Farto de ver excertos de 79 séries da
Netflix e anúncios para surdos na CMTV, saí à rua para respirar. Cruzei-me com
irresponsáveis que não andavam na rua para respirar. Apeteceu-me logo
espancá-los.
Alberto Gonçalves
Alberto Gonçalves
Dia 1 (da quarentena). A
conselho da senhora da DGS, tentei substituir a ida ao supermercado pela visita
ao horto de um amigo. Descobri que não tenho amigos, ou que os amigos não têm
hortos, ou que os hortos não têm papel higiênico e latas de atum.
Dia 2. Fui ao supermercado
abastecer-me. É vergonhosa a quantidade de gente que por lá andava sem comprar
papel higiênico e latas de atum. Segui o exemplo do senhor presidente e
aproveitei para fazer testes ao covid-19 e lavar peúgas. Os testes não
consegui, mas lavei para aí uns trinta pares.
Dia 3. O vírus alastra no
mundo. Há tantos infectados em Espanha e na Itália, meu Deus. Maldito Trump! Vi
um casal de vizinhos a caminhar lado a lado e estive para os insultar. Arrumei
peúgas e fotografei um bolo para publicar no Instagram. Um especialista garante
que os próximos dias serão decisivos para a evolução do vírus.
Dia 4. Assinei a tal Netflix.
No fundo, não se está mal: vi bocados de três séries e espreitei quarenta e duas vezes à
janela para detectar movimentos na rua. Passou uma senhora com um saco da
mercearia. Mas esta gente é toda louca? Espetei nas “redes” com um boneco
fofinho a recomendar a todos que fiquem em casa. Não facilitem!
Dia 7. Comecei a praticar ioga
para tirar uma fotografia e publicar no Instagram. Arranjei uma hérnia, mas não
vou chatear o SNS (Deus o abençoe).
Dia 9. Vi a conferência das
senhoras da saúde. Aquelas mulheres são incansáveis. Eu também não me canso de
as ver diariamente. A senhora da DGS diz para não usar máscara por causa da
“falsa sensação de segurança”. Não quero nada disso para mim, logo não usei
máscara quando fui à rua passear o cão. Vi transeuntes sem cão. A falta de
civismo deixa-me furioso.
Dia 10. Fui à varanda bater
palmas aos profissionais de saúde. Acrescentei três vivas aos nossos
maravilhosos líderes.
Dia 12. A senhora da DGS diz
que não vale a pena aconselhar máscaras porque não há suficientes. Calha bem:
não tenho nenhuma. Fui exercitar-me lá fora e deparei-me com pessoas que
caminhavam sem fazer exercício. Doidos! Todos doidos! Como o meu aviso anterior
não terá funcionado, publiquei um pequeno ralhete nas “redes” a ver se ganham
juízo. Fiquem em casa, inconscientes de um raio!
Dia 13. Comecei a ler um livro
para tirar uma fotografia e publicar no Instagram. A julgar por dois
parágrafos, a Inês Pedrosa escreve que é um mimo.
Dia 16. Gosto muito de
acompanhar as mensagens dos “pivôs” no fim dos “telejornais” – são, em
simultâneo, palavras bonitas, corajosas e motivadoras. Fui ao supermercado
buscar refrigerantes, batatas fritas e um frango assado. Acreditam que havia
velhos com o carrinho cheio de porcarias supérfluas? Enquanto não enfiarem umas
dúzias na cadeia, não aprendem. Fala-se em soltar os presos mais idosos. Acho
um belo gesto.
Dia 17. O dr. Costa jura que
não nos falta nem faltará nada. Este homem nunca mente: de facto, não me falta
papel higiênico nem atum. Um especialista garante que os próximos dias serão
decisivos.
Dia 18. Comecei a aprender
fagote para tirar uma fotografia e publicar no Instagram. Quando isto passar
tenciono perceber o que é o fagote e, talvez, adquirir um.
Dia 19. Fui à varanda bater
palmas aos profissionais de saúde, aos nossos maravilhosos líderes e ao zelo da
polícia. Um vizinho incentivou-me: “Cala-te, palhaço!”. Eram 5 da manhã.
Dia 23. As senhoras da saúde
falaram imenso sobre curvas, picos e planaltos. Achei lindo.
Dia 25. Farto de ver excertos
de 79 séries da Netflix e anúncios para surdos na CMTV, saí à rua para
respirar. Cruzei-me com irresponsáveis que não andavam na rua para respirar.
Apeteceu-me espancá-los fisicamente mesmo ali. Espanquei-os verbalmente depois,
numa página do Facebook dedicada a denunciar tamanhos assassinos.
Dia 26. O dr. Costa chamou
repugnante a um ministro holandês que duvidou da credibilidade (e da
honestidade) espanhola (e da portuguesa) para pagar dívidas. Numa frase,
mostrou ao nazi que não precisamos dele para nada. Espero, mas é que nos aviem
o dinheirinho. Um especialista garante que os próximos dias serão decisivos.
Protejam-se!
Dia 27. Filmei um delinquente
a passear no parque onde eu passeava. Mandei o vídeo para um grupo de
denunciantes. As autoridades já fecharam aquilo. Para comemorar, fui à varanda
começar a aprender guitarra para publicar uma fotografia no Instagram. Um
vizinho juntou-se imediatamente a cantar: “Vou aí e parto essa merda!”. Foi
giro.
Dia 29. O prof. Marcelo
terminou as lides domésticas e agora fala quatorze ou quinze vezes por dia nas
televisões. Adoro ouvi-lo. Explicou que há uma mola e que temos de pressionar a
mola. É lógico: na altura própria, solta-se a mola e ela desata aos pinotes até
cair no mar. Fui ao supermercado só para mandar bocas aos loucos que estavam no
supermercado.
Dia 30. Existem chalupas
interessados em acautelar a economia à custa de vidas humanas. Querem abrir os
negócios e matar-nos a todos. Ó suas cavalgaduras: o que é que a economia tem a
ver com as pessoas? Que parte da palavra “apocalipse” é que não perceberam? Não
sabem das tragédias de Espanha e de Itália? Maldito Trump! Fui ver uma dúzia de
trailers da Netflix para desopilar. Estes criminosos enervam-me. Um
especialista garante que os próximos dias serão decisivos. Cuide-se!
Dia 32. É de perder a
paciência: ao regressar de uma corridinha, vi um forasteiro passar à minha
porta a fingir que ia trabalhar. Se tivesse um tronco a jeito, desmontava-lhe a
cabeça ali. Salvar uma vida é salvar a humanidade inteira, seus psicopatas!
Dia 34. Indivíduos sem
serventia insistem em levantar o confinamento para salvar empregos. Felizmente,
o dr. Costa, considerado pelo “Expresso” a reencarnação de Churchill, avisou
que tal não acontecerá num mês, se calhar nem em dois, possivelmente nem em
três. À cautela, eu esperaria um ano, ano e meio, para que o vírus se aborreça
e vá à vida dele. Comecei a praticar zumba para publicar uma fotografia no
Instagram.
Dia 35. Fui à loja de
ferragens aqui perto para copiar uma chave. Cheguei a casa e denunciei o pulha
do proprietário à ASAE.
Dia 37. Sinto-me doente, mas
de raiva com os alienados que insistem em levantar em breve o estado de
emergência. Não entendem que o pico ainda vem longe? E que a seguir virá o
planalto? E a seguir uma planície rodeada por uma bela cordilheira? E que há
uma curva qualquer que convém achatar? Não estudaram? Estudassem.
Dia 39. Fui à varanda. Um
vizinho denunciou-me por ter ido à varanda. Odeio bufos.
Dia 40. Tarde a contemplar as
paragens policiais organizadas para as televisões. Os polícias enxovalham bem
os palermas dos condutores. Depois dão o lugar aos repórteres que os enxovalham
em dobro. É assim mesmo: rédea firme nessa cambada. Coloquei nas “redes” um
coração que reza: “Estamos separados para ficarmos mais unidos”. Um
especialista garante que os próximos dias serão decisivos. Pressionem a mola,
pá!
Dia 41. Continua o paleio da
retoma econômica. Querem limpar-me o sebo, é o que é. Se me fazem trabalhar,
prometo que eu é que limpo o sebo a alguém: ainda não vi um episódio completo
na Netflix. Maldito Trump! Salva-se o bom senso do dr. Costa, que não vai em cantigas,
mas vai aos programas da manhã elucidar as massas.
Dia 72. Finalmente terminei o
documentário sobre a Lady Gaga na Netflix: quatro estrelas. Comecei um curso de
Instagram online e tirei uma fotografia para publicar no Instagram.
Dia 143. Está-se bem. Comi a
última lata de atum. Haverá novidades do vírus? Os noticiários não falam no
assunto. A propósito, haverá ainda noticiários? E televisões? Há dias que a SIC
exibe uma mira técnica com o rosto do Costa Ribas.
Dia 215. Este mês depositaram-me
apenas metade do salário. Engano informático, com certeza. Tenho de ir ver o
que se passa. Mas não hoje, que um especialista garantiu que os próximos dias
serão decisivos. Onde estará o pico? Fiquem em casa!
Dia 365. Apeteceu-me ir à
varanda, mas aqui debaixo do viaduto não há varanda. Reparei ao longe numa
família faminta, a vaguear sem declaração autenticada pela entidade
empregadora. Denunciei o bando de pelintras aos tipos do outro lado do viaduto,
ali quem passa o esgoto. Vai correr tudo bem!
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
11-4-2020, 0h04
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