Fábio Gonçalves
Pelo menos uma vez na sua história, o
Brasil exige ser governado de baixo para cima, das famílias para Brasília — e
não o contrário, como de hábito. É um ultimato aos políticos. E não há nada
mais democrático que isso
Era um domingo normal no Palácio. No
derredor, céu careca de nuvens, o sol do Cerrado envergando a vegetação, as
cotovias chilreando gostoso no jardim presidencial. No quintal, em torno da
piscina e em companhia dum vira-lata miúdo, cor caramelo, Laurinha, assumindo a
sério o papel de guerreira, simulando galope num alazão branco, batalhava com o
irmão Carlos, que, em regata e bermuda, se fartava de rir, ora fugindo da
pequena, ora fazendo-lhe cócegas. A este tempo, o presidente e a primeira-dama
dejejuavam:
— Ô Michele, no tocante ao recheio do
pão, me passa aí o leite condensado, tá ok?
Lançando um olhar duro de reprovação,
Michelle advertiu:
— Olha a dieta, Jair. O médico já
reclamou. Você vai me pegar uma diabetes, homem!
Deu a bronca mais por protocolo, por
desencargo, pois, muito consciente do gênio teimoso do marido, sabia que era
esforço vão.
— Pô, Michelle — reiniciou Bolsonaro,
assumindo tom e gestos de bonachão, de piadista. — Eu já não fumo, não bebo,
malemá posso andar de motoca, muito a custo vou ao estádio. Se eu tiver que
largar também meu leite condensado, aí eu morro infeliz. Dá o leite moça aí,
mulher. Hahaha.
Fez-se assim, como de costume.
Eis que vibra o smartphone do
presidente. É o 03, o Dudu, conforme registrado nos contatos. O filho
mandou-lhe uma imagem pelo WhatsApp. Jair puxou os óculos do Bolso e meteu-os
na cara, meio tortos.
— Jair, meu amor, larga um pouco desse
celular — ralha a mulher. — Relaxa, Jair, é domingo.
— Só um minutinho, Mi, é o Eduardo.
Pode ser coisa importante, cuestão aí de Estado.
A mulher acede, a contragosto.
“Pai, tá acontecendo. Por incrível que
pareça tá acontecendo. Saca só as fotos que o pessoal tá mandando no meu
Twitter.”
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Rio de Janeiro, 15-3-2020, foto: José Raphael Berredo/O Globo |
Boquiaberto, o presidente tirou os
óculos, deixou à mostra os olhos azuis lacrimejados, fitou com profundidade a
primeira-dama, e disse-lhe, tremendo a voz:
— Michelle, o povo está nas ruas.
Era como apostar num título mundial do
Palmeiras. Estando o país ameaçado pela praga chinesa, metade dos patrícios em
quarentena, todas as vozes do rádio e da TV recomendando isolamento, políticos
ameaçando remir o chicote no lombo de quem fosse tagarelar nas praças, num
cenário assim, ninguém podia crer que o protesto vingaria. Mesmo o presidente,
grande beneficiário deste ato, ato cujo mote era a defesa do seu governo, mesmo
ele, na semana anterior, havia sugerido que a aglomeração fosse adiada — e os
principais organizadores, fiéis aos seu comando, acataram o dito. Era certo e
líquido que as manifestações minguariam.
Pois, vendo aquele milagre, como se
mordido por um bicho, Jair levantou de um salto, correu ao quarto para se
vestir adequadamente — quer dizer, meter uma camiseta da CBF e um jeans
qualquer — gritou para que Carlos tomasse as rédeas do Twitter — “Compartilhe
todas essas fotos, meu filho” —, desceu desabalado as escadas, e deu um beijo
na testa da Laurinha.
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Brasília, 15-3-2020, foto: TV Globo/Reprodução |
— Jair, cuidado com os idos de março.
Eles estão doidos para te derrubar. Você sabe. Não facilite, pelo amor de Deus.
E mais: você pode estar doente. Pode ter gente adoentada na turba. E, mesmo que
não tenha, caso amanhã surja alguém com a pestilência, dirão que a culpa foi
sua. Como diz a religião, sê prudente. Cuidado com os idos de março.
Essas palavras fizeram doer o coração
do mandatário. A esposa tinha razão. Qualquer deslize e ele estaria na
berlinda. Os conspiradores estão por todos os lados, e cada vez mais
indiscretos, mais assanhados. Jair, trajado à militante, achou-se irresoluto.
Nesse instante tocou mais uma vez o
celular. Novamente era o Dudu. Uma massa estava descendo para a Esplanada,
avisava o filho.
Ao fundo, Jair ouviu um marchar, uns
coros, um bulício de multidão. Alguma coisa se podia discernir. As pessoas
bradavam “Mito, mito, mito”.
De si para si, como para dissolver a
dúvida, ele disse as palavras de César: “O covarde morre duas vezes”. Enfim,
comovido com o aproximar-se dos populares, saltou para a mulher, deu-lhe um
beijo na testa, saiu acompanhado de um séquito de seguranças e, maravilhado,
topou com uma maré auriverde correndo em sua direção.
*****
Deve ter sido assim a manhã do
presidente. E, como dizem os italianos: se non è vero, è ben trovato.
Como seja, o fundo de verdade está
nesta tensão, nessas duas forças que ombreiam, decerto, na alma do Capitão: de
um lado, alguma coisa que se pode chamar de “dever de Estado”, “liturgia do
cargo”; do outro, os ímpetos dos tempos de campanha, de governante popular,
governante cuja força se assenta menos nas instituições — nada raro usadas para
lhe atrapalhar — que no povo que lhe conferiu o voto, a confiança.
Estivéssemos na Roma dos senadores, de
Brutos, Cícero e Pompeu, a multidão proclamaria Bolsonaro imperador. Aliás,
tradicionalmente era assim que os líderes eram escolhidos, por aclamação. E
chegar ao poder desta maneira não é sinal de populismo, como se diz
pejorativamente, na verdade denota popularidade, no sentido de afinidade de
anseios entre o governante e o povo. E aqui há como que a perfeição do sistema
representativo.
Não que Bolsonaro seja unanimidade.
Ora, ninguém jamais foi. Entretanto, é inegável que há uma fatia do eleitorado
nacional, da mais ativa nas discussões públicas, que deposita no Capitão talvez
a última esperança de que as coisas possam mudar pela via política.
Acreditou-se nisto no pleito de 2018. Essa fatia de cidadãos politicamente
ativos, os mesmos que afluíram às ruas em 2015, 2016, 2018 e 2019, meteu na
cabeça que não vai sossegar enquanto os poderosos não entrarem na linha,
enquanto não largarem os conchavos, as articulações, as chantagens, e, de uma
vez por todas, aprenderem que o Brasil, pelo menos uma vez na sua história,
precisa ser governado de baixo para cima, das famílias para Brasília — e não o
contrário, como de hábito. Ou seja, é um ultimato, mesmo. E não há nada mais
democrático que isso.
Jair, pois, foi receber o povaréu na
Esplanada. E cumprimentou os circunstantes, fez coro aos seus clamores, chutou
o Pixuleco, desfraldou a bandeira nacional e fê-la tremeluzir, correndo de um
lado a outro como um menino. Em resumo, foi o Jair eleito, foi aquele homem em
quem o povo se reconheceu.
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Brasília, 15 de março 2020, foto: José Cruz/Agência Brasil |
Pois tudo isso magoou profundamente os
jornalistas da oposição – quer dizer: todos os jornalistas dos grandes canais,
Globo, Estadão, Folha, Veja, TV Cultura, Band, a caçula CNN.
Tome-se a Vera Magalhães como símbolo
do grupo. A âncora do Roda Viva, inimiga mordaz do presidente, tuitou uma
dezena de mensagens implorando que os líderes do Parlamento e do Supremo dessem
um golpe de Estado e tirassem Jair do seu cargo. Para ela — corroborando a tese
de um colega —, o mandatário incorrera em irresponsabilidade sanitária, coisa
de que ninguém jamais ouviu falar, mas que seria motivo para o mais célere dos
impeachments, para ontem. Na visão da Magalhães, toda a nação será dizimada pela
peste porque alguns milhares de pessoas foram se manifestar em favor do
presidente. Bolsonaro, o irresponsável, teria selado o destino da pátria.
Ademais, segundo o entender da
colunista do Estadão, o ato mesmo, no que cobrava juízo dos congressistas e
togados, era um golpe, um atentado à Constituição, a prostituição da República.
Tudo isto no mais plastificado tom de
jornalista profissional, isento, científico.
Quer dizer, uma massa considerável sai
às ruas colocando a própria saúde em risco, mesmo desobedecendo os conselhos do
presidente, e, ao invés de enxergar nisso mais um passo rumo ao amadurecimento
da nossa democracia, os medalhões — e medalhinhas — da imprensa, num coro
ensaiadíssimo, preferiram bradar que é um abuso, tirania, início do
totalitarismo nazista — que, vale dizer, eles vêm anunciando desde 2017.
****
No fim do dia, passado todo o
furdunço, quando as últimas luzes da capital se já apagavam — a não ser na
mansão do Maia, que, regado à vinho caro e ao som de jazz e bossa nova, deve
ter convidado toda a malta para debater a nova “crise” — no jardim do Palácio,
sob uma lua branca como leite, o presidente, de chinelo e camiseta de time, sentado
no chão, ao lado do filho Eduardo, sendo lambido pelo vira-lata da família,
conferia, pelo celular, o esperneio dos adversários. E ria, gargalhava.
Dali um pouco eles foram para cama,
cada qual para o seu quarto. Bolsonaro passou no de Laurinha, para conferir se
a menina estava coberta. E estava. Depois, foi para o seu aposento. Encontrou a
mulher ainda acordada, à sua espera:
— Michelle, descul...
— Não precisa dizer nada. Você é o
nosso herói.
Título e Texto: Fábio Gonçalves,
Brasil Sem Medo,
16-3-2020, 17h29
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