António Pedro Barreiro
Uma moral sexual
radicada unicamente no consentimento é menos ética e mais vulnerável às
relações de poder. Os Globos de Ouro teriam sido uma bela oportunidade para o
dizer. Obviamente, não o foram.
Não acompanhei a cerimônia
completa dos Globos de Ouro, nem estou certo de que sobrevivesse a tal bravata.
A coisa, que terá perdido um milhão de telespectadores nos Estados Unidos em
relação ao ano passado, parece ter oscilado entre o fervor autocongratulatório
e o ativismo político. Os excertos que vi bastaram para me convencer de que o
espetáculo está cada vez mais politizado e, por isso, é cada vez menos espetáculo.
E tem cada vez menos a ver com cinema. Ainda assim, permite medir o pulso às
elites culturais que temos e às sociedades que as ouvem.
A cerimônia acontece num
momento delicado para a indústria cinematográfica. Uma profusão de denúncias
tem posto a descoberto o modo como o assédio, a promiscuidade e o abuso sexual
se normalizaram dentro do sector. O problema é demasiado vasto para que o
possamos reduzir à questão da culpa individual. É o próprio ambiente, a cultura
dominante de Hollywood, que se tornaram propensos à normalização do abuso. A
mesma indústria que se deslumbra com a transgressão sexual e que faz negócio
com a banalização do corpo não pode eximir-se de culpas pela cultura de violação que a tomou de assalto.
A cerimônia dos Globos de Ouro
teria sido uma belíssima oportunidade para falar de tudo isto. De como o pudor
não é um preconceito dos fortes, mas uma salvaguarda dos desprotegidos. De como
uma moral sexual radicada unicamente no consentimento se torna menos ética e
mais vulnerável às relações de poder. De como as famílias são o resultado
natural da convivência humana e a célula fundamental das sociedades, e não um
instrumento de opressão e domínio. Ninguém esperaria que os Globos de Ouro se
transformassem num tratado metafísico ou antropológico. Mas não teria ficado
mal aos grandes nomes da indústria cinematográfica sinalizar uma inflexão de
rumo ou, pelo menos, fazer um reconhecimento de culpa. Obviamente, nada disso
aconteceu.
Ao invés, a festa do cinema prestou-se
a ser trincheira de uma guerra cultural. O humorista que a apresentou começou
por pedir desculpa por não ser uma mulher. A meio do seu monólogo, convidou
pessoas da assistência – duas atrizes caucasianas e outra asiática, uma atriz
negra e um ator homossexual – a contar as piadas que ele, enquanto homem
caucasiano e heterossexual, sentia não poder contar. Não era ironia. Era a
ideia bizarra e aparentemente consensual de que a mesma piada, contada por
pessoas de raças, sexos ou orientações sexuais distintas, tem um valor
diferente. Nos Globos de Ouro, portanto, fez-se humor através da discriminação
e da autocensura.
Há algo de suicida nesse
triste espetáculo em que os agentes culturais se voltam contra a liberdade de
expressão. Sobretudo, quando o fazem com gosto. Porém, é ainda mais macabro que
a elite cultural se disponha a atacar as estruturas tradicionais da nossa
civilização, vendo-as como arranjos opressivos e desiguais. Tragicamente, não
estão sozinhos nesta sanha.
Os novos feminismos entretêm-se
a denunciar a masculinidade tóxica e os privilégios
estruturais que a sociedade patriarcal concede aos homens. Em
Los Angeles, marcham pelo direito à nudez e, em Londres, aplaudem a proibição da nudez na publicidade. Em
Portugal, pedem que se diga “todos e todas” e, no Reino Unido, querempronomes neutros em relação ao gênero.
Também os novos movimentos
contra o racismo e a homofobia deixaram de celebrar o sucesso e a superação
individual e cultivam agora a força das quotas e da identificação com o grupo.
Nos campus universitários, empenham-se em proibir o discurso
livre e em policiar as microagressões de que se dizem vítimas.
É perigosa a insistência neste
novo individualismo, que atomiza as pessoas para depois as rotular de acordo
com as suas características físicas dominantes, integrando-as numa narrativa
vitimizadora e voltando-as contra a sociedade. Não se trata apenas do discurso
excêntrico de um punhado de famosos em festa. É o vocabulário novo de uma
guerra cultural que nos ameaça a todos. E, se queremos responder-lhe,
precisamos mais do que nunca de um discurso conservador – embora não
necessariamente moralista –, capaz de ir além da obsessão sensaborona com o
défice e a economia e de formular um projeto cultural livre, fundado nos
princípios civilizacionais do Ocidente.
Não imagino o que se
escreverá, daqui a uns séculos, sobre nós; sobre os nossos complexos de culpa e
as nossas vitimizações. Espero que possa escrever-se que não nos deixámos
vergar por eles. Que não conseguiram calar-nos. E, sobretudo, que não tivemos
vergonha de ser quem somos.
Título e Texto: António Pedro Barreiro, Estudante de
Ciência Política, 21 anos, Observador,
13-1-2018
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