ti. Cá entre nós, quem és tu?! Ou quem é você?! Levo-te comigo, no coração, bem lá no fundo. Lavo-te, perdão, levo-te, acalentada num cantinho secreto que existe dentro dele. Levo-te, apressado, até o meio do dia e me sento contigo à beira de um lago majestoso. Lembra o Ness.

Não, é outro. A merda se assemelha ao Lago Otário, desculpe, o Lago Ontário — aquele que se divide como um lençol escarlate entre o Canadá e os Estados Unidos. E deixo que, a partir daí, tu feneças levemente como à tarde que morre lentamente, calidamente, dentro do âmago da solidão que me sufoca e me invade, atormentando todos os espaços, sabendo, todavia, que depois renascerás ao anoitecer e serás pungente ao te confrontar com uma estrela na madrugada fora de órbita da minha esperança com cara de Lula saindo da cadeia. Não sei, talvez eu queira dizer muito mais desta paixão. Dizer, por exemplo: “Seja bem-vinda, amor da minha vida, porque tu me fazes bem. É um bem-mal letal, fatal, mas necessário. A beleza da manhã (com seus domínios de luz) se torna inexplicável e intransponível. O importante, contudo, é saber se esse encanto que contemplo, essa beleza sem par que me desassossega, não me virá mandar de vez para os quintos da puta que me pariu.” Indago, por qual motivo digo essas coisas, bobagens sem nexo. Não sei o que nem para quê. Creio, retalhos extraídos de um complexo que está no mundo, mas que, igualmente, gira dentro de mim, como num carrossel desenfreado e, à medida que gira, grita, explode, se funde, se congrega com essa paixão, fundamentalmente enraizada, perfeitamente arraigada e desmedida, incontida, sei lá, na mais louca das minhas infindáveis “engazopações.” A propósito: essa palavra existe?! Deixa pra lá.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 3-9-2024

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