Aparecido Raimundo de Souza
EU ESTAVA BRABO, INVOCADO, pê da vida. Enfurecido, colérico, chateado,
entristecido, tipo uma aeronave envelhecida, cheia de voos interrompidos, tudo
porque não havia encontrado o bairro, tampouco a rua da casa dela, nem o ponto
indicado como referência. Num descompasso de agonia, dei meia volta decidido a
ir embora, a sumir de vez. Apagar o nome daquela infeliz, esquecer que ela
nunca existiu em meu pensamento.
Foi quando me veio à lembrança um fato que até aquele momento
não havia colocado em prática. Estanquei os passos, meio que pasmado,
atarantado, depois de andar por quase uma hora a pé. A trezentos metros da
estação que me levaria para casa, resolvi jogar com essa carta, aliás, a
derradeira que me restava na manga. Carta de feição amarga, como um cálice de
fel. O celular. Eu não havia ligado para o número que ela havia me passado.
Quem sabe!...
Se esse recurso falhasse, jogaria fora minha onda de ódio
junto com o aparelho celular na primeira lata de lixo que encontrasse pela
frente. De roldão, o currículo vitae com tudo de bom que havia lido a respeito
da vida pregressa daquela jovem desconhecida. “Menina difícil – pensei comigo –
essa ilustre sem rosto”. Contudo, para meu espanto, a sumida atendeu na hora,
com um “alô!” que me acendeu a esperança!
Finalmente! Expliquei, em rápido discurso, que não havia
encontrado o endereço e concluí quase implorando que viesse ter comigo o mais
rápido possível. Em resposta ela se abriu em mesuras esclarecendo que tomaria
um banho, trocaria de roupas e pegaria uma UBER. Não daria para vir de trem. A
estação ficava muito longe de onde estava. Segundo seus cálculos, no máximo em
quarenta minutos nosso encontro seria consumado. Passei a ela a minha
localização e me postei, à espera. Enquanto aguardava, me restou a ideia de
comer alguma coisa.
Aliviado por ter obtido uma resposta favorável, me acomodei
numa lanchonete. Optei por uma das
mesinhas dispostas numa espécie de varandão em formato de semicírculo. Desse
espaço, assistiria ao vai e vem intermitente da avenida que cruzava frontal às
escadarias da estação do Metrô justaposteadas a uma praça de nome engraçado.
Vigiaria também, de contrapeso, o movimento das calçadas.
Mesmo tom, quem saía e entrava no estabelecimento. Na
verdade, meu empenho não outro senão o de bisbilhotar a pessoa que aguardava.
Eu a veria primeiro, sem que me enxergasse logo que saltasse do carro. Solvendo
o refrigerante (acompanhado de um sanduiche de queijo quente), permaneci por
quase duas horas como um menino bobo, no aguardo da nobre donzela. Como seria?
Branca, preta, loira, morena? Alta, baixa, feia, bonita, desdentada? Simpática,
chata, meiga, nojenta? Dócil, pegajosa ou apetitosa como esses docinhos de
banana que a gente come de sobremesa nesses restaurantes sofisticados das
grandes metrópoles?
No meu devaneio, passei a desenhar a criatura com pinceladas
rápidas e objetivas, na angústia descontrolada de obter uma imagem da sua
misteriosa figura. Nessa vasca desenfreada, viajei um pouco na maionese,
atropelando os pensamentos que iam e vinham numa celeridade voraz. Seria essa
estranha mais uma, ou uma a mais -, que pintaria no pedaço, a pleitear o cargo
de musa e dona do meu coração?
Bateria somente um papo informal e depois me viraria às
costas e voltaríamos cada um com seu vazio interior de regresso para nossos
mundinhos particulares? À bem da verdade, nessa procura, me sentia enfastiado e
deprimido. Quase certo regressar com as desilusões cotidianas para meu canto de
origem carregando mais um fardo pesado para juntar aos outros na vasta coleção
das frustrações de sempre. Contudo, algo no fundo do meu eu, me animava. Um não
sei o que dizia que essa coalisão não redundaria inepta como as anteriores.
Sob o signo da esperança, a encantada chegaria triunfal,
simplesmente não se esbarraria comigo como uma manequim desfilando etiquetas
dentro de uma vitrina repleta de luzes de neon. Meu olhar, impaciente, buscava
a sua silhueta em todos os cantos da tarde. Meu coração pulsava mais forte em
cada rosto que cruzava. Em cada ser que atravessava, fosse indo ou vindo, ou
saltando de um automóvel ou taxi. Nessa voracidade inexplicável, eu encorajava
uma agonia pesada, um incômodo que machucava por dentro. Uma dor forte que se
fechava, de repente e traçava rumos indomados dentro da multidão deflagrada.
Em paralelo, meu “eu” interior, como tentando decifrar uma
imagem real e palpável, aproveitava a deixa e criava expectativas, ou melhor,
abrigos onde agasalhava a presença dela, embalada por cores vivas em matizes
jamais sonhados. Para deleite de meus olhos, para encanto de minha alma, a
estrangeira, finalmente, agraciou. Diria que realçou, resplandeceu. Notei nela,
logo que saltou e se pôs de pé, o semblante preocupado, quase intransponível,
sob a pesada maquiagem que me recordou, num rápido relance, uma deusa
egípcia.
A cândida veio vindo se achegando meio temerosa, meio “será
que é ele, será que devo perguntar antes?!”. Como se adivinhasse esses seus
pensamentos me antecipei atrevido e correndo ao seu encontro, indaguei
pressuroso: “é você, é você, a pretendida que procuro?”. Um sim vibrou como o
som de um teclado de órgão ensaiando uma canção suave, impregnada de quimeras
desconhecidas, famintas de muitas palavras. No instante seguinte, meu peito se
contraiu.
Minha alma em ebulição festiva se ajoelhou diante da sua
beleza. Estarrecido, eu homem vivido, de muitos anos nas costas, me desmoronei
num labirinto sem volta, para alcançar o tamanho da sua magia. A satisfação que
corria ligeira fustigou tudo dentro de mim. Aflorou por inteiro. Saltou, pulou
e encheu de variadas cores, os meus olhos esbugalhados da sua meiguice ímpar.
Ali, ao meu lado, finalmente, a minha metade que tanto procurava. As muitas
faces por mim desenhadas: a menina flor, a rainha, a fascinação se
materializando em arroubos e donaires. Igualmente essas afabilidades se
transformaram em tenros botões de rosas se abrindo ao mesmo tempo cheio de
efeitos especiais.
Como passarinhos inventados com penas vermelhas e amarelas
voando no azul do meu infinito e fazendo refletir no meu espelho da alma, o
arroubamento de me soltar por espaços nunca pisados, em troca de horizontes
desconhecidos e jamais imaginados me adoidei. Saí do chão. Tantos anos depois,
ainda a vejo assim. Imutável, inimitável. Pura como no esbarro da primeira vez.
Sinto seu medo se formando dentro do carro branco. Recordo seu perfil tímido,
meio que oscilante, quieto, refugiado ao lado do motorista que a trouxera para
o nosso bate papo.
Apesar do tempo passado, palmilhado, ainda consigo trazer à
tona, como num desses filmes de curta metragem, o deleite, a mesma galhardia da
animação poética que nasceu quando a vi naquele longínquo inicio de março,
faltando alguns dias para as velinhas do meu aniversario. Essa deidade ainda
tem o toque certo, o gracejo que me agitou e me fez tremer desde a base à raiz
dos cabelos. Ainda agora ela carrega no conjunto que compõem o seu corpo, a
nota musical que acolheu e agasalhou a minha alma e a deixou em regozijo de
festa. Essa mulher incrivelmente preserva intacto o recheio perfeito que guardo
a sete chaves, num lugar que só eu sei e mantenho esse segredo todo para que
ninguém ouse imaginá-la como eu a afiguro.
Apesar da nossa disparidade de idade, a minha metade da maça
docinha continua a irradiar a juventude no êxtase dos vinte e nove, em
contraste com meus sessenta e seis, lembrando que a diferença entre nós – em
nada influiu no carinho que a cada dia parece se tornar mais gigantesco.
Destoado dessa lacuna enorme, a áurea do meu amor persiste encantada. Transpira
num boom de pratos orquestrais ao tempo em que cria em torno de nós, um
instante mágico e único, uma enchança repressão de expectativas prontas para
explodir ao menor toque da sua voz. Ela é, pois, como o sol que se espalha.
Diria sem medo de errar, como o alimento divino que mata a minha fome em todos
os sentidos.
Meu amor é um porvir repleto de sensações nunca sentidas, de
emoções jamais vividas. Ela é poesia de arrebol. Mais que isso, um elo plural
ligando o hoje ao super amanhã. É ainda, num momento mais complexo, meu horizonte
bordado por asas aladas, a essencialidade do meu agora dentro de um ontem
magricelo, mas perfeito, como o côncavo e o convexo. A minha amada não é só uma
flor em botão. É mais que um nome ao acaso. É o licor das harpas, o vinho doce
temperando vontades. São, por fim, numa derradeira visão, os sons e os barulhos
de todos os enfeites. As noites e dias. As fantasias de passeios distantes. Um
amontoado de loucuras quebrando o próprio mimo.
Essa mulher é a sensação do infinito lá em cima, dançando
assinaturas corpóreas no caderno louco da minha vida insana. Ela é a fêmea
completa, a criança grande, a estrela de minhas brincadeiras. Ela é,
igualmente, a dona dos lábios rosados como seda aquecida pelo sol mormacento.
Eu a vejo, ainda, mais bela, a cada dia. Às vezes, nas minhas divagações, como
um natal com flocos de neve. Nessas horas, ela revolve meu estômago que se
contrai em pequenos nós de excitação. Ela é, ainda, o eco do meu grito
desesperado clamando incansavelmente por nosso AMOR.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Sertãozinho –
Interior de São Paulo. 23-4-2019
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