sábado, 13 de janeiro de 2018

Santana, Rio, Soares e outras notas de rodapé

Alberto Gonçalves

A proximidade às mesas dos restaurantes onde se distribuem prebendas do Estado não equivale a “ter mundo”. Pequenino e comum ao doutor Santana, ao doutor Rio e a Portugal inteiro é um mundo que dá pena.

1. Parece que os doutores Rio e Santana disputam hoje a presidência do PSD. Parece ainda que ambos cometeram uns debates por aí. Não vi. Consola-me saber que ambos tentam mostrar-se diferentes entre si e conseguem sugerir que nenhum se distingue particularmente do conhecido doutor Costa. O resto, que para meu desgosto não evitei ler ou ouvir, é a troca de lugares-comuns que caracteriza competições assim. Talvez por vingança, os “media” acrescentam os lugares-comuns que faltavam.

O meu preferido é o que deprecia o doutor Rio por exibir uma “dimensão” mais “regional” e valoriza o doutor Santana por “ter mundo”. Tradução, o doutor Rio não mora em Lisboa e o doutor Santana sim. É um critério engraçado. O doutor Rio possui pouquíssimas recomendações, a começar por um bando de apoiantes susceptível de aterrorizar o soldado Milhões. Mas rebaixá-lo pelas ligações nortenhas é tão pertinente quanto “Tony” Carreira ridicularizar o penteado do senhor Trump.

Caros compatriotas, somos todos portugueses, logo, do Minho a Tim…, perdão, aos Algarves, somos todos regionais, periféricos, provincianos, parolinhos, suburbanos e os restantes epítetos que explicam a fatalidade de o país ser o simpático embaraço que é e não uma coisa adulta e vagamente apresentável. Das Avenidas Novas ao largo de Figueiró dos Vinhos, a única diferença é o possível deslumbramento dos que habitam as primeiras. A proximidade às mesas dos restaurantes onde se distribuem prebendas do Estado não equivale a “ter mundo”. Este mundo pequenino e, na essência, comum ao doutor Santana, ao doutor Rio e a Portugal inteiro é um mundo que dá pena, pena do doutor Santana, do doutor Rio e, sobretudo, de Portugal inteiro.

2. “O nosso dever é todos os dias homenagearmos Mário Soares”, decretou o doutor Costa em cerimônia oficial de homenagem a Mário Soares. Da maneira que isto está, ignoro se a coisa já subiu a lei e se as coimas por desobediência são pesadas. À cautela, estabeleci um programa. Segundas e terças-feiras, recordo o Soares filósofo, relendo as crónicas dele no “Diário de Notícias” e sublinhando com um lápis afiado as referências ao “bom Papa Francisco” e à responsabilidade do “neoliberalismo” nas “alterações climáticas”.

Quartas-feiras, celebro o Soares democrata, através das entrevistas em que elogia Chávez e Lula e insulta dois terços dos regimes ocidentais.

As quintas-feiras são dedicadas ao Soares republicano, pelo que desfraldo a bandeira e canto “A Portuguesa” trinta vezes depois do almoço e trinta depois da sesta.

Às sextas, comemoro o Soares feminista, evocando com pesar a importantíssima eleição que perdeu para uma “dona de casa”.

Aos sábados, festejo o Soares bonacheirão e ponho em “loop” no YouTube o vídeo do “Ó sr. guarda, desapareça!”.

Dedico os domingos ao prestígio internacional de Soares e, não sei porquê, penso muito em Macau e queimo uma efígie de Rui Mateus. Chega assim? Caso não chegue, espremo a agenda e arranjo espaço para aplaudir o Soares patriota, que a título pedagógico entregou o país ao FMI em duas ocasiões, o Soares solidário, cujos amigos não morriam na cadeia, e o Soares digno, que caucionou os merecidos insultos à “amante” de Sá Carneiro.

3. Espantosamente, os Globos de Ouro premiaram um bom filme (“Three Outdoors Outside Ebbing, Missouri”). Sem surpresas, serviram também para fazer chinfrim em volta da “causa” do momento: o assédio sexual, sobre o qual se começou por condenar violadores e se acabará a levar para a fogueira o tarado que pisca o olho a uma senhora. Nem de propósito, as duas figuras mais indignadas da noite – Oprah Winfrey e a repulsiva Meryl Streep – eram notórias amigas do violador original desta história, o produtor Harvey Weinstein. Possivelmente, conheciam-lhe os hábitos e ignoraram-nos até os ditos se tornarem públicos. Não admira: em Hollywood e no mundo real, o objetivo das “causas” é privilegiar os porta-vozes em detrimento das vítimas, sempre acessórias. Muito pior que o “assédio”, o drama destes tempos é o mau gosto. Ou a falta de vergonha. Ou a hipocrisia. Ou a pura boçalidade. Ou o que quiserem chamar-lhe. E se não chamarem, a boçalidade vem na mesma.

4. Os “media” garantem-me duas coisas. A primeira é que a emigração portuguesa continua em grande, e que cem mil alminhas deixaram a pátria em 2016. A segunda é que 4 mil indivíduos, dessas ou de outras contas, aproveitaram a isenção de visto na entrada nos EUA para se instalar por lá. O curioso é os “media” terem passado os últimos meses a garantir duas coisas ligeiramente distintas. A primeira é que, graças ao prodigioso dr. Centeno e à compaixão da esquerda, Portugal se tornara um caso de sucesso económico e, afinal, um paraíso invejável. A segunda é que os americanos fugiam em debandada do temível sr. Trump. Partindo do princípio de que os “media” não falham, falharam os factos. Convinha que os factos chegassem a um acordo.

5. Não surpreende que, com típica sutileza, o governo prometa enxotar Joana Marques Vidal do cargo. O surpreendente é ter existido uma procuradora-geral da República que, com a leviandade que não caracterizava o seu antecessor, permitiu investigações a gente tão impoluta quanto os Salgados, os Sócrates, os Varas, os Bavas e o que calhou. A doutora Marques Vidal é a relíquia de um tempo em que o país pareceu ambicionar civilizar-se e uma excrescência neste tempo novo em que ambicionamos outras coisas. É natural que seja corrida. Esperamos que seja corrida.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador, 13-1-2018

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