Era pouco antes das sete da noite, segunda-feira pacata de abril, e de repente em Paris o fogo, parecendo vomitado do inferno, estralejou violento no madeirame da catedral de Notre-Dame de Paris. Subia, ardia, baixava, lambia e devorava o que encontrava, diante de espectadores aterrados. O mundo, estarrecido e aturdido, julgava ter diante dos olhos o que não podia acontecer. Continuou por horas o espetáculo dantesco.
Pouco a pouco, na capital
francesa, depois do choque inicial, pairou o silêncio, a dor, aqui e ali
magotes rezavam e entoavam cânticos. Houve também silêncio, dor,
desnorteamento, orações no mundo inteiro. Perplexidade. Por fim, cintilou uma
nota de alívio. As duas torres estavam salvas. Aos poucos, foi sendo divulgado
que muita coisa não tinha sido consumida pelas labaredas. Acidente? Atentado?
Por enquanto é prematuro concluir.
Perdoem o chavão, tentei ouvir
o silêncio, explicitar o imponderável. Pus atenção nas reações do povo de Paris
e do mundo inteiro. De forma particular, nos magotes em torno da catedral
crucificada pelas chamas. Havia um denominador comum, a compunção, muito
relevante na multidão que rezava e cantava hinos religiosos.
Não pretendo aqui repetir o
que outros já comentaram com talento, em especial, valor simbólico, perda, prognósticos.
Foco em outro ponto, tem relação próxima com a compunção que, esperançado,
observei surpreso.
Imaginei situações diversas,
comparações, sempre admitindo a origem acidental do incêndio. Tudo muda,
existindo mão criminosa. Se o fogo tomasse a catedral da Milão, também joia da
arquitetura gótica, que reações desencadearia entre os milaneses? Na Itália? No
mundo? E se o incêndio fosse na catedral de Colônia? Em Chartres? Em Reims?
Catedral de Sevilha? Basílica de São Marcos? Na própria catedral de São Pedro?
Como reagiriam os nacionais? Como reagiria o mundo?
Ampliei a figuração. Fogo na
abadia de Westminster? No Kremlin? Na estátua da Liberdade? No Taj Mahal? Na
Esfinge ou nas pirâmides? De que forma reagiria o mundo?
Lembrei-me do horror mundial
quando o Estado Islâmico — no caso, de forma criminosa estruiu dezenas de
sítios arqueológicos no Iraque e na Síria.
Existe, parece-me certo, em
muitos aspectos, traços mais fortes, uma comoção maior, por ter sido Notre-Dame
de Paris. Tem relação com o templo, extraordinária expressão da alma medieval,
com a ordem temporal cristã, com a França. E com seus reflexos na cultura
ocidental.
Por associação, lembrei-me de
discurso pronunciado pelo cardeal Eugênio Pacelli, futuro Pio XII, na ocasião
legado pontifício, na catedral de Notre-Dame de Paris — 13 de julho de 1937.
Foi leitura minha anos atrás, na ocasião fiquei impressionado.
Recolhi alguns pequenos
extratos: “Como exprimir, meus irmãos, tudo o que evoca no meu
espírito, na minha alma, igual na alma e no espírito de todo católico, até
direi, em toda alma reta e em todo espírito culto, o nome de Notre-Dame de
Paris! Porque aqui é a própria alma da França, a alma da filha primogênita da Igreja”.
O Purpurado diz que ali ecoam
as vozes de Clóvis, de santa Clotilde, de Carlos Magno, sobretudo a voz de São
Luís IX. Ele parece escutá-las. E se pergunta a causa de tanto simbolismo em
Notre-Dame. O futuro Pio XII pôs de lado raça e determinismos como
causas: “É inútil invocar fatalismo ou determinismo racial. À França de
hoje que lhe pergunta, a França de outrora responderá dando a tal herança seu
nome verdadeiro: vocação”.
Vocação, chamado providencial,
realidade superior, imponderável por vários lados, evocada de forma
incomparável por Notre-Dame de Paris. Na compunção pela agressão ao símbolo,
ainda que de forma germinativa, havia abertura para o simbolizado, a vocação da
França.
O impulso extraordinário para
reconstruir a catedral, expresso em doações gigantescas (família Pinault, grupo
LVMH, família Arnault, família Bettencourt-Meyers, grupo L’Oréal, Apple, para
citar alguns grandes doadores) é sintoma do horror que causou na opinião
francesa e mundial a devastação do incêndio. Tem importância ímpar.
Traz, porém, no bojo uma
ameaça: tornar fashion, prestigioso, o movimento pela reconstrução.
Com isso, facilmente poderá sair do foco a compunção. Iria minguando, chegaria
até ao esquecimento. Semente de restauração, a compunção vale mais que qualquer
riqueza.
Título, Imagens e Texto: Péricles Capanema, ABIM, 24-4-2019
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