Maria João Avillez
Bagão
Félix tem a felicidade iluminada pela banalidade grave com que se imola pela
salvação da pátria. Silva Peneda é pior porque lhe subiu ainda mais a cabeça
não se percebe bem o quê.
Há muitos anos Herman José e
Nicolau Breyner tinham um mano-a-mano cujo muito oportuno humor e a corrosiva
verve bebiam na melhor tradição do teatro de revista. Era tão popular que o
país se apoderou do sr. Feliz e do sr. Contente, as duas personagens, andavam
de boca em boca. Quase quarenta anos depois irromperam em Portugal um senhor
senhor tão contente e um cavalheiro tão feliz que me lembrei do Nicolau e do
Herman. Hélas, não tenho engenho e a arte para caricaturar já que tais
personagens não pedem senão isso mesmo: uma demolidora caricatura. Pode ser que
alguém se lembre, eu ofereço o guião.
Falo de Bagão Félix e de Silva
Peneda, [foto] pois raramente se viu alguém tão feliz e alguém tão contente.
Para começar, com eles
próprios, o que torna o caso intrigante. Esfuziam de felicidade com as suas
próprias prestações na media sem lhes ocorrer que o país assiste a elas –
quando assiste – entre o pasmo e a pena. Afogam-se de contentamento com as
coisas que dizem, ideias que têm, iniciativas que promovem. Não se trata – como
apressadamente a má-fé vigente já estará a acusar-me – de “eles terem o direito
de pensar o que querem”. Trata-se de não terem o direito de lesar o país,
confundindo, enganando, iludindo irresponsavelmente quem os ouve, através das
“certezas” que apregoam e das esperanças que vendem
Bagão Félix tem a felicidade
iluminada pela banalidade grave com que se imola pela salvação da pátria, mas o
mais assustador é que o seu sorriso supostamente beatífico traduz que sim, ele
saberia como salvá-la.
Silva Peneda é pior porque lhe
subiu ainda mais a cabeça não se percebe bem o quê. Sempre cheio de si, acha-se
“indispensável” (a quê?) e exibe-se como tal. Um mistério, cuja raiz
inteiramente ignoro mas do qual não quero ser vitima. Peneda rebenta dele
próprio. Emite pareceres salvíficos, publica comunicados, e quando reúne
conselhos e conselheiros geralmente da quarta idade, limita-se a promover os
interesses instalados dos quais depende. Exagera tanto as cores negras com que
há três anos pinta o pais que, estando na política como julga que está, devia
seguir Talleyrand: “tudo o que é exagerado torna-se insignificante”.
Têm um e outro um activo
ressentimento e como se sabe e os manuais políticos ensinam, o ressentimento é
facilmente instrumentalizável. É o caso. É preciso assinar um documento com
Louçã? Bagão exulta com a perspectiva de mais uns minutos de publicidade e
falsa moral e corre para o que for preciso, garantindo o que for preciso, assinando
o que for preciso. É urgente fazer constar (Santo Deus!) que Junker “preferia”
Peneda a Moedas? Silva Peneda, instrumentalizando Manuela, (pessoa de quem
gosto e que respeito) pede-lhe que publicite que ele, Peneda, esteve quase a
ser Comissário, não fora a maldade do governo. Manuela executa, Peneda respira
fundo: já pode afirmar que “sendo a dr. Manuela Ferreira Leite é uma pessoa bem
informada”, a sua não ida para Bruxelas era mesmo censura governamental.
Esqueceu-se de acrescentar que a dr. Manuela fora exclusivamente (mal)
informada por ele próprio. Se há história – desinteressante, de resto – que eu
conheça de trás para diante, é esta mas o que interessa sublinhar é que todos
os dias, sempre que pode, Silva Peneda se quer “vingar” (ainda?) da decisão do
Governo ao optar por Moedas. É certo que não ignoro a amizade entre Peneda e
Junker… mas so what? As escolhas são do foro dos Executivos e porque haveria
este de se deixar seduzir por alguém de outra época, outro “país” e sem
especiais pergaminhos que o recomendem?
O sr. Feliz e o sr. Contente
estão agora já à porta do Largo do Rato. Na soleira de quem, acham ambos, que
lhes vai dar a comer o bolo sem se darem conta, nem um nem outro, que, comendo
ou não o bolo, eles serão os “figurões” que convêm ao PS para mostrar a sua
democrática “abrangência” que é aliás generosa: vai da extrema-esquerda ao CDS,
mas tudo tão velho e datado. Que susto.
Para mostrar serviço, o sr.
Contente e o sr. Feliz irão, dentro de dias, fazer um número “patriótico”
explicando publicamente, perante uma plateia certamente composta por parte das
nossas desgraçadas elites, como se reestrutura a divida. Os socialistas
agradecem enquanto, por seu turno, Peneda e Bagão se sentem mais perto do
palco, da decisão, do poder. Da glória que chegará enfim, sendo certo que o ego
de ambos ajuda à ilusão. Eu devia ter desconfiado que tudo isto poderia não
passar de uma farsa quando ouvi Augusto Santos Silva (insistindo, é certo que
falava em nome pessoal mas…) citar-me há dias nos nomes de ambos, numa
entrevista aqui no Observador. Afirmava o ex-poderoso ministro que o PS, em
caso de vitória eleitoral, poderia “por exemplo” virar-se para a corrente
democrata-cristã (?) do CDS, personificada, segundo ele, “por exemplo, em Bagão
Feliz”. E o mesmo PS poderia também inclinar-se para a ala social democrata do
PSD, representada “por exemplo” por Silva Peneda.
De modo que agora eis os dois,
propondo-se debater a nossa dívida sob a égide da Câmara Luso-Belga-
Luxemburguesa (?) que tão prestimosamente os acolherá. Que eles achem que sabem
como “restruturar a dívida”, é com eles. Que deem verosimilhança à certeza da
sua restruturação, desenhando um quadro onde avulta uma possibilidade que o
país não tem, já é comigo: não gosto que me mintam. Confundir intencionalmente
o palco das decisões com a animação dos bastidores; fazer crer que há muita
coisa já em curso quando o que há não passa de inorgânicas conversas privadas
entre actores políticos, alguns ainda nem sequer legitimados eleitoralmente,
parece-me pouco sério e pouco sólido. Não vale a pena repetir que será adequado
que alguma coisa venha a ocorrer neste caso e com este tema. Nem sublinhar que
é natural que a médio prazo (um médio prazo longuíssimo, em todo o caso) possa
haver alterações quanto ao modo de lidar com a questão. Seja como vier a ser,
não é isto que eles dizem hoje, prometendo indevidamente mundos e fundos para
amanhã.
E, finalmente, acresce que
qualquer debate sobre divida, austeridade, troika, terá forçosamente de se
iniciar pelos anos pré-troika. Sem isso nunca se aterrará com boa visibilidade
na análise dos anos de chumbo que se seguiram. Será interessante ver como se
orienta a viagem do professor doutor Bagão Felix (é assim que está no convite)
e do economista que quer ser “special adviser” de Juncker (o homem não
desiste).
Em resumo: o Sr. Contentíssimo
e o Sr. Felicíssimo, para além do nosso descontentamento e da nossa
infelicidade, são a nossa vergonha. (Vou ficar com dois amigos “pra vida”.
Ossos do ofício.)
2. Tenho por vezes dificuldade
em fazer-me entender – sobretudo à esquerda que confunde algumas coisas
essenciais – quando falo de Portugal e dos deveres que ele nos impõe. Impõe
naturalmente, como quem respira ou fecha uma torneira depois de a usar. Impõe
automaticamente. Gostando-se ou não dos seus protagonistas políticos, havendo
ou não identificação com quem nos representa ao mais alto nível, tendo ou não
tendo neles votado, não é disso que se trata. Às vezes – e nem sequer são
muitas vezes – o país tem de passar a frente de gostos e desgostos.
Na partida do português Durão
Barroso da Comissão Europeia ao fim de uma década intensíssima, o facto de se
tratar de um compatriota que se despedia não contou, nem pesou. Outros valores
mais altos se levantavam, o que era preciso era dizer mal, só mal, muito mal. E
claro, ter ficado sentado, quando estrangeiros se levantavam para o aplauso de
circunstância da despedida. Imperioso naquela hora era consumar,
portuguesmente, ressentidamente, pequenas e médias vingançazinhas acumuladas. E
grandes invejas, claro está. (Das quais Francisco Assis, honra lhe seja, ficou
incólume, ao ter ousado destoar e levantar-se da cadeira.)
Do desempenho de José Manuel
Durão Barroso se encarregarão o tempo e a História. Mas eu posso dar-me ao luxo
de um balanço bem mais modesto: o balanço entre o respeito que o país nos deve
merecer e as boas maneiras que isso pressupõe. No caso em apreço não houve nem
um, nem outra.
3. “Ameaça”, disse ele.
Estranhei o substantivo, pareceu-me deslocado. Não era porém a minha opinião de
“perguntadora” que contava, mas a de Augusto Santos Silva meu convidado na
(muito) interessante conversa que aqui tive com ele e acima mencionada. Mas já
é do meu foro poder espantar-me hoje, nesta coluna de opinião, com a escolha da
palavra. Santos Silva referia-se à anunciada disponibilidade de Passos Coelho
para continuar na liderança do PSD mesmo em caso de derrota nas próximas
legislativas. Ou seja, uma declaração de intenção política de alguém no pleno
uso dos seus direitos civis e políticos, é extraordinariamente travestida de
“ameaça”. Passos terá de sair da frente levando com ele os anos da governação
sobre os quais o PS quer absolutamente oficializar a sui generis leitura que
tem, mas não sem que antes o mesmo Passos se esqueça de abrir a porta ao
sucessor designado no Largo do Rato, o actual “chou-chou” dos socialistas. Rio,
de seu nome e graça.
Mas quando Paulo Portas, há
uns anos, se mostrou disponível para com o CDS dar uma ajuda governamental ao
PS “desde que sem José Sócrates na liderança do Executivo” (lembram-se?), os
socialistas perderam a cabeça. E clamaram dezenas de vezes contra as inaceitáveis
“ingerências” na vida interna do PS.
É sempre, sempre, a mesma
coisa: dois pesos e duas medidas. De um lado, uma vil “ ingerência”; do outro,
uma inconcebível, quem sabe mesmo se anti-democrática, “ameaça”.
Pensando bem, não me espanto
assim tanto.
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