João Marques de Almeida
Ninguém se iluda com a bonomia de Jerónimo
de Sousa ou a simpatia de Catarina Martins. Eles lideram partidos
revolucionários que são hoje a principal ameaça à liberdade dos portugueses.
1. “Isto não é a União Soviética.” O “isto” é Portugal. A afirmação
foi feita por deputados socialistas e dirigida à ministra da Saúde do governo
de António Costa. Repito, para que não fique qualquer dúvida: deputados do PS
acusaram uma ministra do seu governo de querer tratar Portugal e os portugueses
como se fossem habitantes da antiga União Soviética. Não foram os partidos de
direita que o disseram. Nem sequer foi a “perigosa direita do Observador”.
Aliás, pela parte que me toca, fico satisfeito que haja deputados socialistas a
darem razão ao que muitos têm escrito várias vezes no Observador e noutros
jornais portugueses. Mais vale tarde do que nunca.
A comparação com a União
Soviética veio a propósito da tentativa, dirigida pelo Bloco de Esquerda e
obedientemente seguida pela ministra de afastar os grupos privados da saúde. É
igualmente simbólico, e muito preocupante, que esta frase tenha sido dita 45
anos depois do 25 de Abril e 28 anos depois do colapso da União Soviética.
Mostra o estado da política portuguesa. Os deputados do partido do governo
foram forçados a recorrer ao exemplo do império comunista, a mais longa
experiência de servidão e miséria humana do século XX.
Este episódio também nos faz
recordar que houve não uma, mas duas revoluções em abril de 1974. A revolução
democrática liberal, que esteve ameaçada durante o ano de 1975, e se consolidou
durante a década de 1980 com as revisões constitucionais e a entrada de
Portugal nas Comunidades Europeias. A segunda, a revolução comunista,
prosseguida pelo PCP, os outros partidos da extrema esquerda (alguns deles
deram origem ao BE), e alguns capitães do MFA, quase triunfou até ao 25 de novembro
de 1975. A revolução comunista foi derrotada, primeiro em Portugal e depois, em
1989 e em 1991, na Europa, mas não desapareceu.
Para justificar a sua entrada
em São Bento, António Costa contou uma enorme mentira aos portugueses: disse
que o PCP e o BE tinham derrubado os seus “muros de Berlim” e já não eram
revolucionários. Costa sabia muito bem que não era verdade, mas precisava de
justificar o apoio parlamentar necessário ao seu governo minoritário. Os
dirigentes comunistas do PCP e neocomunistas do BE continuam a ser o que sempre
foram: revolucionários que querem derrubar a nossa democracia liberal. Ninguém
se iluda com a bonomia de Jerónimo de Sousa ou a simpatia de Catarina Martins.
Eles lideram partidos revolucionários que são hoje a principal ameaça à
liberdade dos portugueses. Como nos disseram os deputados socialistas, se puderem
fazem de Portugal uma pequena “União Soviética.” Neles nada mudou desde 1975. E
Costa, em 2015, deu-lhes um certificado de bom comportamento sem eles terem
mudado.
Percebemos como começam as
alianças com os partidos revolucionários, mas nunca sabemos como vão acabar. Em
2015, o PCP e o BE eram apenas instrumentos úteis para o PS formar governo.
Quatro anos depois, são partidos revolucionários mais confiantes e mais
influentes. Esse aumento de influência foi alcançado à boleia do governo
socialista. Os entendimentos com partidos revolucionários têm consequências.
Não são inofensivos. Mário Soares, que percebia de revoluções, nunca se aliou a
eles quando esteve no poder.
A aliança com forças
revolucionárias e radicais está a dividir o PS, mesmo que isso ainda não seja
claro. No poder, é mais fácil esconder as divisões. Mas os socialistas estão a
dividir-se. A grande maioria dos militantes socialistas quis ir para o governo
em 2015, mas não quer fazer uma revolução comunista. Começam a perceber que
esse perigo existe. E, em privado, já reconhecem que Costa levou os neossoviéticos
para o poder.
2. Quando existe um governo com ministros que defendem políticas
soviéticas para a saúde, vale a pena ler o livro de Carlos Gaspar sobre Raymond
Aron, publicado no fim de 2018, Raymond Aron e a Guerra Fria. A
geringonça fez deste livro uma obra muito relevante do ponto de vista político.
Carlos Gaspar escreveu um
excelente livro sobre um pensador fora de série. Não é uma biografia de Aron,
mas uma excursão sobre o pensamento de Aron em relação aos grandes temas da
Guerra Fria, onde se inclui a revolução portuguesa de 1974 e a ameaça comunista
às democracias liberais do Ocidente. Tendo em conta a natureza ideológica do
confronto entre os Estados Unidos e a União Soviética, o livro oferece um
excelente retrato de Aron como intelectual e como um pensador liberal. O que
constitui de resto um exemplo para os dias de hoje.
O argumento do livro é claro e
muito bem construído, com uma escrita elegante e acessível. Carlos Gaspar
conhece com detalhe e erudição o trabalho de Raymond Aron. Um dos pontos mais
interessantes do livro é a identificação entre o autor e Aron, mais implícita
do que explicita, mas óbvia. Gaspar é um homem de centro esquerda, da área
socialista, tendo trabalhado com os presidentes Mário Soares e Jorge Sampaio.
No entanto, a sua admiração pelo liberalismo racional e pelo realismo político
de Aron transparece claramente no livro. Embora Aron estivesse longe de ser uma
figura típica da direita francesa (apesar do seu Gaullismo cético e crítico),
foi quase sempre detestado (e mesmo perseguido) pelas esquerdas, devido às suas
posições antissoviéticas e anticomunistas durante a Guerra Fria. Tornou-se
assim uma referência, senão mesmo um herói, para as direitas francesas e
europeias.
O livro apresenta
Raymond Aron como um herdeiro intelectual da boa tradição do Iluminismo: “O
pedagogo da sageza é um intelectual clássico, um humanista europeu na tradição
de Montesquieu, Burke e Weber.” Aron, o “liberal”, “nunca deixou de tomar
partido contra as ideologias do terror. “Assim, continua Carlos Gaspar, “foi
antinazi antes de ser anticomunista e empenhou-se sempre na defesa da liberdade
contra a tirania, da democracia pluralista contra as revoluções totalitárias e
dos Estados nacionais contra a dominação imperial.” Aron foi um intelectual
liberal no século das ideologias totalitárias.
O liberalismo de Aron
condenou-o muitas vezes ao isolamento intelectual e político, especialmente num
país como França, dividido “entre uma direita estatista e uma esquerda refém do
mito da revolução.” Tal como outro grande intelectual liberal do século XX,
Isaiah Berlin, Aron nunca teve medo de ir “contra a corrente”, afastando-se ou
criticando as suas famílias políticas. Como muitos na primeira metade do século
XX, começou na esquerda, da qual se afastou definitivamente no final da II
Guerra Mundial. Escolheu, assim, o Le Figaro, e não o Le
Monde, como o jornal das suas crónicas. Mas depois também se afastou da
direita nacionalista, defendendo a independência da Argélia.
A riqueza do
pensamento de Raymond Aron não o limita à tradição liberal. O realismo é
fundamental para entendermos a sua visão sobre a ação política. Aron vai buscar
o seu realismo a Max Weber e ao conceito de ética da responsabilidade. O facto
de um homem de esquerda ter escrito um livro a elogiar o percurso intelectual
de Aron no contexto da Guerra Fria mostra a ética de responsabilidade de Carlos
Gaspar. Mostra ainda a possibilidade e a necessidade de se construírem
consensos entre a esquerda e a direita moderadas sobre princípios fundamentais
das sociedades ocidentais, num tempo em que os radicalismos crescem. Julgo que
este é o maior contributo do livro de Carlos Gaspar. Quando se aproxima o
Verão, um tempo de férias e leituras, comprem e leiam o livro de Carlos Gaspar.
Vão gostar.
Título e Texto: João Marques de Almeida, Observador,
28-4-2019
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-