Henrique Pereira dos Santos
Frequentemente, quando tento
um mínimo de racionalidade na conversa sobre o tempo do Estado Novo (não, não é
sobre o Estado Novo que escrevo, é mesmo sobre a sociedade no tempo do Estado
Novo), usando para isso informação concreta, sejam dados primários (as
estatísticas sobre a matéria que, no caso do mundo rural, até são a base da
minha tese de doutoramento que é sobre a evolução da paisagem rural do Portugal
continental ao longo de todo o século XX), sejam os trabalhadores de terceiros
que se debruçaram sobre o assunto (Pedro Lains, por exemplo, cuja falta de
simpatia pelo Estado Novo é inquestionável), o resultado não é uma discussão
racional sobre os argumentos de cada um, mas acusações de branqueamento, de
apoio, de glorificação do Estado Novo. Seguido da vulgata que um dos
comentários sobre o meu post anterior exemplifica bem: "Neste seu
panegírico do salazarismo, não dedica uma linha que seja aos presos políticos?
Ao campo de concentração do Tarrafal e aos que lá morreram por discordarem do
regime? Às cadeias dedicadas a quem discordava do regime e às visitas noturnas
aos opositores do regime? Às "eleições" onde até os mortos votavam?
Nem uma linha sobre o assassinato de Humberto Delgado? E sobre o assassinato do
estudante Ribeiro dos Reis? Foi um dano colateral? E a guerra colonial, não
fala nada?".
Aparentemente, para dizer que
é simplesmente falso que o Estado Novo tenha feito uma opção a favor do
analfabetismo, fundamentando na comparação dos números entre o início do Estado
Novo e o seu fim (que ainda se poderia atribuir a uma evolução da sociedade
apesar do Estado Novo e não a um esforço do Estado Novo no sentido de acabar
com o analfabetismo) e reforçando a fundamentação com os dados sobre o
investimento em escolas, em formação de professores, em mecanismos para obrigar
as crianças a ir à escola e por aí fora, eu teria de previamente escrever um
libelo acusatório a falar dos presos, dos mortos, dos torturados.
Ora eu não tenho de estar
sempre a reafirmar a minha vigorosa oposição a todos os regimes ilegítimos, antidemocráticos,
repressivos para falar de cada problema social, eu tenho simplesmente de falar
desse problema social da forma mais informada e racional que me for possível e,
na medida em que isso se cruzar com a natureza do regime, aí sim, referir o seu
carácter ditatorial.
Mais que isso, eu tenho um
imenso respeito por todos os que, com a sua oposição ao regime, ajudaram a
criar as condições para que ele acabasse, em especial aos que foram presos,
torturados e mortos, mesmo que, em muitos casos, esses presos, torturados e
mortos não fossem de facto combatentes da liberdade mas combatentes por uma
ditadura diferente: a falta de amor que muitos deles demonstraram pela
liberdade não lhes retira um átomo ao papel favorável à liberdade que desempenharam.
Mas ainda que eu aceitasse que
deveria primeiro prestar uma homenagem a todas estas pessoas antes de dizer
simplesmente que o maior período de convergência econômica com os países
desenvolvidos e o período de maior crescimento da riqueza do país nos últimos
200 anos é o período de vai da adesão à EFTA, nos anos 50, até ao primeiro
choque petrolífero, em 1973, em pelo Estado Novo, sobrar-me-ia uma pergunta: e
por que razão teria de ser assim apenas para o Estado Novo?
De onde vem a legitimidade do
silêncio sobre o sofrimento dos muitos milhares (entre meio milhão e um milhão)
dos que foram expulsos das suas terras estritamente por serem brancos (há de
outras cores neste grupo, é certo, em especial grupos igualmente mal queridos
pelos novos poderes instalados, com destaque para os de origem indiana, mas a
maioria foi mesmo por serem brancos)? Talvez com a excepção de Helena Matos, e
poucos mais, onde estão os artigos de imprensa que respeitem o sofrimento
dessas pessoas?
Sim, eu sei que a conversa é a
desqualificação moral sob a acusação de que eram colonialistas, mas essa
conversa é falsa, colonialista era o Estado Novo, estes de que falo eram, na
sua maioria, pessoas normais que viviam vidas normais em terras que
consideravam suas, há duas, três, quatro gerações, sem qualquer ligação à terra
dos seus ascendentes, sem qualquer vontade de sair da pátria que consideravam
sua (muitos deles claros simpatizantes, e às vezes militantes, da independência
da terra que consideravam, legitimamente, sua), alguns foram mortos, outros
foram roubados de tudo o que tinham e quase todos foram postos fora da sua
terra pelo crime de terem uma pele mais clara.
Onde estão as longas
introduções sobre os mortos e o sofrimento destas pessoas?
Não falo de mim, o meu pai foi
adulto para África, foi funcionário colonial durante quase toda a sua vida, mas
sempre considerou que a sua terra era aqui e preparava-se para se reformar e
voltar à terra que considerava sua (provavelmente aceitando que alguns dos
filhos não quereriam sair das terras que consideravam suas, eu era demasiado
novo para ter ideias claras sobre o assunto mas apesar disso ainda hoje não
consigo responder de forma clara quando me perguntam de onde sou ou qual é a
minha terra, não tendo qualquer pinga de simpatia por qualquer nacionalismo), e
fui um privilegiado, mas para muitos outros, a esmagadora maioria, a situação
não era esta, eram mesmo angolanos, moçambicanos, guineenses que nunca
conheceram outra terra que não essa, independentemente de serem brancos,
amarelos, indianos, pretos, mulatos e todos os tons de pele em que se queira
pensar.
Respeitar os perseguidos pelo
Estado Novo não é repetir os estribilhos gastos da propaganda, respeitar os
perseguidos pelo Estado Novo é procurar ter um espírito suficientemente crítico
sobre as ideias e as práticas inimigas da liberdade, independentemente dos
desempenhos dos regimes sobre questões sociais ou econômicas, o que pressupõe o
esforço de informação e racionalidade que é necessário para conhecer as
sociedades tal como elas foram e não tal como a propaganda, de qualquer dos
lados, as descreve.
Infelizmente, no espaço
público em Portugal, não há muito espaço para que se possa dizer,
tranquilamente e sem receio de ser acusado de tudo e mais um par de botas, que
o tempo do Estado Novo não era o que frequentemente se diz que era, e que a
democracia trazida pelo 25 de Abril também trouxe com ela muitos inimigos da
liberdade, como seria sempre inevitável.
Dizer isso não afeta
minimamente a defesa da superioridade da democracia: a existência de liberdade.
Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas,
28-4-2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-