José Manuel Fernandes
Por uma vez, todos estão de acordo nas críticas
ao Orçamento, em Lisboa, em Bruxelas, no FMI – mas para o comandante e adjuntos
deste nosso Titanic, estão todos errados, pois só eles é que têm razão.
É difícil imaginar como
poderia ser pior. É aterrorizador pensar que ainda vai ser pior.
Os dias foram passando e, no
momento em que escrevo, o nevoeiro ainda é imenso sobre o que será o próximo
Orçamento do Estado. Mas sabemos já muito sobre o que não foi.
Começou por não ser o
Orçamento previsto pelos economistas do PS, pois as famosas “contas” de que
António Costa nos falou meses a fio não resistiram ao embate da geringonça.
Se alguma lógica existia nas previsões macroeconómicas da equipa de Mário
Centeno, nenhuma lógica restou das negociações do mesmo Mário Centeno com o
Bloco, o PCP e os Verdes. Basta recordar um exemplo: o plano do PS previa
utilizar reduções na TSU como principal instrumento de estímulo ao crescimento
económico; os “protocolos de entendimento” recusaram essa política,
substituindo-a por uma simples distribuição de benesses pelas clientelas mais
poderosas, com os funcionários públicos à cabeça. Nesse momento todo a lógica
interna das “contas” ruiu pela base.
Se já era duvidoso que as
estimativas dos economistas do PS batessem certo, as contas da geringonça estavam
totalmente desequilibradas, pois só previam aumentos de despesa e cortes nas
receitas.
Esperámos por isso, com
natural curiosidade, pelo “esboço de orçamento” que teria de ser enviado para Bruxelas, e ele caiu-nos nos
braços dois dias antes das eleições presidenciais. Caiu ele e cairam também as
criticas unânimes das entidades independentes que se deviam pronunciar, do Conselho de Finanças Públicas à UTAO. Não
há memória de documentos tão arrasadores para uma proposta orçamental vindos de
entidades tão diferentes e tão respeitadas.
Sem surpresa, depressa
percebemos que o problema não estava no eventual erro de miopia de todos
quantos em Portugal se pronunciaram sobre o dito “esboço”. Em Bruxelas o choque
foi frontal. Tão frontal que, passada apenas uma dúzia de dias sobre a entrega
desse esboço, as notícias esparsas que nos vão chegando apontam para que dele
já pouco restará. Foi sendo estraçalhado em boa parte das suas metas e indicadores.
Só para se ter uma ideia de
como as coisas evoluíram basta recordar que as “contas” dos economistas do PS
apontavam para um crescimento de 2,4% da economia em 2016, o Programa do
Governo desceu essa previsão para 2,2%, o “esboço” encolheu-a ainda mais para
2,1% e agora estará nos 1,9% e toda a gente continua a dizer que é irrealista.
Aconteceu o mesmo com todos os outros grandes números, o que mostra a pouca
seriedade e o nenhum rigor das “contas” que nos têm vindo a ser apresentadas.
Ao mesmo tempo que assistíamos
a este desnorte, e à consequente descredibilização dos sucessivos exercícios
contabilísticos, abrimos a boca de espanto com a estratégia de afrontamento
seguida pelo governo português, e pela maioria que o apoia, relativamente às
instâncias da União Europeia. Tudo indica que, para a equipa de António
Costa, a Comissão é um bando de burocratas que se pode tratar displicentemente
e desqualificar politicamente.
Vou dar apenas dois exemplos,
que mostram bem um tipo de comportamento que tenho dificuldade em classificar
(será arrogância? será incompetência? será apenas ignorância?). O primeiro é a
entrevista que Costa deu ao Financial Times. Nela diz, a certa
altura, que uma redução do défice estrutural de 0,2% será maior dos últimos
anos, uma boutade que só pode ter deixado boquiabertos os técnicos
que, na Comissão Europeia, seguem de perto a realidade portuguesa e têm o Financial
Times nas suas secretárias logo pela manhã. É que a média da redução
do saldo estrutural dos últimos anos é de 1,4 pontos percentuais, um número bem conhecido por esses técnicos,
pelo que um erro tão flagrante por parte de um primeiro-ministro só poder ter
funcionado como a pior carta de recomendação no início de umas negociações
difíceis.
O segundo exemplo também fala
por si. É que, ao enviar para Bruxelas o seu “esboço”, o Governo esqueceu-se de
informar que, pelo caminho, estava a alterar os critérios para o cálculo do
défice estrutural (valha ele o que valer, e até admito que valha pouco). Pior: estava a alterar
critérios que tinham sido negociados entre Bruxelas e Lisboa sem dizer nada em
Bruxelas e vindo para Lisboa acusar o anterior Governo de ter enganado a
Comissão Europeia. Nessa altura, nas reuniões técnicas, só faltaram os insultos
para colorir o choque frontal.
Um ano depois de ter
assistido ao drama grego custa a crer que, na equipa de Costa e entre os
seus acólitos de extrema-esquerda, se acreditasse ainda que a melhor forma de
lidar com as instituições comunitárias fosse a afronta e o desafio, a ameaça do
“murro na mesa”. Ou mesmo, mais modestamente, que se pensasse que a
melhor forma de obter bons resultados fosse trazer para a praça pública o
debate, fingir que tudo não se limitava detalhes técnicos ou tentar passar
a mensagem de que o processo ia pelo melhor quando, afinal, tudo corria pelo
pior.
A cereja em cima deste bolo
foi a adopção, para consumo doméstico, de um discurso autoritário, demagógico e
desavergonhado. As críticas, mesmo as vindas de entidades independentes e
respeitáveis, começaram a ser descartadas como traições à pátria. Aos pedidos
de explicações sobre tanta confusão e tanto número sem justificação,
respondeu-se com um seco “deixem o governo trabalhar” e a recusa em sequer encarar as questões dos
jornalistas. A própria existência de um debate público e a ocorrência de
divergências, próprias de qualquer sociedade aberta, foi enquadrada como
representando a acção de uma sombria “quinta coluna” ao serviço dos alemães. Até as instituições
europeias não escaparam, com altos responsáveis a compararem a Europa a uma URSS a que só faltaria o KGB e a acrescentarem que
os seus técnicos estavam ao serviço da direita europeia.
O registo adoptado pelo
primeiro-ministro e pela maioria que o apoia no último debate quinzenal teve
mesmo o condão de nos reconduzir aos tempos de José Sócrates, mas em pior:
a mistificação foi moeda corrente, a verdade um detalhe sacrificada ao
argumento de ocasião, a desvergonha só comparável à ausência de memória, tudo
coisas que eram habituais no grande timoneiro da bancarrota, só que agora em
versão degradada, género filme série B, poiso antigo PM ainda estudava os
dossiers e Costa não se dá a esse trabalho, sendo que Teixeira dos Santos ao
lado de Mário Centeno até lembra um Principe da Renascença.
De novo apenas um exemplo para
se ter ideia da desonestidade dos argumentos utilizados no debate: pretendeu-se
dizer que os cortes salariais na administração pública tinham sido apresentados
em Bruxelas como “estruturais” e em Lisboa como “temporários” pelo anterior
governo, quando esses cortes começaram com José Sócrates no PEC3, eram
reforçados no famoso PEC4 (aquele que alguns ainda veneram como se venera uma
sagrada escritura) e sempre foram tratados, em Lisboa e em Bruxelas, com
Sócrates ou com Passos Coelho, da mesma forma. Agora dá jeito um flick
flack contabilístico, pelo que a melhor forma de o camuflar é chamar
mentiroso aos outros com a mesma lata do ladrão que grita “agarra que é
ladrão”.
Falta-nos ver o resultado
final de todos estes malabarismos, assim como os pareceres que as instituições
internacionais produzirão. Teme-se o pior. Teme-se sobretudo que os
nossos grandes patriotas estejam a criar as condições para que, mesmo fazendo
agora passar o seu orçamento, vejam depois degradarem-se as avaliações das
agências de rating, o que terá consequências catastróficas para um país que,
nos próximos anos, terá de ir ao mercado buscar 43 mil milhões de euros para se
financiar.
Há, contudo, alguns adquiridos
que a análise mais fina do documento final por certo não desmentirá.
O primeiro adquirido é que
estaremos perante um exercício orçamental irrealista, com metas que não são
para cumprir. Já houve quem, com mais competência, o explicasse em detalhe, mas não custa compreender como
se chega aquilo a que já chamaram o “orçamento Photoshop”: o objectivo desta equipa não é o bom
governo de Portugal, é ganhar umas eleições que todos pensam surgirão bem antes
do fim da legislatura. Por hoje, aguenta-se a geringonça à
custa de concessões ao Bloco e ao PCP, reza-se para que os buracos nas contas
só apareçam lá mais para o fim do ano e adiam-se os problemas para o Orçamento
de 2017. Pelo caminho espera-se que, satisfazendo as clientelas, estas
retribuam com o votinho na urna.
É assim que o “governo do
desfazer” se prepara, por exemplo, para gastar mais dinheiro com a devolução
dos cortes salariais aos funcionários públicos mais bem pagos do que com o
descongelamento das pensões mais baixas. Não está mal para um governo “de
esquerda” cheio de “sensibilidade social”, mas é coerente com a percepção de
que as clientelas que assim vão ser beneficiadas são as mais influentes e as
melhor representadas pela CGTP.
É assim também que os mesmo
que enchem a boca com a palavra “igualdade” se preparam para repor a
desigualdade entre o regime laboral na administração pública (onde voltaremos
às 35 horas) e no sector privado (onde a regra é a das 40 horas).
É ainda assim que o Governo
que jura que não vai tocar no rendimento das famílias se prepara para aumentar
a carga fiscal em bens, como os combustíveis, que afectarão as despesas das
famílias, tirando com uma mão o que dá com a outra e fazendo cara de pau. Tal
como é assim que o Governo que diz tudo querer fazer pelo crescimento opta por
virar as baterias do Fisco contra a banca sem reparar que, ao mesmo tempo,
lamenta a falta de capacidade dessa mesma banca para financiar a economia.
Quando aqui chegamos já
estamos muito para lá de discutirmos a austeridade, ou esse slogan cada vez
mais vazio do “virar de página da austeridade” – o que começamos a discutir é
mesmo quanto tempo de repetição de erros do passado será necessário para que
acabemos da mesma forma como acabámos no passado. É isso mesmo que todos nos estão a dizer, sejam eles os respeitáveis académicos do Conselho de
Finanças Públicas, os técnicos das instituições internacionais ou os analistas dos mercados. Por uma vez, parecem estar todos de acordo – mas para o
comandante e para os adjuntos deste nosso Titanic, estão todos errados, pois só
eles é que têm razão.
Pobres de nós, que já vimos
este filme.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
4-2-2016
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