sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

[Aparecido rasga o verbo] Do pecado à redenção

Aparecido Raimundo de Souza 

HAVIA UM BURACO imenso e descomunal, quase ciclópico e terrivelmente sombrio na cabeça de Josué. Ele se sentia como se tivesse saltado de um penhasco tão alto que não conseguia ver onde se esborracharia no final da queda. De fato, para quem salta de um penhasco, realmente não vê porra nenhuma. Aos poucos, a sua mente buscava preencher cada pedacinho dessa trajetória insana objetivando recompor segundo a segundo o que passara até chegar onde se via agora. Num repente, como se num passe de mágica, isso ele viu. Tudo lhe acorreu à baila do acontecido daquela fatídica noite. Recordara, primeiramente que bebera demais. Enchera a cara engravidando mais do que devia, seus pesadumes e acrimônias. 

Sabia, que entornara além da conta. Misturara cachaça com whisky, cerveja com vodka e, de roldão, uns arrebites para se manter acordado. Queria mesmo pôr fim definitivo à sua existência medíocre. Lembrara que entrara no enorme salão de uma boate tipo inferninho, onde haviam lustres cobrindo toda a extensão do teto, sustentando bocais, embutidos com lâmpadas de várias cores. Abaixo, rés ao chão, muitas mesas e cadeiras se espreguiçavam por todos os cantos. Gente aos borbotões ocupavam espaços onde não existia sequer um desvão para uma mosca pousar. Ainda que ela fosse chata como o Tiririca contando as suas piadinhas idiotas, ou como o Luiz, vendedor de livros que lhe mandava, via WhatsApp um monte de porcarias sobre política. E ainda por cima, repetidas.  

Num canto, perto da moça do caixa, duas vitrolas dessas antigas, sedentas por “engolimentos” de fichas, tagarelavam alto demais, uma atrapalhando a outra, ensejando uma mistura de música de forró com Pabllo Vittar menstruado ou algo barulhentamente parecido com Roberto Carlos de terno vermelho declamando Carlos Drummond de Andrade. “E agora, José?!” Em meio desse inferno —, pessoas carnavalizavam a dança da boquinha da garrafa, ao tempo em que um leque enorme de garçonetes de calcinhas tampando só a parte da frente, contrastava com outras sem nada, tanto na dianteira, como na retaguarda. 

Elas eram as barwoman. E, como tal, transitavam de um lado para outro, gracejando rodopios numa dança grotesca, as bandejas ao alto, nas mãos, ora levando copos vazios, ora trazendo outros com bebidas até a borda. O barulho de garrafas sendo abertas, se condensava com as risadas estapafúrdicas seguidas de gritos bizarros. Noutras se fundiam aos contornos de palavrões escabrosos e taças se espatifando de encontro ao piso —, às paredes com regozijos de várias bundas e bandas de rock pesado, como Queen, Led Zeppelin, Pink Floyd, The Rolling Stones e outras bestialidades em ascendências efervescentes. Tudo se comprimia e se acomodava em esteiras de rostos caóticos como se uma partícula ínfima de cada um dos sete infernos de Dante houvesse se instalado ali, as portas abertas e à disposição de almas desesperadas em busca de prazeres os mais mórbidos e mazelentos. 

Inseguro, esfomeado, Josué arriscou espiar para uma moça jovem, completamente vestida com elegância, aí pelos dezoito anos, acompanhada de um sujeito que se parecia com o anticristo Alexandre de Moraes no tempo em que o outro Alexandre, o “Grande,” nem pensava em conquistar além do STF, o poderoso império Persa, a Síria e o Egito. Esse cara, ao capturar o olhar esfomeado de Josué, veio tirar satisfações. Puxou uma caneta do bolso à moda Manoel Carlos e, com ela, fez menção de enfia-la nas genitálias de Josué. Errou a pontaria. Por conta, uma luta corporal intensa surgiu do nada e Josué, repletado de energias anímicas, acabou levando a melhor, despachando o sujeito para a cidade dos pés juntos. Morto o namorado da inimitável deidade, a galera presente debandou geral. 

Chegada a polícia, descobriu-se mais tarde, que o “boca de sapo” nada mais, nada menos, vinha da consanguinidade de um deputado ladrão de Brasília com uma sirigaita com cara de Cármem Crúcia. Josué imediatamente se viu preso, algemado, estapeado e chutado nos fundilhos, e depois dessas sevícias, levado para um lugar incerto e não sabido. Dizem as más línguas, para uma prisão tipo aquela de Boyard. Por muito tempo engaiolado em águas distantes, o cenário de sua pacata cidadezinha interiorana saiu definitivamente de “cena.” E, junto com ele, se foi também a curva Tamburello. Por anos a fio, não sabe quantos, mergulhou o pobre Josué num escuro inóspito onde somente se avistava corredores mal iluminados e por onde, em paralelo, uma plêiade de guardas fortemente armados (lembrava os “Dragões da Independência”) antes do circo armado de 8 de janeiro de 2023, que o vigiavam incansavelmente dia e noite. 

Exausto dessas imagens, somente tinha diante de si um banheiro sujo, idas e vindas à solitária, surras e pancadas, e quando pintava uma réstia de sorte, desfrutava de uma “jega de cimento fria” e comida uma vez por dia. Sem direito a café ou lanche da tarde. Vez em quando, se aboletava por sobre a bacia da privada imunda e espiava por uma janela minúscula que mal cabia a sua curiosidade imbecil. Do seu ponto de observação reduzido, descobriu que a brecha da sua gaiola descambava para um beco emparedado. Havia nele, um estreito corredor conhecido (se soube depois), por pertuito de Gibraltar que, por sua vez, mostrava não a rua, mas um pátio enorme onde um amontoado de presos completamente pelados tomava banho de sol dividindo espaços com seguranças armados até os colhões e viaturas estacionadas, possivelmente à sombra da espera silenciosa para saírem em busca de mais criaturas iguais a ele, amofinadas por algum ou vários delitos cometidos. 

Documentara também, um pouco mais à distanciado, umas luzes fracas em postes cansados de ficarem em posição de sentido. Essas nitescências chegavam aos seus cornos efemeramente mortiças e incertas, tanto quanto aquele cortiço malvisto e taciturno em que vivia. Sua cabeça girava sem controle como um alongamento sobre o próprio movimento do pescoço meio parecido com a gigantesca roda gigante Ain Dubai, nos Emirados árabes.  Seus olhos corriam ligeiro sem sair das órbitas. Passeavam pelo pequeno aposento que compunha o quadrado da sua solitária. Duas lajes como já dito, em forma de cama, sem colchonetes se engrandeciam dentro daquele ergástulo quartinho repugnante e desasseado. Apenas um saco de pano, desses usados para pisos, servia de cobertor objetivando distrair o frio gélido das noites. 

Pelas construções imundas e nojosas, dezenas de páginas de revistas de mulheres nuas, mal coladas, mostravam as suas partes intimas como o monte de Vênus, os grandes e pequenos lábios deformados pelo uso constante dos parceiros que os usavam a bel prazer de suas taras recheadas pelos desequilíbrios mentais. Algumas dessas perversões, se destacavam riscadas com frases indecorosas. Obras, certamente de ocupantes anteriores como discípulos de Bocage, que tiveram o desprazer de passarem por ali. Impacientes e inquietos, trêmulos e afobados para toparem com uma saída salvadora daquele purgatório inumano. Em resumo, a ópera, revirava, num gosto de coisas podres junto com as salivas que teimavam em escorrer pela boca de Josué, como se ele babasse feito um bebê de colo. 

Seus horrores se faziam exaustos e facinorosos para um rosto malcuidado. A única peça que vestia, uma cueca salpicada de bosta. Certamente, tudo daria para suportar o insuportável. Os pés fedendo a excrementos não davam brechas. Para seu azar, não tivesse vomitado inúmeras vezes sem conta e seu corpo todo em carne viva, não se desmanchasse cheio de perebas, talvez suportasse melhor a sua desdita. — “Meu Deus —, pensava consigo o trapo humano que se tornará: — “Como um momento poderia mudar uma vida inteira? Maldita hora em que entrei naquele antro endemoniado e me deparei com aquela estonteante Branca de Neve. Ele não sabia da história da Branca de Neve, mas todo o seu “eu” se sentia como Gregor Samsa, aquele personagem famoso da “Metamorfose de Kafka.” 

As respostas para essa e outras indagações que procurava, não se faziam suficientes. Aos poucos, foi percebendo que às vezes — pensava de si para consigo, o cenário mudaria para sempre, noutras para o nada, ou via paralela, se enfurnaria para um descaminho de inconsequências devastadoras e hostis ou, no pior dos impossíveis, se escangalharia numa voragem estupefata e gigantesca, como um abissal mil vezes maior que a sua fístula ulcerosa. Lembrou, numa dessas divagações, de uma cigana, quando certa vez, atravessando o Viaduto do Chá, em São Paulo, em troca de duas moedas de um real, ela leria as linhas sujas de sua mão trêmula. Josué não acreditava muito nessas coisas, principalmente em raparigas jovens. Porém, naquele momento, enfiado até as pregas do cu da bunda numa enxovia no meio do nada, as palavras dela voltavam à sua cabeça com uma velocidade incrível: 

— “Você despencará como um avião da VoePaz (que logo cairá em Vinhedo) num grande desastre aéreo, que se abrirá para ti como mil quilos de chumbo caindo em espiral.” Essas palavras martelavam a sua cabeça, ao tempo em que um estoque de visões de coisas que não podia controlar ajudava a inundar seus pensamentos: “Vou te dar alguns avisos — disse a moça a certa altura: — Segui-los, ou não, é com você. A jornada é sua, exclusivamente sua e a decisão de passar por aqui ou atalhar por ali é o que moverá o seu livre arbítrio.”” Pela primeira vez na vida Josué se sentiu só. Preso às turbulências da infelicidade degradante que o matava aos poucos. Que vontade estar em casa, deitado em sua cama — o lençol perfumado, sediado num travesseiro de algodão macio, a carcaça recostada confortavelmente... os esbugalhos colados na tela vendo um filme pornô com a Sanja na televisão, sobre a cômoda velha, onde a sua mãe guardava as roupas limpinhas e passadas. 

Tudo a tempo e a hora. Queria um café, a empregada Matilde trazia. Um suco, um prato com biscoitos, a serviçal, incansável, vinha e voltava sem reclamar. Afora os atos de violência contra a moça de apenas treze anos. Josué obrigava a adolescente a manter com ele relações sexuais muitas vezes no quarto e na cama da própria mãe frenteado para um espelho oval enorme que ficava posicionado ao lado de uma penteadeira enorme. Josué gostava de ver claramente refletidos nele, os gestos infames de seus atos bestiais. Para aumentar o suplício, evitando que a vítima não gritasse, enfiava a calcinha na boca da guria, junto com a sua cueca, para que exausta, a pequena vítima se quedasse estiolada e sucumbisse em silêncio aos seus atos de selvageria. 

Nessas horas, soltava diante das sevícias impostas à infeliz, umas gargalhadas estranhas em contraste com as humilhações e o choro convulso da pubescente. Submetida à ele, a coitada, sem saída, acuada, com medo, temerosa, inclusive, de ser descoberta pela patroa, e, por desgraça maior, perder o emprego, se entregava ao tempo em que invocava Deus. Seu corpo estropiado, sentia, agora, na verdade, doía na alma a tristeza acesa queimando como brasa viva o seu peito dilacerado. E pior: tudo por ali vinha acompanhado de uma sensação de solidão e vazio. O tempo passou, e, com ele, os anos. Dois, três, cinco... sua mãe a única familiar viva, longe no distanciado de onde ele padecia encarcerado, sofria sem saber por onde o filho andava. 

Sem dinheiro, sem recurso para o contrato de um defensor, o rapaz apenas via passar o tempo, e, com ele, o esvair da sua juventude. Um dia, do nada, o evento que o fez renascer por dentro. Por descuido, ou sabe-se lá, premeditação, alguém no seu ofício carcerário, falhou na obrigação de ser polícia. Houve uma fuga em massa e Josué, irmanado aos demais de outros cubículos, que ele nem conhecia, aproveitou o ensejo e partiu para o abraço. Várias pirogas (tipo aquelas canoas dos índios que habitavam o Brasil dos idos de Cabral, se fizeram ao mar bravio tardão da noite. Entretanto, a sorte ingrata não lhe sorriu como ele particularmente esperava e desejava. Apenas o resquício de um sonho incompleto que deveria ser tudo infinitamente legal. 

Quase ao itinerante derradeiro da debandada, uma alcateia disfarçada de policiais se fez maciça em lanchas rápidas e abundantes de recursos de última geração. Um a um, infelizmente, os desprovidos dos olhos do Pai Maior, foram sendo caçados. Outros não tiveram a sorte de continuarem respirando. Entre essas pobres almas, figurava Josué. A criatura foi recapturada — ou melhor, abatida logo depois e o seu corpo acabou como tantos, cravados de balas, e, às escondidas, desovados em meio as águas escuras de um oceano que ele nem sabia o nome. Josué não teve, pois, a sorte contemplada a seu favor. Tampouco soube (ainda que por ouvir dizer) que das suas investidas em face da Matilde, ela engravidara. 

A pobre mãe, por seu turno, ao descobrir a prenhes e constatar que realmente o bebê da sua ajudante do lar, de fato, gerara o seu futuro neto, ao vê-lo nascer, dele e da pobre mãe que o trouxera ao mundo, não a despejou aos reveses da sorte. Cuidou com esmerado carinho e amor, como antes, a mesma ternura e dulçor que projetara para Josué em igual docilidade e rendição. Uma brandura igual ou maior de quando o acalentava nos braços nos primórdios anos de vida, o seu único e amado herdeiro. Um moço menino, que ela nunca soube ou tomou conhecimento do fim trágico que a vida reservara para ele. Possivelmente, essa criança, quando ficasse mais velha, escreveria um livro que viraria filme. O nome?

“Ainda estou aqui.” 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 7-2-2025 

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Itinerário de uma ausência 
Namoradinhos 
Batismo difícil 
Quando ela saiu detrás das telas de privacidade 

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