Alberto Gonçalves
Um punhado de criaturas que tem sonhos
eróticos com a boina do “Che” e os fatos de treino dos sobas de Caracas não
constitui exatamente um “movimento”, digno de alerta na imprensa e tumultos na
rua.
Um “grupo de cidadãos” criou
um “movimento apartidário” para exigir “uma campanha limpa”, leia-se “sem
mentira e desinformação”. Os subscritores, assaz preocupados com o que acontece
na América e no Brasil, pretendem “bloquear e denunciar” as “notícias falsas
nas redes sociais portuguesas”, de modo a votarem “sem a intoxicação de quem
despreza a democracia”. Isto é o que vem no “Público”. (E
no Expresso e no Diário de Notícias, NdE)
O que não vem no “Público” é
que o “grupo de cidadãos” que é uma dúzia de “personalidades” habituais em
programas televisivos de variedades, que o “movimento apartidário” corresponde
ao arco do poder que vai do PS atual ao BE de sempre, que a preocupação deles
com os EUA e o Brasil não se estende à Venezuela ou à Coreia do Norte, que a
denúncia e o bloqueio são métodos de regimes totalitários e indivíduos com
patologias, que o desprezo dessa gente pela democracia já a intoxicou há muito e
que o problema não são as “notícias falsas” – invariavelmente produzidas à
“direita” –, mas as restantes.
Um primeiro problema, se a
palavra não é exagerada, prende-se com as notícias que não chegam a sê-lo. Um
punhado de criaturas que tem sonhos eróticos com a boina do “Che” e os fatos de
treino dos sobas de Caracas não constitui exatamente um “movimento”, digno de
alerta na imprensa e tumultos na rua. No máximo, formam um caso de estudo
psiquiátrico. No mínimo, um rancho de mimados convencidos de que o mundo lhes
deve atenção e obediência a um “pensamento” (força de expressão) que ambicionam
único. Se a imprensa teima em promover irrelevâncias, a imprensa que se divirta
enquanto pode.
Porém, um problema imensamente
maior que as notícias falsas são as notícias verdadeiras. É, por exemplo,
verdadeira a notícia de que existe uma Associação dos Amigos dos Cemitérios, e
que a dita se preparava para celebrar (hurra!) um protocolo com a câmara de
Lisboa para, cito, “dinamizar iniciativas nos cemitérios da cidade”. Graças a
um vereador do PSD, João Pedro Costa, soube-se igualmente que os Amigos dos
Cemitérios são de facto amicíssimos do PS e, fatalmente, familiares do sr.
César dos Açores, que só à sua conta enfiara três ou quatro nos corpos sociais
daquela prestimosa associação. Com franqueza, perdi-me algures: não faço ideia
se os parentes do sr. César, indivíduo abaixo de qualquer suspeita, se
reproduzem como cavalos-marinhos ou se cada parente acumula 15 ou 16 cargos
públicos. Certo é que, após viver à custa dos vivos, o clã decidiu alargar o
expediente aos mortos. Expandir o “core business”, julgo que se diz.
E, novo exemplo, é verdadeira
a notícia de que o “eng.” Sócrates desatou a insultar o ministro brasileiro da
Justiça, depois de este ter referido vagamente o processo judicial da
ex-criança que sonhava com ventoinhas. De caminho, ouviu escusadamente de
Sérgio Moro um “não debato com criminosos pela televisão”. O “eng.” Sócrates,
que fingiu tomar as dores do falecido estadista Lula, ainda não percebeu, e se
calhar nunca perceberá, que, dadas as circunstâncias, o único comportamento que
o beneficia é a ausência, na Ericeira ou em Vladivostok. Quanto à TVI, que lhe
dá enorme palco para os trambolhões, sou eu que não percebo se é cúmplice ou
coveira do homem.
E, também integrada no
promissor estreitamento de laços com o “país irmão”, é verdadeira a notícia de
que, numa passeata do Bloco de Esquerda, as filhas do empresário Camilo
Mortágua cantarolaram umas rimas ao gosto popular que apelavam à morte do sr. Bolsonaro,
e que a rábula revisteira causou relativo escândalo nos Facebooks do costume.
Não vejo por quê. Se as meninas Mortágua abominam o presidente do Brasil, é da
mais elementar sinceridade desejar a respectiva morte em ritmo de desgarrada. E
se um autocarro as estrafegasse durante a cantoria eu não perderia dois
segundos a lamentar a tragédia.
E, sem sairmos da semana
vigente, é verdadeira a notícia de que sessenta mil pessoas, mobilizadas pelas
igrejas católica e comunista, assinaram uma petição contra a abertura dos
centros comerciais ao Domingo. Nuns casos, será por causa das famílias.
Noutros, por causa dos trabalhadores. Era interessante descobrir o momento em
que umas e outros concederam a uma pequenina amostra da população o direito de
opinar em seu nome. Assim de repente, lembro-me de algumas famílias que
preferem ocupar o ócio nos shoppings do que na missa, e de alguns trabalhadores
que preferem ocupar o Domingo a trabalhar, possivelmente para evitar a família,
os shoppings ou a missa. De resto, além do infantil ressentimento face aos
símbolos do capitalismo, não há razão para fechar os centros comerciais e os
hipermercados e manter abertos museus, campos da bola, restaurantes, hotéis,
bares, pavilhões “multiusos”, portagens e, claro, igrejas, católicas e
comunistas. Em prol da coerência, sessenta mil pessoas, com família e trabalho,
agradeceriam. Os nove milhões restantes calam e, pelos vistos, consentem.
E por fim é verdadeira a
notícia de que, no 45º aniversário de “abril”, voltaram as comemorações, as cerimónias,
os discursos, as “lutas”, as “conquistas”, os cravos, os Zecas, as “Grândolas”
e toda a tralha arrastada desde 1974. O folclore do 25 de Abril assemelha-se a
um teste de decomposição de que os cientistas se esqueceram e deixaram o objeto
de estudo apodrecer há décadas: os fungos são tantos que fundaram uma sociedade
complexa no conteúdo e desagradável na aparência.
O problema, insisto, não são
as notícias falsas. O problema é Portugal parecer mentira.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
27-4-2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-