Filomena Martins
O anúncio de que podemos passar a tirar o
bilhete de identidade em 5 minutos e o relatório que confirmava que os números
das listas de espera tinham sido mascarados tirou-me do sério. E tenho provas.
Odeio que me tomem por parva.
Que nos achem burros. E que muitos continuem a cair nas manhas próprias de
vendedores de tapetes do grande bazar de Istambul. A técnica não é de agora, é
certo. Mas o anúncio de que podemos passar a tirar o bilhete de identidade em 5 minutos e o relatório do grupo independente criado pelo Governo que confirmava que os
números das listas de espera para consultas e cirurgias tinham sido mascarados
tirou-me realmente do sério. E fiquei ainda mais piursa porque parece que sou
das poucas.
Tirar o bilhete de identidade
em 5 minutos, em vez dos 15/20 atuais, diz o Governo?! Mas estão a gozar com
quem?! Se alguém tiver sorte com o funcionário de serviço, a coisa até pode
demorar menos de meia hora… a partir do momento em que nos sentamos na cadeira.
O problema é o antes e o depois. Por marcação, a última vez que tentei optar
por essa coisa tão moderna e prática, tinha vaga para quase dois meses depois.
Num local normal, é preciso tirar senha antes das 8h30 (o mais tardar acabam às
11h00) e depois aguardar duas a quatro horas na fila (com sorte) até aos tais
minutos finais. E o mesmo tempo (e processo) para ir levantar o documento. Mas
alguém ainda acredita nestas mentiras que nos impingem todos os dias?
Sobre as listas de espera vou
usar um outro exemplo concreto e pessoal. Peço desculpa, raramente o faço, mas
o caso é tão demonstrativo das aldrabices que têm sido feitas, que é a melhor
forma de explicar as coisas. A minha mãe está a aguardar uma cirurgia à coluna
há um ano (desde 16 de abril de 2018). É uma operação importante, já que o
problema nos discos e na cartilagem tem vindo a degradar as suas condições de
vida e a sua mobilidade no dia a dia. A neurocirurgiã que a seguia ainda se
ofereceu para o fazer no particular, coisa para seis mil euros. Sem
possibilidades financeiras para tal, nem seguro de saúde, nem sequer ADSE (como
a maioria dos portugueses que recorre ao SNS), decidiu aguardar o máximo de 6 a
9 meses que lhe deram de média para a intervenção num hospital público ou num
privado graças aos também famosos vales-cirurgia.
Ora vamos lá a essa maravilha
criada para resolver as inaceitáveis e intermináveis listas de espera que não
paravam de aumentar. Estaria a falar a sério agora, porque a ideia é realmente
boa, não se desse o caso do que vou contar a seguir. O primeiro vale surgiu em
tempo admissível, cinco meses, em setembro, mas com uma armadilha. Os três
hospitais privados à escolha ficavam todos acima do Douro quando a senhora
vive, sozinha, nos seus 75 anos, muitíssimo abaixo do Tejo. A recusa foi feita
com base nessa logística complicadíssima, devidamente explicada e aceite. Veio
o segundo vale em novembro, prazo também normal, reconheço, e já só tinha duas
possibilidades de opção além Douro… só que a outra era em Lamego! Já conformadas
com tal solução, questionamos sobre o acompanhamento, transportes e demais
questões práticas. A resposta foi que tal não existia. O vale é apenas para a
própria, pelo que era melhor tentar uma terceira vez.
Passou um ano e nada de
notícias. Altura para perguntar aos serviços o que se passava e fazer o ponto
da situação (não vos vou maçar com o tempo e os problemas até chegar aos contatos
necessários). A resposta veio acompanhada de outra grande invenção recente:
o portal do utente. Era só fazer o registo e estava lá tudo. À distância de um clique —
que todos têm e sabem a usar a Internet, como se sabe, sobretudo os mais velhos
e mais dependentes! — um acesso global ao nosso cadastro de doenças, vacinas,
operações, listas de espera e afins. Mas nada. Nem sobre a futura cirurgia
dela, nem sobre as anteriores. Ou seja, primeira mentira: o fantástico processo
não estava atualizado.
Queixa feita e alguma
eficácia, sejamos sinceros. Dois dias depois lá aparecia uma parte dos seus
registos médicos e a informação do seu número na fila, com detalhes: estava em
34º lugar para ser operada no hospital de origem (boa!), e, de acordo com os
processos do estabelecimento, seria atendida em “22 semanas (mais/menos 15
dias)”. Ou seja, lá para meio de setembro. Como o seguro morreu de velho e o
desconfiado ainda está vivo, toca a contatar o dito hospital. Após várias
tentativas e muita espera com música de elevador em alta voz, uma atenciosa
funcionária (sem ironia!) respondeu: pois que não acreditasse naqueles prazos,
que a única neurocirurgiã de serviço tinha ficado de baixa no primeiro mês de
gravidez e estaria assim até ao final do tempo em que podia ficar com o bebé,
contas feitas, voltaria apenas daqui a um ano e meio. Ou seja, segunda mentira:
aquilo que vem no portal da saúde não conta para nada.
Conselho recebido: ir ao
médico de família e tentar que este abrisse um novo processo para um hospital
de Lisboa. A táctica tinha a vantagem de ela poder ser operada numa zona
aceitável, mas uma enorme desvantagem, iria de novo para o fim da lista. Ia
tudo começar de novo. Aliás, é esta uma das falhas que o relatório independente
aponta à agora ministra da Saúde sobre a manipulação das listas de espera e
que a própria admite… como normal. Uma terceira mentira, claro: é apenas uma
manobra que reduz os números para apresentar ao eleitor descuidado.
Mesmo assim, a opção foi
levada em conta. De volta ao portal pessoal do SNS para fazer o que é suposto
ser simples: marcar uma consulta online para o centro de saúde local. Um
milagre, tendo em conta que por lá habitualmente os telefones tocam horas sem
ninguém atender, é sempre preciso fazer os dois quilômetros de distância para
ir pessoalmente tratar da marcação (de táxi, tendo em conta que as dificuldades
em andar se têm naturalmente agravado) e nunca nada é garantido. Ali não,
bastaram uns segundos à frente do computador. O SMS (algo com que qualquer
idoso também lida sem problemas, pois claro!) de confirmação foi recebido no
último domingo com a hora e o dia da consulta: seria logo na segunda, às 9h30.
Quarta mentira descarada: a eficácia é mesmo só para inglês ver — no centro não
havia qualquer agendamento, nem sequer sabem o que é isso do portal e das
marcações online e ainda por cima o médico de família também está de baixa por
tempo indeterminado. Foi apenas uma deslocação em vão, gastos e esforços
desnecessários e uma desilusão.
Pelo meio houve ainda mais um
telefonema para os responsáveis pelas listas de espera e o pedido de emissão de
um novo e terceiro vale. A resposta foi positiva, mas com o alerta que tudo é
automático e que virão hospitais não da zona de residência ou da de familiares diretos,
mas sim para onde o computador sortear e houver vagas. Que o mesmo é dizer,
amanhem-se: é pegar ou largar.
Vamos só resumir isto: o que
nos vendem como a última Coca-Cola no deserto, estas medidas modernas
anunciadas com pompa e circunstância, a imagem que nos dão de um país cool,
é uma farsa. Nada corresponde, de facto, à realidade: é só fazerem o teste.
Nada se adapta de facto, à realidade: é só falarem com as pessoas. Nada
funciona realmente: é tudo banha da cobra.
Num país a sério, uma ministra
acusada de alterar listas de espera não podia ser ministra. Num país a sério,
um governante que nomeia familiares não podia ser governante (em França, Fillon vai ser julgado por corrupção). Num país a sério, a Saúde era levada a
sério: e não se resumia a guerras ideológicas sobre
as PPP ou
a surdina entre o ministério e uma classe, como a dos enfermeiros, com ações
que se não são ilegais são pelo menos vingativas.
Vivemos num país de aldrabices
e de mentiras. Dão-nos gato por lebre todos os dias. Pintam-nos quadros
cor-de-rosa e criam realidades paralelas como se fossemos papalvos. E mesmo
assim, muitos continuam a engolir estas balelas como compram os produtos
milagrosos vendidos na televisão. E depois ou acreditam mesmo que funcionam ou
calam a vergonha de ter sido enganados. Adorava ser a única a ter queixas. Não
gosto é de ser a única a queixar-me.
Título e Texto: Filomena Martins, Observador,
25-4-2019
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