terça-feira, 14 de abril de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Rito de passagem

Aparecido Raimundo de Souza

ACONTECEU TÃO INSTANTANEAMENTE, como se um raio tivesse caído sobre minha cabeça. Quando me dei-me pela coisa, estava estirado numa poça de água barrenta e mau cheirosa, os dedos imundos de lama, os olhos  quase não podendo ser abertos pela sujeira que impregnava meu rosto. Em derredor, escamotados em fétida  covardia, vibriões da cobiça gênese buscavam alguma coisa de valor, outros exprimiam reações de espanto e angústia. Mãos trêmulas gesticulavam gestos desordenados e melífruos. Lá, e acolá, vozes mil se confundiam numa vazante de gritarias e berros que, por sua vez, soavam em meu cérebro como pancadas fortes de um sino distante.

Ninguém parecia preocupado com a posição grotesca na qual eu me encontrava-me. Na verdade, meu estado se assemelhava a de um astro improvisado. Eu oferecia um quadro bastante lastimável, como o de um Cristo em estado embrionário num universo fariseu. Além do rosto irreconhecível, a camisa se rasgara toda, e, de meu tórax, à altura de uma das mamas, escorria um filete de sangue quente. Minha calça jeans também se rompera na queda e, parte do corpo, da cintura para baixo, ficara exposto às risadas dos transeuntes que se agrupavam àquele círculo de curiosos e desocupados, com os semblantes de tontos abobalhados. Por momentos, me senti-me Hemingway, logo após ter se suicidado a sí próprio.

No peito, sentia o bater descompassado do coração. Ele aparentava ter levado um golpe muito forte, e, pela dor emanada de dentro de seu interior, tudo levava a crer, ou pelo menos eu tinha essa impressão estranha, de  que houvesse saído do lugar habitual, pelo menos alguns bons centímetros e chegado, triunfante ao único fanal que não alcancei: meu próprio eu interior. Tentei mexer as mãos. Nada. Os braços pesavam como chumbo. O mesmo ocorreu com as pernas. Idêntico quadro. Nem se moveram do lugar onde quedaram inertes. Não sentia os pés, tampouco saberia dizer se estava calçado ou descalço. Parecia absintado, e, ao mesmo tempo, sereno como ave enceguecida, flanado sem “Ponto fixo onde pousar”, cadinho assim de esperança com lágrimas escorrendo adeus.

Quis, então, me virar-me o rosto para o outro lado da situação e me esconder-me, de alguma forma os meus pudores, a vergonha imensa que inundava as maçãs faciais, mas também, droga, gesto impotente, se esvaiu  perdido e em vão. Me sentí-me embastilhado como um demiurgo saido de uma hades recém-aberta. Pensei dizer alguma coisa, não sei exatamente o quê, qualquer coisa serviria, porém, a voz enroscou na boca, de tal forma, que a saliva chegou a dar sinais de querer vomitar as tripas todas para fora. Em contrapartida, sentia frio, muito frio. O estômago, a barriga, minha bexiga cheia de urina, pareciam congeladas. Resolvi gritar. Quem sabe, soltando uns berros, alguém fizesse alguma coisa de útil?

Eu estava com frio, querendo um cobertor, um pano qualquer, um lençol,  para me tapar-me. Tentei uma, duas, três vezes me fazer ouvir... Qual o quê!  Meu desejo ficou na vontade, a vontade no silêncio e o silêncio numa gastura pesada e doída. Me aventurei-me de novo, e, de roldão, nenhum som se formou no fundo do poço da minha garganta. Pessoas continuavam chegando, vindas de todas as direções. Aos empurrões se acotovelavam para me enxergarem-me mais de perto. O ambiente, agora, mudou um pouco. Parecia...  Não, não parecia, estava saturado pelo cheiro da calçada quente. O sol, lá em cima, no infinito, dardejava seus raios com fortíssima intensidade.

O ar tímido soprava com ternura meus cabelos, fazendo os, ficarem revoltos e despenteados. Apesar do dia  jubiloso, da quentura do lajedo sobre as minhas costas, e, do vento benfazejo, eu sentia muito frio. Um frio tétrico, um frio funesto e indescritível... Por alguns segundos, me pareceu-me curvar  ante uma soberana que fazia de tudo para me pôr à nocaute. Pressenti, entrementes,  um carro se aproximando. Vinha com as sirenas abertas e, como se fosse o detonar de uma arma de fogo, a massa humana de curiosos que me atocaiava-me, se dissipou num segundo. A debandada dos desocupados  se fez geral.
— Polícia  gritou alguém.  —  Abram caminho  —, saiam da frente...

Quando os  homens desceram do tal carro da polícia (polícia?!), não existia  nenhuma viva alma perto. Todos, agora, estavam a uma distância prudente. Os que chegaram, pararam o veículo à alguns metros de onde eu me encontrava-me, e, em seguida, se aproximaram. Pareciam mefistofélicos  suseranos. Um deles, sujeito baixinho, de jaleco branco, rosto oval, costeletas grisalhas e bigode espesso, se adiantou aos demais. Curvando seus óculos de grau sobre meu corpo, se sentou de cócoras e espiou. Explorou compridamente para o disforme que eu me transformara-me. Em seguida, examinou meu peito detida e demoradamente. Ainda, de cócoras, verificou o sangue escorrendo do machucado aberto. Observou a ferida de vários ângulos e escreveu tudo num papel preso a uma prancheta que trazia pendurada ao pescoço.

Depois disso, se pondo em pé, falou para os demais que o acompanhavam:
— Tirem as fotografias habituais. Em seguida, que venha o  rabecão. O sujeito está morto! Essa revelação chegou aos meus ouvidos como uma pancada estrondosamente unissonante. “Morto, eu?!  Morto?! Impossível! Não podia ser... Aquele desgraçado, filho bastardo da desesperança,  um Quental em estágio de aprendiz, não falava sério. Claro, deveria estar brincando, tirando uma com a minha babaquice desconsolada”.

Queria me assustar. Só podia ser uma piada de gosto duvidoso. Tenho de mim, para comigo, que o sujeitinho levava a coisa para o lado da gozação. Certamente, pretendia ver a minha tibieza na zona  do obumbrado, se rir-se da minha estupefação, ainda que ela lhe parecesse teratológica. No fundo, só pretendia me dar-me um tremendo de um abalo entibiante. “Morto! Morto? Logo eu?! Não podia ser verdade!”. Eu os via, aliás, devorava  a todos, com fome de vida, escutava cada palavra como um egresso do amoníaco, distinguia cada gesto que faziam, como se contemplasse Isolda e Tristão. Lógico, aquele infeliz havia enlouquecido de vez. Tinha que estar demente para dizer semelhante asneira. Que outra explicação?!...

Chegou, no pedaço, um novo carro e estacionou ao lado do primeiro. Desta vez, um “rabecão” com as letras pintadas em escarlate: IML. Meu Deus, estaria vivendo um pesadelo em plena luz do dia, com um sol bonito daqueles inundando todo o espaço celestial? Me davam-me como morto e não se constituia, tal fato, numa verdade inexpugnável. “Não, não... Me custava crer fatal a realidade. Senhor, me diga-me agora: não estou ficando louco, não passei a statu quo enfermiço e irremediável defunto. Não, isso não... Não sou um cadáver, não morri. Meu Deus, eu não morri. Me ajude-me  a me levantar-me  daqui. Preciso ir para casa...”.

“Mamãe está à minha espera, para o almoço. Faz um tempão que estou na rua, desde às sete horas da manhã... Ela... Ela,  com toda certeza, deve de estar cheia de preocupações...”. Deste último carro desceram quatro homens metidos em uniformes igualmente brancos. Gorros da mesma cor cobriam suas cabeças. Dois deles, se destacaram-se, trazendo uma espécie de urna de ferro com folhas de zinco soldadas, uma caixa do tipo ataúde, do cumprimento de uma pessoa normal. Não uma maca, tampouco uma padiola. Se não  uma maca, nem uma cama de hospital... Eu... Eu...

O baixotinho de costeletas grisalhas e bigode espesso que minutos atrás me havia-me examinado, se virou para os que sustinham a caixa de ferro e concluíu friamente, sem ao menos olhar para onde eu estava:
 — Podem remover o presunto direto para a geladeira do necrotério. Nosso amiguinho aquí (só então me deu-me uma olhadela de esguelha, e me apontou-me, com dedo em riste) —, nosso amiguinho aqui, passou para um mundo melhor. Levou um tiro à queima roupa, bem no meio do coração.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo, 14-4-2020

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