Alexandre Homem Cristo
O fim do mito da “descrispação” está
repleto de significado. O PS pode enterrar a fórmula do poder perpétuo que, em
tempos, julgara ter encontrado através do controlo hegemônico do Estado e das
ruas.
Foi promovida a palavra do
ano, em 2016, sob o alto patrocínio da Presidência da República. Palavra
inexistente no dicionário, Marcelo apresentou-a para sinalizar a sua prioridade
no início do mandato presidencial e celebrar aquela que, para ele, emergiu como
a conquista inicial da geringonça enquanto solução governativa: a paz social
voltara às ruas. Ora, se já à época era evidente a artificialidade da “descrispação”, agora, perante o endurecer generalizado
das greves, não restam vestígios dessa ilusão fabricada por Marcelo. E se isto
poderia ser um mero ajuste de contas linguístico, na verdade o seu impacto é
muito mais profundo: da mesma forma que a “descrispação” visou elevar a união
das esquerdas a único garante da estabilidade política e da paz social (em
oposição à coligação da direita), o esfumar dessa ilusão representa uma derrota
política da geringonça. Uma derrota pesadíssima, porque decorrida no seu
próprio território: a rua, onde a influência da CGTP é hoje menor do que em
2015.
A tese da “descrispação” de
Marcelo sempre sofreu de dois problemas estruturais. Primeiro, exaltou uma paz
social artificial, obtida por via da pacificação da CGTP através do apoio
parlamentar do PCP ao governo (e do silenciamento do BE) – ou seja, a ausência
de contestação social não significava ausência de tensões nas várias classes profissionais,
que eventualmente encontrariam um escape.
Segundo, eliminou a direita parlamentar como opção governativa, sugerindo que apenas o PS à esquerda conseguiria governar sem contestação, nomeadamente em contextos sociais e econômicos mais difíceis – ou seja, legitimou a ideia de que uma maioria PSD-CDS era indesejável, na medida em que faria elevar os níveis de crispação. Ideia, de resto, que o PS já havia ensaiado em 2002, através de Eduardo Ferro Rodrigues, quando assegurou que o papel do PS era o de contribuir para a “descrispação” do ambiente político. Dito de outro modo, em 2002 ou em 2016, a tese da “descrispação” serviu sempre para posicionar o PS enquanto única fonte de estabilidade política.
Segundo, eliminou a direita parlamentar como opção governativa, sugerindo que apenas o PS à esquerda conseguiria governar sem contestação, nomeadamente em contextos sociais e econômicos mais difíceis – ou seja, legitimou a ideia de que uma maioria PSD-CDS era indesejável, na medida em que faria elevar os níveis de crispação. Ideia, de resto, que o PS já havia ensaiado em 2002, através de Eduardo Ferro Rodrigues, quando assegurou que o papel do PS era o de contribuir para a “descrispação” do ambiente político. Dito de outro modo, em 2002 ou em 2016, a tese da “descrispação” serviu sempre para posicionar o PS enquanto única fonte de estabilidade política.
Essa tese está hoje
completamente refutada. Por um lado, sim, a mordaça sindical que a geringonça impôs à CGTP protegeu o governo e garantiu, sobretudo
entre 2016 e 2017, um ambiente de aparente acalmia, apesar da degradação
acelerada dos serviços públicos (nos transportes, na saúde, na educação). Mas a
insatisfação que a CGTP conteve e deixou de representar no âmbito da
Concertação Social originou novos movimentos e sindicatos – menos
institucionais, mais radicais e com ações menos imprevisíveis. Estivadores,
enfermeiros, professores, motoristas de materiais perigosos, são cada vez mais
as classes profissionais que estão a redirecionar as suas lutas para fora da
esfera da CGTP e da Concertação Social – isto é, para fora do controlo político
e sindical que o PCP sempre se gabou de ter nas ruas. Por outro lado, essas
movimentações têm uma dupla consequência negativa para o PS: enquanto governo,
não só perdeu o estatuto de garante da paz social, como a sua solução
governativa está a originar formas de combate sindical ainda mais agressivas do
que as tradicionais. Ironicamente, esta será uma das heranças da geringonça.
O fim do mito da
“descrispação” está, por isso, repleto de significado político. Para o governo
PS, que tem de enterrar a fórmula do poder perpétuo que, em tempos, julgara ter encontrado através do
controlo hegemônico do Estado e das ruas. Para a esquerda, para a qual este
corresponde a um momento de desorientação, com tentativas de salvar a
influência institucionalizada da CGTP, de silenciar as ruas e de consequente descredibilização dos novos sindicatos – que,
como referiu o jornalista António Costa no ECO, estão a ser
sujeitos a níveis elevados de escrutínio que nunca se aplicaram aos sindicatos
tradicionais. Para a direita, que tem aqui uma oportunidade real para
compreender as inquietações destes novos sindicatos (por exemplo, nas diferenças salariais) e representar
politicamente esses profissionais, furando o monopólio da CGTP. E, por fim,
para o Presidente da República, principal promotor do mito da “descrispação”, à
qual associou o seu mandato presidencial, e que deverá medir o impacto das suas
posições imediatistas no longo prazo – quem vende ilusões é sempre apanhado em
contrapé pela passagem do tempo. Entrará melhor em 2020 quem melhor corrigir os
erros ou aproveitar as oportunidades que tem diante de si.
Título e Texto: Alexandre Homem Cristo, Observador,
25-4-2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-