Paulo Tunhas
A vitória de Marine Le Pen nas
presidenciais francesas seria incalculavelmente mais nociva do que a vitória de
Trump. A ideologia e a tradição são completamente diversas e é disso que se
deve ter medo
A ouvir muito do que se ouve e
a ler muito do que se lê, o pacato cidadão que consome televisão e jornais
acaba por se convencer que Donald Trump apareceu do nada, por ação do diabo,
investido de toda a malignidade que a imaginação contemporânea ousa conceber.
Como se esta geração não fosse já em si eminentemente misteriosa, acresce que o
advento do Mal surge na imediata sequência de um duradouro, e a seu modo
eterno, reino do Bem, localmente conhecido pelo nome de Barack Obama. Quer
dizer: quem ler e ouvir a grande maioria da opinião expressa (e das notícias
que não se apresentam como opinião) não tem condições para perceber nada e não
tem outra solução senão atribuir efetivamente a sucessão de Obama e Trump à
inescrutável agência divina ou ao combate imemorial dos dois grandes princípios
do Bem e do Mal. Dito de outra maneira: só pode aceder a uma interpretação
mítica da realidade, sem qualquer poder explicativo. Esquizofrenicamente, amará
os Estados Unidos, terá por eles uma incansável e muito proclamada amizade, e
detestará Trump, que os Estados Unido democraticamente elegeram (aqui, como
noutras coisas, a semelhança com o que se passou com George W. Bush é notória).
Foi mais ou menos assim (Trump como a encarnação do Mal) que José Miguel
Júdice, para dar um exemplo entre muitos, teologicamente explicou as coisas,
muito bem-disposto, terça passada na TVI.
Não pretendo aqui fazer a
lista do que foi mau em Obama nem daquilo que em Trump responde, ou é reação,
ao que foi esse mau, nem sequer sublinhar como muitas políticas de Trump que,
como neste jornal notaram José Manuel Fernandes (“Espanto e choque. O que fazer face a Trump”) e Rui Tato Lima (“Para lá do muro”),
são prolongamento de políticas de anteriores administrações americanas,
inclusive da de Obama. Pelo contrário: começo com algo que é da exclusiva
responsabilidade de Trump e que manifesta uma péssima característica sua.
Estou, é claro, a falar da
forma brutal como decretou a prometida proibição de entrada em solo americano
dos cidadãos de sete países de maioria muçulmana por 120 dias e, por tempo
indeterminado, de imigrantes sírios. Como se se tratasse de despedir da empresa
um número de funcionários indesejável para o seu bom funcionamento e o lucro
almejado e como se a história pessoal dos indivíduos e o seu sofrimento não
contassem. Se quisesse fingir que era cínico diria, como se diz que Talleyrand
disse (mas parece que não disse) acerca do assassinato do duque de Enghien por
Napoleão: pior do que um crime, foi um erro. Mas não sou cínico nem quero
parecer e não digo, até porque não tenho a certeza que, atendendo a várias
sondagens entretanto realizadas, tenha sido um erro. Foi mesmo só,
provavelmente, um crime de falta de consideração para com os indivíduos, algo
que é realmente preocupante.
Essa brutalidade deve, no
entanto, ser posta em contexto. Que eu saiba, Trump não anda a meter gente em
campos de concentração nem a promover fuzilamentos generalizados. Não compro
sequer a história do racismo (não a compro também em relação aos mexicanos) nem
da suposta “islamofobia”. Além disso, convém notar duas coisas que Charles
Moore, que igualmente não apreciou o gesto, sublinhou no Telegraph: todos os
Estados têm o direito, e a obrigação, de controlarem as entradas no seu
território; e abdicar dessa prerrogativa equivale a colocar o Estado em perigo.
O problema com Trump, como bem
apontou José Manuel Fernandes no
artigo que referi, é fazer o que os outros (Obama incluído) sempre fizeram,
mas com indisfarçável orgulho, sem dissimulação alguma. E tal atitude presta-se
a várias objecções. Há, como Kant notou há muito (e, antes dele, os moralistas
franceses dos séculos XVII e XVIII), uma espécie de valor civilizacional da
dissimulação que nos ajuda a progredir na direção de uma melhor sociedade. Por
vezes é útil para a melhoria da situação da humanidade que aparentemos virtudes
que não possuímos. A aparência da virtude civiliza à sua maneira: a máscara
acaba, por assim dizer, por se colar ao rosto. E o que Trump faz, ou fez, é
exatamente o contrário.
Mas se há brutalidade em
Trump, há-a também na opinião (incluindo, repito, a opinião que não se
apresenta como tal, mas como informação) que contra ele é expressa. Pelo menos
sob duas formas: a da alucinação do Mal, precipitando nele todos os predicados
concebíveis do demónio, e a da pressuposição da unanimidade nessa atribuição de
características demoníacas ao personagem. A primeira coisa roça o patético (e o
vulgarmente pateta). Não falo sequer da estúpida, ignorante e obscena
comparação com Hitler, que lembra sempre que este também foi democraticamente
eleito. Não vale a pena perder tempo com isso, apesar dos tempos presentes nos
mostrarem mais uma vez como o respeito pela democracia é frágil em muita gente.
Falo, por exemplo, dos delírios de psicologia selvagem tendo Trump por objeto.
Eles não se contam, e comecei a fazer uma sua coleção particular, para um qualquer
uso futuro. Por menos que se aprecie Trump, a lista dos adjetivos utilizados,
muitas vezes no interior de um só artigo, desmistifica-se, a qualquer olhar
atento, a si mesma. Quem anda sempre com a tal “pós-verdade” (um conceito oco)
na boca encontraria aí um bom exemplo do que se quer dizer com tal expressão
que substituiu outras melhores, mais justas e mais antigas. O próprio exagero,
manifestando a furiosa passionalidade do juízo, mostra que não pode ser assim.
A outra forma de brutalidade
representa a forma de totalitarismo mediático possível nos nossos dias. Todos,
dizem jornais e televisões, mas mesmo todos, nada menos do que isso, estão
contra Trump. O ridículo da afirmação e a sua facilíssima refutação não
embaraçam. É como se a simpatia política, necessária para que as sociedades
sobrevivam com um grau de coesão indispensável, se transformasse numa espécie
de simpatia estética: reina o modelo de uma feroz unanimidade que a todos nos
uniria, e não há cabeça vazia que a ela não se submeta. A reivindicação de um
assentimento universal elimina a diversidade das opiniões: todos têm que pensar
como nós, porque é a única maneira concebível de pensar. A substituição do
pensamento político por um pensamento estético da sociedade pode oferecer o
duvidoso benefício narcísico de nos vermos como a encarnação da virtude, mas
garante infalivelmente duas coisas: o nada se perceber da realidade e a mais
absoluta inoperância política.
Se quisermos manifestar a
nossa virtude e a excelência dos nossos princípios (uma pessoa fica
surpreendida coma quantidade de gente que aparentemente os tem
ininterruptamente presentes ao espírito) há objetos de oposição bem mais
urgentes do que Trump, até porque os americanos sabem tomar muito bem conta de
si, como tomaram durante muito tempo conta de nós. Em França, por exemplo. Uma
vitória de Marine Le Pen nas presidenciais francesas seria incalculavelmente
mais nociva para nós do que a vitória de Trump nos Estados Unidos. A ideologia
e a tradição são completamente diversas, e é disso que se deve ter medo. Gritar
“populismo, populismo” como se a palavra abarcasse tudo e quisesse dizer sempre
o mesmo não adianta nada. E esse medo tem mesmo uma razão de ser razoavelmente
definida, até porque as trapalhadas em que se encontra François Fillon por
causa dos supostos pagamentos chorudos à mulher, bem como a escolha socialista
de Benoît Hamon, um esquerdista absurdo, facilitam, e muito, a vida à filha de
Jean-Marie. Não se compare isto, por favor, com Trump ou o Brexit. A vitória de
Marine Le Pen e da velhíssima tradição que, por mais camuflada que seja, ela
traz consigo seria, de facto, o fim do mundo como nós, os europeus, o
conhecemos.
Ou então, por razões mais
comezinhas, Portugal. Costa e os seus, na ficção incongruente que construíram,
estão a levar-nos disciplinadamente para o precipício. It’s a way of
life. Os juros da dívida a dez anos, que para Marcelo parecem suaves
prestações mensais, são um entre muitos outros sinais. Vai uma aposta? Mais
depressa Trump fará coisas boas pelos Estados Unidos, e até pelo mundo, do que
Costa o fará por Portugal. Mais depressa? Muito mais depressa.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador, 2-2-2017
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