terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

[Aparecido rasga o verbo] Itinerário de uma ausência

Aparecido Raimundo de Souza

NO BARULHO INTERMITENTE de uma tarde chuvosa, em seu apartamento na Borges de Medeiros, Mariádina fechava a porta de sua casa pela derradeira vez. A ausência do prédio e do seu apartamento seria marcada pelo itinerário de uma jornada sem destino certo, mas com um propósito definitivamente claro, certo e conciso: encontrar a si mesma onde a sua parte faltosa estivesse perdida. 

Deixou para trás o eco das antigas risadas em família, e com a Marina, sua empregada, os dois cachorros, Pimpão e Serena, bem ainda os encontros casuais com amigos no calçadão de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas e o cheiro das flores que enfeitavam o jardim da sua varanda. Cada canto e cada detalhe daquele apartamento traziam lembranças imorredouras que ela carregaria consigo, e que ao mesmo tempo, sabe-se lá por qual cargas d’água, a sufocavam de maneira quase violenta e descomunal. 

Com uma bolsa de viagem pequena, poucas roupas e um coração cheio de expectativas, Mariádina se deslocou de Uber, até o aeroporto Santos Dumont, na Praça Senador Salgado Filho. A cada quilômetro longe do seu habitat, a sensação de liberdade aumentava, crescia e se agigantava. Uma espécie de medo e excitação, tristeza e alegria, como um romance que acabara de ler faltando apenas algumas páginas para a finalização do seu enredo. 

O primeiro destino foi Salvador e ao descer no Luiz Eduardo Magalhães foi visitar o Farol da Barra, na Ponta de Santo Antônio. Lá, descobriu a paz no som das ondas e a beleza nas simplicidades da vida. Sentiu a brisa tocar seu rosto e percebeu que a ausência não se fazia apenas física, mas também emocional. Tipo um distanciamento do passado para abrir espaço para novas experiências ainda não vivenciadas. 

Seguiu logo depois, para a Cidade Alta. Antes passou pelo Mercado Modelo, na Visconde de Cayrú e, em seguida, subiu pelo Elevador Lacerda, saindo na Praça Tomé de Souza. A cidade estava movimentada, nesse dia.  Visitou vários templos culminando com à entrada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, onde as luzes da Esperança apregoam, nunca se apagam. Nos rostos desconhecidos e nas ruas sempre cheias, Mariádina encontrou inspiração. Conversas aleatórias, culturas diversas e a energia pulsante daquele lugar mavioso fizeram o seu coração bater mais forte. A ausência se tornava, até então, uma jornada de descobertas internas. 

E assim foi, de cidade em cidade, de aeroportos em aeroportos, de ruas em ruas, de avenidas em avenidas. Cada parada no itinerário trazia uma nova perspectiva, uma vasta compreensão sobre si mesma. Mariádina percebia que a ausência de sua antiga vida se entrelaçava e que novas possibilidades floresciam a cada minuto. De regresso, não se via mais na mesma pessoa que havia deixado o seu apartamento no Rio de Janeiro, de frente para o Cristo do Corcovado. Num piscar de olhos, a sua estrutura se tornara em alguém mais completa, mais consciente de suas escolhas e sobretudo, de sentimentos. 

Ao final de sua jornada, depois de ter passado por Brasília, Porto Alegre, Floripa, São Paulo e Belém do Pará, entendeu que dois meses e pouco de ausência, ou seja, aquele distanciamento egresso que tanto temia, na verdade, terminava num carreiro para o autoconhecimento. Aprendera que ficar divorciada de tudo não significava estar sumariamente perdida, mas sim na rota de se permitir encontrar em um novo projeto de vida, ou melhor, em uma nova versão de si mesma, a sua verdadeira personalidade ou a essência que ela achava estivesse desfalecida.  

Ao retornar, Mariádina percebe não é mais a mesma criatura. Em sua bolsa, além de lembranças dos lugares por onde passou, trazia a certeza de que a ausência fora necessária para que, enfim, pudesse se sentir verdadeiramente presente em sua própria existência e feliz e realizada consigo mesma. O itinerário da ausência é exatamente isso: um conceito que pode ser abordado de várias formas. No caso de Mariádina, especificamente, ela fez uma viagem física e emocional, mas o subterfúgio de não estar onde deveria, também pode ser vista através de outros prismas ou de outros olhares mais abrangentes. 

Podemos pensar na privação como bem disse Henry Thomas Hambrin em seu livro “O Poder está dentro de você” Ele persevera afirmando que “a ausência é um estado de reflexão e autoconhecimento. Muitas vezes, o ostracismo de algo ou a falta de alguém que nos é caro, nos faz perceber o verdadeiro valor da presença. É como o ditado: "só damos valor quando perdemos". Essa ausência pode ser temporária ou permanente, mas sempre trará consigo, de alguma forma, a oportunidade de crescimento pessoal.”’ 

E continua: “Imagine, por exemplo, alguém que decide fazer uma pausa na carreira para se dedicar a um projeto pessoal. Essa ausência do ambiente de trabalho pode parecer desafiadora no início, mas tende a abrir portas para novas habilidades, paixões e até mesmo uma nova visão de vida. Da mesma forma, a ausência de um ente querido pode ser dolorosa, mas igualmente pode lecionar sobre amores e memórias que por conta deles, permaneceram vivas””. 

Vista por outro foco, podemos concluir que a ausência pode ser e, de fato é, um tema poderoso na literatura e nas artes. Escritores e artistas muitas vezes exploram a ausência como forma de expressar saudade, perda ou até mesmo a busca por algo maior. Pensem em personagens que deixam tudo para trás em busca de respostas ou naqueles que ficam para trás e precisam lidar com a ausência de quem partiu. 

Pois bem. Entre mortos e feridos, a pergunta que deixo no ar é a seguinte: vocês (minhas caras senhoras e vocês, meus prezados e queridos senhores), acaso já experimentaram uma ausência marcante em suas vidas? Sim? Não? Talvez? Me digam, em poucas linhas, como isso afetou a sua alma e o que o seu “eu interior” aprendeu com essa experiência? 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 4-2-2025 

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