quinta-feira, 27 de setembro de 2018

[Pensando alto] O segredo da confraria dos últimos e os homens que se negam a morrer

Pedro Frederico Caldas

Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem, lutar pela diferença sempre que a igualdade nos descaracterize – Boaventura de Souza Santos

Primeiro de setembro do ano de 2050. Noé Trajano de Castro terminara o desjejum: dois ovos, carne de sol frita em cubos, farofa de bacon e cebola queimada, macaxera, café preto, tudo após coalhada de leite cru com duas colheres de sopa de rapadura moída, não sem antes descer goela abaixo uma talagada de infusão de cachaça, folhas e raízes, chamada “pratudo” ou “pau-de-resposta”. Debaixo de sete capas, refestelara-se nessas iguarias, numa verdadeira ruptura de ter que comer tofu com iogurte, leite desnatado, café adoçado com planta natural e hambúrguer de soja. Na verdade, acabara de violar regras de saúde e higiene pública, baixadas pela Secretaria Nacional do Bem Viver, comandada por um tal de Dr. D. Varela, órgão que martelava dia e noite, nos meios de comunicação e nas escolas, as “regras impositivas do bom viver”.

Como fazia a cada dia primeiro do mês, ligou o computador e goolgou “The Resistence, Tuscaloosa, Alabama, USA”. Aberto o website do jornal, acessou a coluna de efemérides, correu os olhos, e lá estava a tão esperada notícia: “Mark´s party was in IX.XVI.MCMLXX” (A Festa de Mark foi em...). Passada do algarismo romano para o arábico, a data era 9.16.1970. Como o jornal era escrito em inglês, sabia que os dois primeiros números eram o mês, os segundos, o dia, e os demais, o ano. Feita a devida conversão, a data era 16.9.1970. Pelas instruções já recebidas, deveria desprezar o ano. Assim o importante era que em 16. 9 deveria procurar, no mesmo jornal, uma propaganda de bathrobe (roupão de banho).

Transcorridos os quinze dias, conferiu o caderno de propaganda do The Resistence. Olhou uma, duas, três vezes, quando viu, quase no fim da página, à direita, o discreto anúncio “Sale bathrobe any size. We also have size 26-37-45n x 70-53-1w” (“Venda de roupão de banho de qualquer tamanho. Temos também o tamanho 26-37-45 X 70-73-1”). Os números deviam ser lidos 26º 37´ 45´´ N, 70º 53´1´´W. Sabia que se tratava de uma coordenada geográfica, portanto significava 26 graus, 37 minutos e 45 segundos de latitude Norte e 70 graus, 53 minutos e 1 segundo de longitude Oeste.

As mensagens não acabavam aí. Mais quinze dias e deveria olhar a coluna de eventos sociais do mesmo jornal. Feito isso, lá estava “Jack´s 50º birthday will be celebrated on November the first, 2050. All friends must be present” (A festa de 50 anos de Mark será celebrada em primeiro de novembro de 2050. Todos os amigos devem estar presentes.).

Pronto, já tinha todos os elementos em mãos para o grande evento. Finalmente tinha a tão esperada informação. A “festa” seria no dia primeiro de novembro daquele ano de 2050. Estava instruído a chegar, para não chamar a atenção, com prolongada estada, no dia do evento pela manhã. Restava conferir as coordenadas geográficas para saber o lugar do evento.

Jogou no computador as coordenadas e achou o local: Ilha de Bimini, nas Bahamas. Quando lera o último dos anúncios, já era 15 de outubro de 2050. Foi ao Google e analisou todas as informações sobre a ilha, descrita como um pequeno paraíso a 50 milhas (80 quilômetros) de Miami. Abriu um pequeno baú que estava em cima da cristaleira. Com as pontas dos dedos identificou um quase imperceptível botão no fundo do baú. Apertou-o. Uma molinha levantou uma pequena parte do fundo e lá estava ele, o objeto de seu persignado afeto. Levantou-o com cuidadoso respeito, beijou-o e, reverencialmente, tornou a esconder aquela pequena cruz, símbolo de sua perseguida fé.

Pela internet comprou passagem de ônibus de Patos para João Pessoa; passagem de avião de João Pessoa para Recife e, de novo, passagem de avião de Recife para Miami, onde chegaria às 5h20 da manhã do dia primeiro de novembro. Além disso, comprou uma passagem de aerobarco de Miami para a ilha de Bimini, com saída às oito da manhã e chegada às dez horas, para alcançar o grande e ansiado evento, a reunião de sua vida, a ter início às doze horas daquele tão aguardado dia.

Prelibava encontrar pessoas como ele. Sabia que encontraria no destino final as dicas necessárias para saber o local exato da reunião. Sabia também que, ao entrar no local, seria exigido a password (senha) a ser declamado em inglês, língua em que pessoas de diversas partes do mundo fariam o balanço da difícil situação por que passavam, considerados que eram, naqueles tempos, extremistas perigosos, ainda não totalmente extintos. Aquela secreta confraria a que pertencia reunia verdadeiros resistentes, lutando nas sombras. Esse subterrâneo movimento era a única chance de o mundo se reencontrar com as suas origens. Eles eram o elo entre o passado e um futuro por eles almejado, mas de garantia duvidosa.

Toda a comunicação era feita por internet, em linguagem criptografada, única via daquela espécie em extinção de se manter em contato com semelhantes, todos considerados verdadeiras aberrações.


Cem pessoas, de diversas partes do mundo, passaram pela mesma experiência de Noé Trajano. Todos líderes representativos, como ele, de espalhadas e rarefeitas comunidades de pessoas que pensavam e agiam reservadamente dentro do mesmo padrão comportamental. Devidamente informados, todos faziam os mesmos preparativos para aquela verdadeira peregrinação em busca de continuarem a pensar e agir como agiam e pensavam, embora dentro da maior discrição possível. Aquela reunião, que se repetia de tempos em tempos, com renovados quadros, era a esperança de manter viva a chama que os animava de continuarem a ser senhores de suas escolhas. A censura era imensa e há pouco tempo fora condenado a seis meses de prisão pelo crime de dúbio pensar, em razão dos versos seguintes, considerados suspeitos, vindos de sua veia de bom repentista:

“Ideias estranhas têm oprimido
O ser que um dia prevaleceu
E se Deus ao final for perecido,
em batalha que o mal venceu,
Alguém dirá embevecido,
Tudo nos será permitido”

Bjorn Bergman, a exemplo de Noé, percorrera os mesmo caminhos na internet pra se inteirar do evento. Da janela de seu quarto contemplava o esquisito monumento, presente em todos os principais logradouros do mundo. Era uma esfera estilizada representativa do planeta. Da parte de cima daquela esfera se projetava algo como duas grossas raízes, que se iam entrelaçando para formar duas pessoas num abraço, com a sutil insinuação de um beijo, artisticamente trabalhadas para parecerem, ao mesmo tempo, macho e fêmea, sem a definição precisa do que realmente eram. Na base que sustentava a esfera, a inscrição Pachamama, em forma de uma ramagem. A substituição de outros símbolos tradicionais por esse era fruto do empenho de uma ONG ligada à Secretaria de Fomento ao Correto Pensar da Organização das Nações (ON), sob o direto patrocínio da Fundação Mohamed Soros. Já no metrô para ir comprar as passagens em sua agência de viagem, no centro de Estocolmo, cedeu, com discreto olhar encorajador, o seu assento para uma senhora, que aceitou com prudente cumplicidade, como se ambos estivessem cometendo uma grande infração.

Nicolas Alexopoulos, na mesma senda de Noé e Bjorn, providenciava a compra das passagens que o levariam a Bimini. No escritório da Olimpic Airlines, no centro de Atenas, baixou a guarda e olhou para as pernas de uma bonita grega. Sentiu o imediato olhar de censura do supervisor e o olhar carrancudo do guarda. Disfarçou e continuou a dar as informações para a emissão dos tíquetes. Na saída, contemplou com indisfarçado desgosto dois outdoors. Em um deles a foto não identificativa de uma garrafa de bebida alcoólica com um x proibitivo em cima; o outro, propaganda com foto de uma multidão conclamando a todos para o “cannabis day”.

Chegado o grande dia, Noé, já na pequenina Bimini, deixou a bagagem no hotel previamente contratado. Após um rápido descanso e um banho, desceu para a praça central, junto à marina. Olhou com enfadado desdém o onipresente monumento intitulado Pachamama, aquele mesmo todos os dias contemplado por Bjorn da janela de seu quarto.  Notou, no canto esquerdo da praça, uma discreta placa com uma seta apontando para a direção a tomar, com a inscrição Mark´s Party (festa de Mark). Abaixo da seta havia, em algarismos romanos, um número em dimensão mais discreta ainda, indicativo do prédio a que deveria se dirigir.

Tomou a direção da seta. Cerca de 300 metros depois, estava em frente ao número discretamente indicado na placa. Era um prédio de dois andares. Todas as portas estavam fechadas, exceto uma, do lado esquerdo, onde se podia ver uma pequena placa “festa de Mark”, com uma seta indicando que deveria subir a escada.

Vencida a escada, bateu à porta com uma aldrava, com pancadas em números alternados, em ritmo de código. Passados poucos segundos, a pesada porta se abriu para um salão com mesas formando um grande retângulo, onde já acomodados cerca de oitenta homens. Seguramente todos eram pessoas como ele, Bjorn e Nicolas, membros de diferentes grupos da mesma Confraria, espalhados pelo planeta.

Todos se voltaram para ele inquisitivamente. Alguém que parecia presidir a reunião exclama: PASSWORD! (SENHA!).

Ele responde enfaticamente: MALE WHO STILL LIKES FEMALE! (MACHO QUE AINDA GOSTA DE FÊMEA!).
Título e Texto: Pedro Frederico Caldas, 9-11-2017

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