Por mais que os seus apoiantes julguem o
sr. Ventura um perigo para a esquerda, o sr. Ventura é o estereótipo da
“direita” com que a esquerda sempre sonhou. E é uma garantia para o “sistema”.
Alberto Gonçalves
Há dias, escrevi nas famosas
“redes sociais”: “Na CMTV está um candidato presidencial a dizer que um
futebolista não tocou com a mão na bola. Portugal é grande.” Esta
insignificância teve perto de 100 comentários, boa parte deles a lembrar-me que
o prof. Marcelo chegou a Belém após participar em variedades televisivas desse
tipo, que o prof. Marcelo também fala de futebol e se deixa filmar com
cachecóis alegóricos, que o prof. Marcelo é igualmente pródigo em comentar
banalidades confrangedoras, e que o prof. Marcelo, em suma, não é melhor do que
o sr. Ventura.
Por acaso, concordo: o prof.
Marcelo não é melhor do que o sr. Ventura. Só não digo que ambos são casos de
miséria porque há para aí umas leis que proíbem a ofensa de Sua Excelência, o
Senhor Presidente da República. Senão dizia. A mim, porém, a circunstância de
achar igualmente lamentável o desempenho público dos dois dá-me para não gostar
de nenhum. Aos apoiantes do sr. Ventura, os mesmos pressupostos permitem-lhes
tirar conclusões bastante distintas: se o prof. Marcelo não é melhor do que o
sr. Ventura, eles naturalmente apreciam – perdão, veneram – o sr. Ventura. E
não reparam, ou fingem não reparar, na contradição. Aliás, os apoiantes do sr.
Ventura são óptimos a apoiar o seu líder espiritual. E péssimos a reparar nas
inúmeras contradições que o líder espiritual arrasta.
Para eles, é natural que o sr.
Ventura reclame o regime de exclusividade dos deputados e o deputado do Chega
acumule rendimentos provenientes de duas empresas privadas.
Para eles, é natural que o sr.
Ventura prometa largar os bitaites futebolísticos “em março” e na prática os
prolongue por tempo indeterminado.
Para eles, é natural que o sr.
Ventura se afirme inequivocamente contra a corrupção e inequivocamente esteja a
favor de uma instituição que é vasculhada pela polícia semana sim, semana não.
Para eles, é natural que o sr.
Ventura denuncie a proximidade do prof. Marcelo ao banqueiro Salgado e disfarce
mal a sua proximidade ao sr. Vieira do Benfica.
Para eles, é natural que o sr.
Ventura condene o “sistema de extorsão fiscal transformado em terrorismo de
Estado” e seja funcionário (hoje de licença) dessa “máquina de assalto ao
cidadão” que é a Autoridade Tributária.
Para eles, é natural que o sr.
Ventura afirme que trabalhava no fisco para perseguir os “grandes devedores” e
ande ao serviço do tal sr. Vieira, que é dos maiores.
Para eles, é natural que o sr.
Ventura critique os subsídios exceto quando os ditos venham a jeito para
patrocinar os “média” que o empregam e correspondem à vontade do chefe que lhe
paga.
Para eles, é natural que o sr.
Ventura recite estrofes sobre a importância da educação e assine romances
deliciosamente analfabetos.
Para eles, é natural que o sr.
Ventura exalte o primado da lei, para uns assuntos, e deseje reescrever a
Constituição, para outros.
Para eles, é natural que o sr.
Ventura se preocupe com o terrorismo islâmico enquanto rabisca teses aflitinhas
com a “estigmatização das minorias” que a prevenção do terrorismo pode
produzir.
Para eles, é natural que o sr.
Ventura agora defenda a polícia e antes abominasse a “expansão dos poderes
policiais”.
Para eles, é natural que o sr.
Ventura que propõe mutilar (química ou, confessou só meio a brincar,
literalmente) pedófilos seja o sr. Ventura que lamentava o “populismo penal”.
Para eles, é natural que o sr.
Ventura meta os pés pelas mãos ao tentar explicar as brutais contradições
acima.
É verdade que os apoiantes do
sr. Ventura são bastante ativos. É vê-los nas “redes” e nas “caixas” de
comentários, a proclamar a vitória do sr. Ventura em debates em que o sr.
Ventura aplicou os métodos aprendidos na CMTV e berrou sem parança nem grande
conteúdo. Ou a desvalorizar os cépticos nas capacidades do Mestre, para eles
gente “que não percebe o que está a acontecer”. Eu percebo que, embora
brilhantes (eles percebem tudo), os apoiantes do sr. Ventura não são muito
exigentes.
A ver se nos entendemos, eu e
os apoiantes do sr. Ventura que não anseiam por dois Salazares, os que não padecem
de frémitos patrióticos, os que não batem continência à passagem da “alma”, da
“raça” ou da “identidade” lusitana, e os que não pairam por ali à cata de um
eventual emprego. Com os restantes, partilho o nojo a um país subjugado à
esquerda (não digo corrupta na medida em que dispenso redundâncias), e a um
regime que oscila entre os compadrios e as alucinações, e a uma república
dominada por criaturas incapazes de limpar a baba. Ao contrário deles, não
contribuo para que a subjugação seja permanente, ou no mínimo demasiado longa.
É que, por mais que os seus
apoiantes julguem o sr. Ventura um perigo para a esquerda, o sr. Ventura é o
estereótipo da “direita” com que a esquerda sempre sonhou. É um maná para a
esquerda que o guru da “direita” seja assim débil e entalado em incongruências.
E é uma garantia para o “sistema” que o paladino “antissistema” seja assim
fácil de atacar, de caricaturar e de reduzir a meia dúzia de clichés, alguns
até razoáveis, todos amanhados à pressa. Não custa admitir o imenso vazio do
lado de cá do PS: custa preenchê-lo com a cabeça oca do sr. Ventura, que acaba
por prestar um favor à esquerda, ao sistema e à república que promete destruir
– e começa por prestar diversos favores a ele próprio. Certo é que o sr.
Ventura ocupou o espaço de uma oposição necessária e que, por isto ou por
aquilo, abdicou de existir. Perdeu-se uma oportunidade, ganhou o oportunismo:
eis o “sistema” a funcionar.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
7-3-2020
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