Aparecido Raimundo de Souza
ACONTECEU TÃO INSTANTANEAMENTE, como se um raio tivesse caído sobre minha
cabeça. Quando me dei-me pela coisa, estava estirado numa poça de água barrenta
e mau cheirosa, os dedos imundos de lama, os olhos quase não podendo ser abertos pela sujeira
que impregnava meu rosto. Em derredor, escamotados em fétida covardia, vibriões da cobiça gênese buscavam
alguma coisa de valor, outros exprimiam reações de espanto e angústia. Mãos
trêmulas gesticulavam gestos desordenados e melífruos. Lá, e acolá, vozes mil
se confundiam numa vazante de gritarias e berros que, por sua vez, soavam em
meu cérebro como pancadas fortes de um sino distante.
Ninguém parecia preocupado com a posição grotesca na qual eu me
encontrava-me. Na verdade, meu estado se assemelhava a de um astro improvisado.
Eu oferecia um quadro bastante lastimável, como o de um Cristo em estado
embrionário num universo fariseu. Além do rosto irreconhecível, a camisa se
rasgara toda, e, de meu tórax, à altura de uma das mamas, escorria um filete de
sangue quente. Minha calça jeans também se rompera na queda e, parte do corpo,
da cintura para baixo, ficara exposto às risadas dos transeuntes que se
agrupavam àquele círculo de curiosos e desocupados, com os semblantes de tontos
abobalhados. Por momentos, me senti-me Hemingway, logo após ter se suicidado a
sí próprio.
No peito, sentia o bater descompassado do coração. Ele aparentava ter
levado um golpe muito forte, e, pela dor emanada de dentro de seu interior,
tudo levava a crer, ou pelo menos eu tinha essa impressão estranha, de que houvesse saído do lugar habitual, pelo
menos alguns bons centímetros e chegado, triunfante ao único fanal que não
alcancei: meu próprio eu interior. Tentei mexer as mãos. Nada. Os braços pesavam
como chumbo. O mesmo ocorreu com as pernas. Idêntico quadro. Nem se moveram do
lugar onde quedaram inertes. Não sentia os pés, tampouco saberia dizer se
estava calçado ou descalço. Parecia absintado, e, ao mesmo tempo, sereno como
ave enceguecida, flanado sem “Ponto fixo onde pousar”, cadinho assim de
esperança com lágrimas escorrendo adeus.
Quis, então, me virar-me o rosto para o outro lado da situação e me
esconder-me, de alguma forma os meus pudores, a vergonha imensa que inundava as
maçãs faciais, mas também, droga, gesto impotente, se esvaiu perdido e em vão. Me sentí-me embastilhado
como um demiurgo saido de uma hades recém-aberta. Pensei dizer alguma coisa,
não sei exatamente o quê, qualquer coisa serviria, porém, a voz enroscou na
boca, de tal forma, que a saliva chegou a dar sinais de querer vomitar as
tripas todas para fora. Em contrapartida, sentia frio, muito frio. O estômago,
a barriga, minha bexiga cheia de urina, pareciam congeladas. Resolvi gritar.
Quem sabe, soltando uns berros, alguém fizesse alguma coisa de útil?
Eu estava com frio, querendo um cobertor, um pano qualquer, um
lençol, para me tapar-me. Tentei uma,
duas, três vezes me fazer ouvir... Qual o quê!
Meu desejo ficou na vontade, a vontade no silêncio e o silêncio numa
gastura pesada e doída. Me aventurei-me de novo, e, de roldão, nenhum som se
formou no fundo do poço da minha garganta. Pessoas continuavam chegando, vindas
de todas as direções. Aos empurrões se acotovelavam para me enxergarem-me mais
de perto. O ambiente, agora, mudou um pouco. Parecia... Não, não parecia, estava saturado pelo cheiro
da calçada quente. O sol, lá em cima, no infinito, dardejava seus raios com
fortíssima intensidade.
O ar tímido soprava com ternura meus cabelos, fazendo os, ficarem
revoltos e despenteados. Apesar do dia
jubiloso, da quentura do lajedo sobre as minhas costas, e, do vento
benfazejo, eu sentia muito frio. Um frio tétrico, um frio funesto e
indescritível... Por alguns segundos, me pareceu-me curvar ante uma soberana que fazia de tudo para me
pôr à nocaute. Pressenti, entrementes,
um carro se aproximando. Vinha com as sirenas abertas e, como se fosse o
detonar de uma arma de fogo, a massa humana de curiosos que me atocaiava-me, se
dissipou num segundo. A debandada dos desocupados se fez geral.
— Polícia gritou alguém. —
Abram caminho —, saiam da
frente...
Quando os homens desceram do tal
carro da polícia (polícia?!), não existia
nenhuma viva alma perto. Todos, agora, estavam a uma distância prudente.
Os que chegaram, pararam o veículo à alguns metros de onde eu me encontrava-me,
e, em seguida, se aproximaram. Pareciam mefistofélicos suseranos. Um deles, sujeito baixinho, de
jaleco branco, rosto oval, costeletas grisalhas e bigode espesso, se adiantou
aos demais. Curvando seus óculos de grau sobre meu corpo, se sentou de cócoras
e espiou. Explorou compridamente para o disforme que eu me transformara-me. Em
seguida, examinou meu peito detida e demoradamente. Ainda, de cócoras,
verificou o sangue escorrendo do machucado aberto. Observou a ferida de vários
ângulos e escreveu tudo num papel preso a uma prancheta que trazia pendurada ao
pescoço.
Depois disso, se pondo em pé, falou para os demais que o acompanhavam:
— Tirem as fotografias habituais. Em seguida, que venha o rabecão. O sujeito está morto! Essa revelação
chegou aos meus ouvidos como uma pancada estrondosamente unissonante. “Morto,
eu?! Morto?! Impossível! Não podia
ser... Aquele desgraçado, filho bastardo da desesperança, um Quental em estágio de aprendiz, não falava
sério. Claro, deveria estar brincando, tirando uma com a minha babaquice
desconsolada”.
Queria me assustar. Só podia ser uma piada de gosto duvidoso. Tenho de
mim, para comigo, que o sujeitinho levava a coisa para o lado da gozação.
Certamente, pretendia ver a minha tibieza na zona do obumbrado, se rir-se da minha estupefação,
ainda que ela lhe parecesse teratológica. No fundo, só pretendia me dar-me um
tremendo de um abalo entibiante. “Morto! Morto? Logo eu?! Não podia ser
verdade!”. Eu os via, aliás, devorava a
todos, com fome de vida, escutava cada palavra como um egresso do amoníaco,
distinguia cada gesto que faziam, como se contemplasse Isolda e Tristão.
Lógico, aquele infeliz havia enlouquecido de vez. Tinha que estar demente para
dizer semelhante asneira. Que outra explicação?!...
Chegou, no pedaço, um novo carro e estacionou ao lado do primeiro. Desta
vez, um “rabecão” com as letras pintadas em escarlate: IML. Meu Deus, estaria vivendo
um pesadelo em plena luz do dia, com um sol bonito daqueles inundando todo o
espaço celestial? Me davam-me como morto e não se constituia, tal fato, numa
verdade inexpugnável. “Não, não... Me custava crer fatal a realidade. Senhor,
me diga-me agora: não estou ficando louco, não passei a statu quo enfermiço e
irremediável defunto. Não, isso não... Não sou um cadáver, não morri. Meu Deus,
eu não morri. Me ajude-me a me
levantar-me daqui. Preciso ir para
casa...”.
“Mamãe está à minha espera, para o almoço. Faz um tempão que estou na
rua, desde às sete horas da manhã... Ela... Ela, com toda certeza, deve de estar cheia de
preocupações...”. Deste último carro desceram quatro homens metidos em
uniformes igualmente brancos. Gorros da mesma cor cobriam suas cabeças. Dois
deles, se destacaram-se, trazendo uma espécie de urna de ferro com folhas de
zinco soldadas, uma caixa do tipo ataúde, do cumprimento de uma pessoa normal.
Não uma maca, tampouco uma padiola. Se não
uma maca, nem uma cama de hospital... Eu... Eu...
O baixotinho de costeletas grisalhas e bigode espesso que minutos atrás
me havia-me examinado, se virou para os que sustinham a caixa de ferro e
concluíu friamente, sem ao menos olhar para onde eu estava:
— Podem remover o presunto direto
para a geladeira do necrotério. Nosso amiguinho aquí (só então me deu-me uma
olhadela de esguelha, e me apontou-me, com dedo em riste) —, nosso amiguinho
aqui, passou para um mundo melhor. Levou um tiro à queima roupa, bem no meio do
coração.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila
Velha, Espírito Santo, 14-4-2020
Colunas anteriores:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-