terça-feira, 3 de junho de 2014

O homem providencial


Luís Naves
António Costa será, provavelmente a curto prazo, o próximo líder socialista. O apoio mediático é esmagador e as suas hipóteses de vencer as legislativas são substancialmente superiores às de António José Seguro, pois Costa tem uma imagem de determinação e serenidade (tal como Passos Coelho), mas talvez supere o primeiro-ministro em empatia e confiança. Além disso, é um óptimo orador e tem experiência em debates televisivos. Acima de tudo, como demonstrou o resultado eleitoral, muitos portugueses querem mudança e o presidente da câmara de Lisboa terá a seu favor um fenómeno de homem providencial que o pode lançar para a vitória. O vago sebastianismo que nos atinge em momentos de crise faz sonhar os socialistas.

Essa perspectiva de vencer tornou-se mais provável depois de uma decisão do Tribunal Constitucional que terá implicações económicas e orçamentais não apenas este ano, mas também nos próximos. Para compensar o dinheiro em falta, e por não poder reduzir o número de funcionários públicos, o governo será forçado a aumentar impostos, sufocando uma parte do pequeno crescimento económico que se ia conseguir: em vez de 1,5%, uma pequena proeza, o crescimento acabará por ser menor em algumas décimas, devido ao impacto do aumento do IVA.

As reformas acabaram no ano passado, este ano acabou a consolidação orçamental. As clientelas e os interesses especiais estão outra vez na mó de cima e deram por findo o período de ajustamento. A comunicação social sente o cheiro do sangue e apoia inteiramente este regresso à irresponsabilidade orçamental. Os europeus olham com impotência para a maneira infantil como Portugal se lança nos braços de um possível segundo resgate.

Nas eleições europeias, o centro-direita teve um resultado péssimo, mas isso não significa que esteja liquidado. O governo vai insistir na tecla da credibilidade e acusar o PS de estar ligado à bancarrota de 2011, argumentos que talvez sejam suficientes para impedir a maioria absoluta de Costa. A esquerda do PS está também em dificuldades, mas longe de derrotada: o PCP não subiu tanto como queria e o Bloco continua o seu lento suicídio, mas juntos ainda representam 17% do voto, mais de metade da votação obtida pelos socialistas.

Costa já mostrou que a sua estratégia será a de tentar criar uma alternativa de esquerda, o que implica negociar uma ampla frente com, por exemplo, Marinho Pinto e o Livre, que somados aos votos do PS podiam em teoria formar um resultado interessante. Se a frente se alargar também a independentes da direita, a vitória será ainda mais provável. No entanto, esta salada não é fácil de concretizar. Bloco e PC parecem já ter escolhido a oposição frontal à hipotética frente de esquerda.

Se vencesse as eleições com maioria absoluta, Costa daria provavelmente um golpe fatal no PSD: a direita estilhaçava-se e haveria uma longa guerra civil pela liderança, com chefias de passagem e uma oposição fraca. As ambições de alguns protagonistas passavam para as presidenciais ou até para a fragmentação, mas em princípio a direita seria forçada a uma travessia do deserto.

Esta é a aparente estratégia de António Costa, mas o PS renovado terá de enfrentar obstáculos. Um deles está bem explicado nesta excelente análise de Paulo Gorjão, em Bloguítica. O País precisa de uma reforma do sistema político e as clientelas dos partidos tradicionais têm muito a perder. Outro dilema será a reforma do Estado e da segurança social, onde uma frente de esquerda terá uma visão distinta daquela que teria o PS centrista da actual direcção.

Portugal não conseguirá cumprir os compromissos do período pós-troika sem concretizar estas reformas (Estado, segurança social, sistema político). E, no entanto, já vemos socialistas que tentam desvalorizar o Tratado Orçamental. Um PS mais à esquerda dirá que as metas têm de ser revistas e que a dívida deve ser parcialmente reestruturada. Ou seja, não cumprimos e não mudamos.

Um governo eleito em 2015 que cumpra o Tratado Orçamental não terá apenas de fazer as três reformas referidas acima, com provável oposição do Tribunal Constitucional, mas precisa de garantir orçamentos equilibrados (com saldos primários positivos) e a redução regular da dívida, o que implica cortes adicionais e a tarraxa apertada nas contas.

A alternativa ao rigor é a desconfiança dos mercados. E mesmo que por milagre os europeus revissem as metas do tratado, o que não se vislumbra, Portugal precisaria sempre de orçamentos equilibrados e de fazer as difíceis reformas do Estado sem as quais isso nunca será alcançado.

Em resumo, não haverá dinheiro para distribuir pelas clientelas. O PS com maioria absoluta corre sérios riscos de frustrar depressa as expectativas de um eleitorado iludido pelo efeito de homem providencial. Se distribuir benesses, então este PS anti-reformista arrisca-se a atirar o país para uma nova crise financeira.

Talvez isso explique o facto das primeiras promessas de Costa parecerem demasiado vagas (desenvolver o interior, apostar nas qualificações). Estas ideias demoram décadas a dar resultados e o nosso problema de competitividade coloca-se nos próximos anos. Aliás, estas questões são como as cerejas. Estará o candidato a líder do PS a falar de regionalização? E como é que isso se faz sem mudar o sistema político ou sem acabar com as freguesias? E o crescimento, o emprego e o fim da austeridade? Como é que isso se faz sem dinheiro?
Título, Imagem e Texto: Luís Naves, Fragmentário, 03-06-2014

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