Rui Ramos
António Costa segue a receita do
Syriza: não consiste em reverter a austeridade, mas em encenar um confronto
internacional em que os seus erros passem por patriotismo, e todas as críticas
por traição.
Reversão de tanta coisa, de
uma só vez? Cedências sucessivas ao PCP? Picardias com o FMI? Confrontos com a
Comissão Europeia? Que sentido faz tudo isto? Estarão malucos?
Não, eles não estão malucos.
Maluco estava quem acreditou
que o PS sofria apenas do mal da oposição, mas que lhe bastaria chegar ao
governo para sentir outra vez a responsabilidade, compreender os limites,
reconhecer os constrangimentos. Doce ilusão. Durante quatro anos, os líderes do
PS renegaram o memorando que o seu próprio governo negociou, atribuíram todas
as dificuldades do país a uma conspiração “neo-liberal”, e cultivaram com
esmero um ódio teológico à “direita”. Talvez não tenha chegado para convencer o
eleitorado, mas chegou para se convencerem a si próprios de que valia tudo para
afastar a maioria PSD-CDS, e que inverter as suas políticas era necessário,
mesmo que não fosse realista. Que poderia um líder do PS fazer, depois de
quatro anos de anti-austeridade?
Não, eles não estão malucos.
Maluco estava quem pensou que o
apoio do PCP e do BE não teria consequências, nem custos. Era apenas o
“alargamento da democracia”, iria finalmente comprometer comunistas e radicais
na governação e iniciá-los na responsabilidade e na sensatez. Pouca gente quis
admitir que o PCP e o BE não chegaram ao poder por terem mudado de ideias ou de
métodos, mas unicamente porque um líder do PS derrotado nas eleições precisou
dos seus votos para ganhar no parlamento. Se alguém teve de mudar até agora,
foi o PS, como se viu no caso da educação, onde já quase renegou todo o seu
passado governativo. É óbvio que conservar o braço sindical do PCP tem um
preço, e é óbvio que o BE precisa de uma guerra com a “Europa”, até para
justificar algumas votações. Mas que alternativa tem António Costa, depois de perder as eleições?
Não, eles não estão malucos.
Maluco, acima de todos, estava
quem não aprendeu a verdadeira lição da Grécia. Para muita gente, a Grécia
demonstrou que o radicalismo e o populismo, num país dependente de ajuda
externa, servem apenas para dobrar as aflições. De facto, demonstrou. O Syriza
e os seus aliados de extrema-direita começaram por anunciar o fim da
austeridade, anular reformas, e inverter privatizações, para acabarem a agravar
a austeridade, a retomar reformas e a prosseguir com privatizações. Visto de
longe, pareceu o descrédito total das plataformas populistas e radicais. Mas
que aconteceu a seguir? A seguir, o Syriza ganhou as eleições e, passado um
ano, continua no poder. Tsipras mentiu, desdisse-se, fez marcha atrás, completou
a ruína da Grécia, abandonou os últimos farrapos de soberania nacional – mas os
eleitores mantiveram-no no governo. Não foi por acaso: Tsipras fez entrar os
gregos numa espécie de II Guerra Mundial imaginária, em que se reservou o papel
de “resistente”, e obrigou os seus adversários a fazerem de
“colaboracionistas”. António Costa está a seguir a verdadeira receita eleitoral
do Syriza: não consiste em pôr termo à austeridade ou à dependência, mas em
encenar um confronto internacional em que os erros e as mentiras do governo
passem por feitos patrióticos, e em que as críticas e os reparos das oposições
figurem como actos de alta traição. Já era a fórmula de Hugo Chávez, que ele
aliás copiou de Fidel Castro. O patriotismo, como ensinou o Dr. Johnson, continua
a ser o último refúgio dos velhacos.
É por isso que durante esta
semana toda a gente esteve preocupada, menos o governo. Se puderem fazer de
conta que a “Europa” cedeu e aceitou um “acordo”, voltarão a Lisboa como Nuno Álvares após
Aljubarrota. Se não conseguirem, dirão que bem tentaram, que esteve quase, mas
que foram traídos pelos descendentes de Miguel de Vasconcelos, agora
“neo-liberais” e ao serviço da Alemanha. Não, eles não estão malucos. Apostaram
apenas em que somos parvos.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador, 5-2-2016
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