sexta-feira, 1 de abril de 2011

Ó Sócrates, lê isto aqui!

Defender Portugal é recusar o beija-mão à senhora Merkel
Por culpa própria, Portugal afundou-se em défice e dívida excessivos. Quem concedeu crédito de risco devia pagar parte da factura: Berlim não deixa

José Sócrates e Angela Merkel. Foto: Agência Lusa/i
O primeiro-ministro irlandês Enda Kenny deveria governar Portugal. Só um político inteligente e corajoso ameaçaria, como ele fez e bem, impor perdas aos credores prioritários dos bancos para não carregar o fardo das dívidas privadas sobre os contribuintes. Ainda que numa escala inferior, o equivalente funcional dos bancos irlandeses chama-se, em Portugal, BPN. A nacionalização do banco por um governo pouco avisado ameaça cavar ainda mais o buraco orçamental, na ordem dos 2 mil milhões de euros.
Facto notável: um dia após a ameaça de Dublin, o Banco Central Europeu anunciou a criação de um mecanismo para assistência de liquidez de médio prazo aos bancos em reestruturação. E fê-lo porque as potências da Europa têm muito a perder se um membro do euro decidir, unilateralmente, reestruturar dívida - embora esse seja um dos seus poderes soberanos. Os maiores bancos europeus, sobretudo os alemães, teriam de encaixar as perdas e fazer aumentos de capital, o que obrigava os governos a injectar dinheiro público nesses bancos.

O consenso europeu imposto pela Alemanha e os seus aliados Triplo A assenta em dois pilares: evitar a reestruturação de dívida soberana na zona euro antes de 2013 e reembolsar na totalidade os credores privados. Isto desafia o bom senso. Tal como os funcionários não têm de pagar a falência de uma empresa (já basta perderem o emprego), os povos não têm de ser os únicos sacrificados pelo excessivo endividamento dos países.
O irresponsável endividamento de Portugal não seria possível sem a irresponsável cumplicidade de quem emprestou o dinheiro. Os bancos (alemães e outros) criaram, graças a falta de visão dos periféricos, bolhas de crédito em Portugal, Espanha, Grécia e Irlanda. E agora o Fundo Europeu de Estabilização Financeira empresta dinheiro a estes países, fazendo aumentar a espiral de dívida soberana para que as reservas regressem aos bancos e investidores privados. A agenda de Berlim é adiar a reestruturação da dívida soberana até 2013, porque ela precipitaria uma crise no sistema bancário da zona euro.
É inevitável que os devedores passem anos duríssimos a fazer o necessário ajustamento para consolidar contas públicas e ganhar competitividade. Não há saída. Mas até 2013 não podem impor perdas aos credores. E quem beneficia? Quem concedeu crédito de alto risco.
A partir de 2013, uma vez mais por força do poder de Berlim, a dívida dos Estados do euro será emitida com cláusulas de acção colectiva. Ou seja, uma minoria de credores não poderá bloquear uma reestruturação de dívida.
O Mecanismo Europeu de Estabilização, que vai acudir os aflitos a partir de 2013, implica já a noção de que quem aceder à ajuda irá reestruturar dívida e o MEE terá prioridade sobre os credores comerciais. Por isso, os mercados estão a penalizar Portugal: um país sem perspectiva de crescimento económico, obrigado a um ajustamento brutal até 2013, dificilmente terá condições de pagar os empréstimos. Também por isso, as agências desceram o rating da República. Os mercados não antecipam só o recurso à ajuda UE/FMI; antecipam uma reestruturação de dívida pós-2013.
Mesmo que o governo consiga financiar-se para pagar mais de 9 mil milhões de euros até Junho, nada resolve.
Defender Portugal não é evitar o FMI condenando os portugueses a pagar juros insustentáveis, é enfrentar a Alemanha. Os putativos inquilinos de São Bento preferem, porém, beijar a mão da chanceler germânica.
Carlos Ferreira Madeira, jornal “i”, 31-03-2011

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