quinta-feira, 25 de abril de 2019

Descrispação: ainda alguém se lembra?

Alexandre Homem Cristo

O fim do mito da “descrispação” está repleto de significado. O PS pode enterrar a fórmula do poder perpétuo que, em tempos, julgara ter encontrado através do controlo hegemônico do Estado e das ruas.

Foi promovida a palavra do ano, em 2016, sob o alto patrocínio da Presidência da República. Palavra inexistente no dicionário, Marcelo apresentou-a para sinalizar a sua prioridade no início do mandato presidencial e celebrar aquela que, para ele, emergiu como a conquista inicial da geringonça enquanto solução governativa: a paz social voltara às ruas. Ora, se já à época era evidente a artificialidade da “descrispação”, agora, perante o endurecer generalizado das greves, não restam vestígios dessa ilusão fabricada por Marcelo. E se isto poderia ser um mero ajuste de contas linguístico, na verdade o seu impacto é muito mais profundo: da mesma forma que a “descrispação” visou elevar a união das esquerdas a único garante da estabilidade política e da paz social (em oposição à coligação da direita), o esfumar dessa ilusão representa uma derrota política da geringonça. Uma derrota pesadíssima, porque decorrida no seu próprio território: a rua, onde a influência da CGTP é hoje menor do que em 2015.


A tese da “descrispação” de Marcelo sempre sofreu de dois problemas estruturais. Primeiro, exaltou uma paz social artificial, obtida por via da pacificação da CGTP através do apoio parlamentar do PCP ao governo (e do silenciamento do BE) – ou seja, a ausência de contestação social não significava ausência de tensões nas várias classes profissionais, que eventualmente encontrariam um escape.

Segundo, eliminou a direita parlamentar como opção governativa, sugerindo que apenas o PS à esquerda conseguiria governar sem contestação, nomeadamente em contextos sociais e econômicos mais difíceis – ou seja, legitimou a ideia de que uma maioria PSD-CDS era indesejável, na medida em que faria elevar os níveis de crispação. Ideia, de resto, que o PS já havia ensaiado em 2002, através de Eduardo Ferro Rodrigues, quando assegurou que o papel do PS era o de contribuir para a “descrispação” do ambiente político. Dito de outro modo, em 2002 ou em 2016, a tese da “descrispação” serviu sempre para posicionar o PS enquanto única fonte de estabilidade política.

Essa tese está hoje completamente refutada. Por um lado, sim, a mordaça sindical que a geringonça impôs à CGTP protegeu o governo e garantiu, sobretudo entre 2016 e 2017, um ambiente de aparente acalmia, apesar da degradação acelerada dos serviços públicos (nos transportes, na saúde, na educação). Mas a insatisfação que a CGTP conteve e deixou de representar no âmbito da Concertação Social originou novos movimentos e sindicatos – menos institucionais, mais radicais e com ações menos imprevisíveis. Estivadores, enfermeiros, professores, motoristas de materiais perigosos, são cada vez mais as classes profissionais que estão a redirecionar as suas lutas para fora da esfera da CGTP e da Concertação Social – isto é, para fora do controlo político e sindical que o PCP sempre se gabou de ter nas ruas. Por outro lado, essas movimentações têm uma dupla consequência negativa para o PS: enquanto governo, não só perdeu o estatuto de garante da paz social, como a sua solução governativa está a originar formas de combate sindical ainda mais agressivas do que as tradicionais. Ironicamente, esta será uma das heranças da geringonça.

O fim do mito da “descrispação” está, por isso, repleto de significado político. Para o governo PS, que tem de enterrar a fórmula do poder perpétuo que, em tempos, julgara ter encontrado através do controlo hegemônico do Estado e das ruas. Para a esquerda, para a qual este corresponde a um momento de desorientação, com tentativas de salvar a influência institucionalizada da CGTP, de silenciar as ruas e de consequente descredibilização dos novos sindicatos – que, como referiu o jornalista António Costa no ECO, estão a ser sujeitos a níveis elevados de escrutínio que nunca se aplicaram aos sindicatos tradicionais. Para a direita, que tem aqui uma oportunidade real para compreender as inquietações destes novos sindicatos (por exemplo, nas diferenças salariais) e representar politicamente esses profissionais, furando o monopólio da CGTP. E, por fim, para o Presidente da República, principal promotor do mito da “descrispação”, à qual associou o seu mandato presidencial, e que deverá medir o impacto das suas posições imediatistas no longo prazo – quem vende ilusões é sempre apanhado em contrapé pela passagem do tempo. Entrará melhor em 2020 quem melhor corrigir os erros ou aproveitar as oportunidades que tem diante de si.
Título e Texto: Alexandre Homem Cristo, Observador, 25-4-2019

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