Fábio Gonçalves
Em sete takes, o escritor Fábio Gonçalves
desconstrói a narrativa de “Democracia em Vertigem”, desmentindo as mentiras
explícitas e revelando as verdades escondidas no documentário de Petra Costa
Take 1: A valsa das elites
Quando a Dilma ganhou a
eleição de 2014, eu estava num baile de dança de salão. Enquanto eu rodopiava a
pista embalado por sambas e boleros, entrevia angustiado pela TV aquela
apuração apertada, a petista de pouco em pouco superando o tucano, a
aproximação de uma vitória inesperada da inábil candidata, uma candidata
impopular, vaiada pelo Mineirão lotado na Copa do Mundo, e que àquela altura,
no meio daquele pandemônio social, já se tornara motivo de troça e matriz
inesgotável de memes.
Ali, eu, pobre da Silva, no
que me apercebia da iminente vitória da petista, ficava temeroso pelo futuro do
país.
Havia pouco tempo eu tomara
alguma ciência do nosso cenário político-cultural. Sou um dos tantos jovens da
minha geração que se interessou por política a partir das Jornadas Junho de
2013. Depois que qual um gado amestrado eu fui gritar contra os 20 centavos na
Faria Lima, o espírito da curiosidade me possuiu e, para compreender melhor as
forças que estavam em disputa, como um esganado passei meses a fio lendo
livros, fuçando na internet, travando longas conversas com professores e
amigos. Queria saber quem eram os militantes de bandeira vermelha, quem eram os
incipientes liberais e conservadores de verde e amarelo, quem, enfim, estava
certo no meio daquele vuco-vuco, no quebra-quebra.
Com efeito, no dia das
eleições, a primeira em que votei com consciência, eu já sabia do Foro de São
Paulo, do Mensalão, do caso Celso Daniel, da morte estranha de Eduardo Campos.
Sabia, também, em linhas gerais, o que era o comunismo, quem era Antonio
Gramsci, o que queriam os revolucionários do PT e companhia.
Naquela noite, portanto,
depois do anúncio fatídico, o baile terminou para mim com um tom melancólico de
tango argentino. Voltei para casa, numa favela de Diadema, pesaroso,
soturno.
Ao mesmo tempo, não tão longe
dali, na avenida Paulista, a militante petista Petra Costa, inebriada de
alegria, girava que girava como se no palco do Bolshoi ou na Corte de
Versalhes, em comemoração à conquista de Lula e da ex-guerrilheira do
VAR-Palmares.
Eu na fossa; a Petra rindo,
bailando.
***
Fiz esse prólogo para falar
sobre vertigem. A vertigem é uma espécie de tonteira, um siricutico que nos
embaça a vista, que nos perturba a visão. Quem quer que sofra de vertigem, de
uma hora para outra pode topar com a realidade distorcida, embaralhada, como
quem tivesse sido lançado num quadro do Munch.
Isso do ponto de vista
fisiológico, clínico. Mas, pode-se dizer que existe também uma vertigem
intelectual.
As ideologias, no sentido que
Robert Musil dava ao termo, são como que segundas realidades, mundos paralelos
em que o doutrinado passa a viver uma vez que aceita as premissas distorcidas
do ideólogo — derivando daí suas decisões, preferências, seus julgamentos de
ordem moral, suas escolhas políticas.
Um exemplo prático:
Hitler, em 1938, estava
ameaçando matar toda a raça de judeus e invadir com seus panzers metade
da Europa. A realidade, com efeito, gritava:
“Alguém
pare esse maluco antes que seja tarde demais!”.
Entretanto, a ideologia
liberal-burguesa, a que toma as constituições, códigos civis e os tratados
internacionais como a culminação da inteligência humana e meios suficientes
para resolver qualquer pendenga — de pensões alimentícias a guerras
internacionais —, dizia, no tom ponderado de um nobre vitoriano tomando chá com
o dedinho esticado:
“Levem um papel para o Sr.
Hitler assinar, fazendo com que ele se comprometa a ficar só com os Sudetos. Se
ele assinar, pronto, o mundo estará a salvo”.
Hitler assinou, mandou o
premiê inglês, o Chamberlain, passear, e assim que o político bigodudo virou as
costas e foi acenar seu papelzinho para a mídia, o facínora alemão tomou a
Hungria, a Polônia, começou a guerra e matou meio mundo.
Chamberlain e os demais
pacifistas estavam numa segunda realidade, estavam numa crise aguda de vertigem
intelectual. E é precisamente este o diagnóstico de Petra Costa.
***
O primeiro sinal que denota a
vertigem de Petra, é o fato de não perceber que ela e sua mãe engajada, tanto
quanto os parentes mais ligados à Andrade Gutierrez, empreiteira do seu avô que
esteve metida nas maracutaias do PT, fazem parte da elite.
Petra, durante todo o
documentário, faz um esforço monstruoso para colocar a si própria e a sua
genitora como as amigas dos pobres, o lado proletário da dialética histórica,
enquanto os magnatas da família, a turma que, segundo ela, acabou votando no
Bolsonaro, são a elite, os opressores, a classe a ser batida pela revolução.
Nada mais falso. O PT é desde
a sua formação um partido das elites intelectuais, da mesma elite que a mãe e o
pai da Petra advieram. Acontece que no meio do caminho essa elite
intelectual precisou se coligar efetivamente com a elite
econômica — que sempre fingiu combater — com vistas a consolidar seu
projeto político. O encontro das heroínas feministas e sócio-conscientes da
Andrade Gutierrez com os velhos engravatados que comandam a empreiteira da
família é bastante significativo. Nesse processo de ascensão e queda do PT,
os donos do discurso e das artes foram beijar as mãos
dos donos do dinheiro para se alçarem todos juntos ao posto de
Donos do Poder — para usar o termo do patrono petista Raimundo Faoro.
Título e Texto: Fábio
Gonçalves, Brasil Sem Medo, 28-1-2020, 8h
Imperdível! Leitura 'obrigatória'!
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