Péricles Capanema
Virou coringa a expressão
“ponto fora da curva”, tem sido empregada nas mais diferentes acepções. Umas
lisonjeiras; outras, nem tanto, envolvem censura, às vezes até carregam nota
depreciativa. Vou usá-la como censura. Boi do couro grosso, de há muito
acostumado a bordoadas, mesmo as mais inesperadas, posso bem levar mais umas
hoje. Paciência. Segue a vida.
Vem da curva de Gauss
(1777-1855), parece, sua origem. É uma fórmula matemática utilizada na
Estatística, que se exprime, graficamente, à maneira de um sino. A imensa
maioria dos eventos analisados estatisticamente cai dentro do sino. Um ou outro
fica fora da curva. É o dito ponto fora da curva. Por analogia, aplica-se aos
que se destacam, estão além do universo considerado. Daí “fulano é ponto fora
da curva em seu meio”. Sicrano, pelo contrário, desceu muito, ficou “ponto fora
da curva entre seus amigos de infância”. E assim por diante. Multiplicam-se ao
infinito as aplicações analógicas da expressão com raiz na Estatística.
Vou falar do decreto 9.758 de
11 de abril de 2019, triste ponto fora da curva — bagatela para os
superficiais, golpe sério para quem enxerga fundo. O diploma legal obriga os
membros do Poder Executivo a um só tratamento: senhor (claro, senhora,
senhores, senhoras). Por óbvio, exclui da esdrúxula imposição o Legislativo, o
Judiciário, comunicações com autoridades estrangeiras e outras exceções.
Vossa Excelência não pode
mais, agora é só senhor. Vossa Magnificência, excluído, basta o senhor. Vossa
Senhoria, rifado. Doutor, o simples e familiar doutor, banido, onde já se viu
chamar alguém de doutor em comunicação oficial? Já está muito bom o senhor,
para que mais? Ilustre, fora. Digno, expulso. Respeitável, idem. O tratamento
nivelador vale para todos, presidente, vice-presidente, ministros, reitores,
poupa ninguém. Majestade e alteza já haviam sido enxotadas faz mais de século.
Ficou mais simples, é bom, ruminam alguns. Caminhemos devagar, escapando das
armadilhas simplificadoras; nessa uniformizante e igualitária toada,
acabaríamos despencando logo nos buracos do cumpanhero e do
camarada para todo mundo. Camarada presidente.
Entro por atalho, um exemplo
conhecido vai cortar caminho. À vera, até envolto na legenda, tantas as versões
sobre os diálogos, ainda que no cerne concordantes. O protagonista é Talleyrand
(1754-1838), o “príncipe dos diplomatas”, causeur, brilhante
presença de espírito, inteligência superior. À mesa, em ambiente fidalgo,
tratava os assuntos da França e da Europa com rapidez, objetividade, leveza;
eficácia. Sob as formas refinadas, um auge de senso prático. Em jantares de
convívio ameno, depois de cortar a carne, um de seus recursos, com senso da
medida honrava a cada conviva ao regalar um pedaço. Com o pitéu, ia junto nas
palavras, no tom e no gesto certos o reconhecimento das superioridades devidas
à idade, à condição social e ao mérito. Postura sempre simples e natural; nunca
postiça ou enfatuada. A um eclesiástico destacado ou um príncipe: “Monseigneur,
me daria a grande honra de aceitar um pedaço?” A um duque: “Poderia
ter a alegria de lhe oferecer este pedaço?”. A um marquês: “Me
daria a alegria de aceitar este?” E assim ia, até o mais simples dos convivas.
Ambiente de século XIX, restos
do Ancien Régime, Paris, outros hábitos, sei bem. Resta uma
constatação, sem gosto e cultivo do senso dos matizes, sem apreço às variadas
fulgurações do espírito, inexiste civilização. O esplendor das formas constituía
ali expressão refinada da “unidade na variedade” — a palavra universo vem daí.
Busco em Isaac Newton: “A variedade na unidade é a lei suprema do
universo”. Variedades harmônicas. Não agridamos inconsideradamente a
variedade. Em resumo, o grande espetáculo de cultura do salão de jantar de
Talleyrand anos a fio, repetida com variações sem-número de vezes, animou
conversas, perenizou-se nas páginas das memórias do tempo, foi degustada em
biografias célebres. Chegou viva até nós com seu fulgor de alta civilização.
Formou personalidades.
Ao longo dos séculos
admirações e imitações sensatas foram nutridas por cenas como a acima descrita
em duas pobres pinceladas. Pedagógicas, alimentam o impulso da perfeição
pessoal (e social), assim como um exemplo de um santo nutre o desejo da ação
virtuosa. E aqui repito: precisamos buscar a simplicidade, mas fugir dos
simplismos e simplificações. É raro uma solução niveladora não padecer pelo
menos de simplismo; com frequência, empobrece o convívio; e, em decorrência
incoercível, a própria personalidade.
Amplio. Valores do Brasil
antigo levavam naturalmente a distinguir pessoas e situações com apenas um
gesto, uma palavra rápida. Faziam parte do ambiente cultural que encantou muita
gente de relevo que viveu por aqui. Sempre me impressionou o comentário de
Fernand Braudel, dos maiores historiadores do século XX: “Foi no Brasil
que me tornei inteligente. O espetáculo que tive diante dos olhos era um tal
espetáculo de história, um tal espetáculo de gentileza social que eu compreendi
a vida de outra maneira. Os mais belos anos de minha vida, eu passei no Brasil”.
O que ele viu, espetáculo de
gentileza social — de convívio — que fez entender a vida de forma diversa. Para
Braudel, o fundamental em um historiador era conservar o coração da criança
(maravilhar-se), surpreender-se com os fatos. E olhar o passado como uma
criança percebe as primeiras imagens. Entre 1935 e 1937, floriu no Brasil o
coração de criança do historiador, aperfeiçoou antenas.
Corta. Vamos ser realistas, o
Brasil já não está conseguindo fazer inteligentes os homens potencialmente
muito inteligentes. Porque está morrendo a nossa forma própria de enxergar a
realidade, sufocados os ambientes familiares, onde ela florescia. Corremos
risco iminente de já não termos o olhar que nos distinguia.
E aqui volto ao decreto 9.758
de 11 de abril. Esse malencontreux texto, para ser benévolo, é
ponto fora da curva, pois vem de um governo que já editou muitas medidas
saneadoras — teve muita coisa dentro da curva. Nivelador, simplificador,
aproxima-nos de autômatos. Vira as costas para o Brasil que cultivava matrizes
de juízo e conduta, apreciava diversidades, harmonizava-as, sabia estimular
umas a fortalecer as outras. E com isso criava condições para convívio
enriquecedor de personalidades.
No mesmo pacote do decreto
9.758 veio o revogaço. Sugestão: incluam o 9.758 no revogaço.
Título, Imagem e Texto: Péricles Capanema, ABIM,
16-4-2019
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