Muitos cadáveres foram vistos
na Síria, chegando a centenas, na semana passada e foi dito que foram todos
vitimados por gás venenoso. São em sua maioria civis não engajados na guerra
civil, incluindo mulheres, crianças e idosos. As fotos e vídeos circularam em
todo o Ocidente, não faltando aqueles que dizem se tratar de imagens falsificadas,
além dos que dizem que as armas químicas foram empregadas pelos rebeldes.
Todavia, a visão dominante da barbárie é a que afirma que foi o regime de
Bashar al Assad que cometeu a prática de genocídio.
O fato de os Estados Unidos terem
até agora evitado o envolvimento unilateral com a guerra civil na Síria, não
significa que a Casa Branca tenha qualquer simpatia para com o regime de Damasco.
Os estreitos laços Bashar al Assad com o Irã e a Rússia já são motivos mais do
que suficientes da desconfiança e de certa hostilidade dos Estados Unidos em
relação à Síria, não fosse também a atitude desse país para com os vizinhos do
Oriente Médio, principalmente em relação ao Líbano e Israel.
Desde que os americanos
ajudaram de modo efetivo a fazer recuar as tropas sírias do Líbano, Washington
parece ter aprendido a se preocupar não apenas com regimes hostis, mas também,
e principalmente, com o que pode advir de tais regimes. O Afeganistão, o Iraque
e a Líbia têm mostrado aos americanos que, depor um regime ruim, déspota e
sanguinário, o regime substituto pode ter que ser engolido mesmo sendo longe do
ideal, em termos dos interesses ocidentais.
O Ocidente parece que se
convenceu de que não se pode esperar que países que nunca conheceram uma
democracia antes, passem a praticá-la da noite para o dia. Nesses casos, a mudança
de regime costuma rapidamente enredar os Estados Unidos em guerras civis, cujos
resultados não valem a pena o preço pago pelas intervenções. A Rússia que o
diga, com o que sofreu no Afeganistão. No caso da Síria, os insurgentes são
muçulmanos sunitas cujas facções mais organizadas têm laços com a Al Qaeda e o
Hezbollah libanês.
Por outro lado, como muitas
vezes acontece, muitas pessoas nos Estados Unidos e na Europa, revoltadas com
os horrores da guerra civil, pedem aos Estados Unidos para que façam alguma
coisa. Os Estados Unidos relutam em atender a essas súplicas e a explicação
para isso é simples. Como disse antes, Washington não tem interesse econômico
ou político direto no que pode resultar a guerra civil na Síria, mas apenas o
interesse geopolítico de manter um equilíbrio de forças na região, de
preferência sem perder seus aliados tradicionais, como Egito, Arábia Saudita, e
Israel, entre outros. Isso ocorre, principalmente, porque todos os resultados
possíveis dessa guerra são ruins para a perspectiva americana na região.
Além do mais, é bem provável
que os que são mais enfáticos em dizer que os EUA devem fazer algo para impedir
a carnificina serão os primeiros a condenar o país quando tal ação começar a resultar
em mais mortes para parar o genocídio. O fato é que não se acaba uma guerra
civil com flores e palavras bonitas e qualquer intervenção vai gerar mais
mortes, talvez em maior número do que seria ocasionada pela não intervenção.
As Linhas Vermelhas de Obama
Assim sendo, ao dizer que os
EUA não se envolverão unilateralmente na Síria, Obama adota uma postura
compreensivamente cautelosa, a mostrar que, mais do que intervir diretamente no
teatro de operações da guerra civil, o melhor é tentar limitar a capacidade de
ação de Damasco, seja pelo estabelecimento de uma zona de exclusão aérea, seja
por um bloqueio que impeça o regime de Assad de respirar. Tal atitude,
entretanto, pode mudar caso o ditador sírio intensifique o emprego de armas
proibidas pelo consenso internacional e, mesmo assim, caso haja o aval da ONU
para uma intervenção militar da OTAN.
Obama afirma com grande confiança
que a América não é obrigada a intervir sozinha, assinalando que, afinal de
contas, o presidente sírio Bashar al Assad já sobreviveu a dois anos de guerra
civil e está longe de ser derrotado. A única coisa que poderia derrotá-lo seria
uma intervenção estrangeira, especialmente dos Estados Unidos e seus aliados da
OTAN. No entanto, presume-se que Obama
não faça nada disso, a não ser se solicitado por uma quase unanimidade do
Conselho de Segurança da ONU. O custo de tal ação fará falta à economia
americana que começa a se recuperar de uma crise que começou em 2008.
Al Assad é um homem cruel e não
hesitaria em usar armas químicas contra a maioria sunita, caso se sinta
compelido a fazê-lo para garantir a permanência da minoria alauíta no poder. Mas
é também um homem muito racional e só usaria armas químicas se elas fossem a
sua única opção. No momento, é difícil ver uma situação desesperadora que possa
tê-lo feito decidir usar armas químicas e se arriscar à ira internacional ou a
reprovação de seus aliados tradicionais como a Rússia e o Irã.
Seus adversários são
igualmente cruéis e impiedosos, e não é nenhum absurdo imaginá-los a usar armas
químicas para forçarem os Estados Unidos – leia-se o Ocidente – a intervir e
destituir al Assad. Mas a capacidade dos sunitas em conseguir e usar armas
químicas parece pouco certa, além do fato de que, se isso ficar evidente, poderia
custar-lhes todo o potencial apoio ocidental e mundial. O cenário é tão incerto
que tudo é possível, ou seja, desde o fato de que chefes militares de baixa de
al Assad usem armas químicas, sem o seu conhecimento e talvez até contra a sua
vontade, até o fato de o Hezbollah estar provendo essas armas aos insurgentes
sírios. É possível, também, que o número de mortes tenha muito menor do que o propalado
e que algumas das fotos sejam de fato falsificadas.
Em termos de Oriente Médio, o
Ocidente é sempre o último a saber da verdade, mas o mais importante é que os
principais governos, incluindo o britânico e francês, estão alegando que al
Assad realizou o ataque. Por isso, o Secretário de Estado John Kerry dos EUA
fez um discurso, em 26 de agosto último, construindo claramente o caso de uma
resposta militar, e referindo-se ao ataque químico do regime de Damasco como
"inegável" e dizendo que a avaliação EUA, até agora, é "baseada
em fatos".
Al Assad, no entanto,
concordou em permitir que os inspetores da ONU examinem o local da chacina. No
final, os que se opõem a al Assad afirmam que seus prepostos tiveram tempo de esconder
as provas e vestígios de sua culpa, e, claro, os insurgentes vão dizer a mesma
coisa. Se estes são culpados, mais do que as forças de Assad, será difícil aos
inspetores determinar isso, por não haver evidências conclusivas.
Quem quer que afirme estar
dizendo a verdade, provavelmente, estará também mentindo em maior ou menor
extensão, dada a politização do assunto na Síria. No entanto, a história
emergente dominante é a de que foi al Assad quem perpetrou o ataque, matando
centenas de homens, mulheres e crianças, e, com isso, cruzou a “linha vermelha”
a que Obama se referiu há um ano como o limite da impunidade.
Em outras épocas, talvez, os
Estados Unidos já tivessem interferido e até derrubado a dinastia Assad, mas
isso hoje tem um preço salgado e nenhuma contrapartida econômica. Então Obama
decidiu levar a questão às Nações Unidas e, caso o Conselho de Segurança aprove
a intervenção ocidental, os americanos querem que isso seja feito pela OTAN,
embora os EUA sejam a parte que arcaria com o maior custo.
Obama vai fazer um esforço
para mostrar que ele está agindo com o apoio da ONU, mas ele sabe que esse
apoio é problemático. Os russos, aliados da al Assad e opositores de
intervenções militares autorizadas pela ONU, vão vetar qualquer proposta de
intervenção. Os chineses – que não estão perto de al Assad, mas também se opõem
às intervenções sancionadas pela ONU – provavelmente vão cerrar fileiras com os
russos. Sabendo ou não sabendo quem realmente usou as armas químicas contra a
população indefesa, esses dois países devem vetar qualquer ação militar na
Síria.
O fato, pois, de Obama levar o
caso para a ONU, só tem a finalidade de ganhar tempo e tirar da América o peso
da responsabilidade de uma eventual intervenção externa na Síria. No campo das
palavras, a cautela não é tanta, uma vez que a Casa Branca declarou neste
domingo passado que já é tarde demais para a Síria autorizar as inspeções. Se
esse discurso for mantido por Obama, a dureza dos EUA pode desembocar numa real
intervenção militar na Síria, quer seja ou não aprovada por Rússia e China.
As Consequências
de uma intervenção na Síria e mais além
Nesse caso, o problema deixa
de ser apenas a questão da Síria. A afirmação americana praticamente obriga uma
intervenção. Se não agirem quando há uma violação clara da situação, a chance
de uma guerra com outros países, como a Coréia do Norte e o Irã, por exemplo,
aumenta para a administração Obama.
Partindo da possibilidade de
os Estados Unidos conseguirem refrear o belicismo de países como a Síria, sem terem
que ir à guerra – o que indica que haverá uma intervenção apenas indireta –,
permite que outros países tratem de evitar cruzar a “linha vermelha”. Se tais países
passarem a acreditar que os EUA estão realmente a blefar, então a possibilidade
de erro de cálculo sobe. Washington poderia emitir uma linha vermelha, cuja
violação não poderia tolerar, como um míssil com armas nucleares da Coréia do
Norte, mas, por outro lado, isso seria apenas mais uma ‘Síria’ a cruzar tal
linha. Washington teria que atacar de forma desnecessária, caso não estivesse
blefando sobre a Síria.
Considerando que russos e
iranianos têm investido muito no apoio a al Assad, caso haja um ataque
americano a Damasco, ambos podem retaliar em âmbito local como global. Nesse
caso, ogivas nucleares provavelmente cairiam no colo dos aiatolás para dar-lhes
a tão sonhada capacidade de eliminar Israel do mapa, a não ser que Tel Aviv
faça isso antes com relação ao regime islamofascista persa.
Em Beirute já circulam boatos
de que o Irã teria recomendado ao Hezbollah que começasse a sequestrar americanos
caso os EUA ataquem a Síria. A Rússia, por sua vez, demonstrou no caso Snowden
uma atitude que Obama considera claramente como hostil. Um ataque americano à
Síria, portanto, deve estar preparado para alguma retaliação militar russa. Se esse
ataque não for rapidamente bem-sucedido, russos e iranianos vão ler isso como
fraqueza.
A Síria nunca foi um problema para
os interesses americanos na região, até o momento em que Obama declarou a tal “linha
vermelha”. Com isso o presidente americano elevou a importância da Síria de
modo artificial, não condizente com a realidade. Não porque a Síria seja fundamental
para os EUA, mas porque a credibilidade dos seus limites estabelecidos é que o são.
O problema de Obama é que a maioria dos americanos se opõe a uma intervenção
militar e o Congresso não está totalmente a favor de disso. Querem que o país
finque o pé em não ter que arcar com o grosso das ações militares e nem tenha
que suportar a crítica de que vítimas civis serão inevitáveis, acidentes e
crimes que fazem parte da guerra, independentemente da pureza de qualquer intenção
humanitária.
A questão torna-se, portanto, a
de saber se os Estados Unidos e a nova coalizão estarão dispostos vai fazer se
a tal “linha vermelha” for ultrapassada. A fantasia é a de que uma série de
ataques aéreos, destruindo apenas a armas químicas, será tão perfeitamente
executada que ninguém será morto, exceto aqueles que merecem morrer. Mas é
difícil distinguir a alma de um homem a partir de 10.000 pés de altura. Haverá
mortes e os Estados Unidos acabarão sendo responsabilizados por elas, pois esse
é um filme que todos já assistiram antes. O que decidirem fazer, de agora em
diante, servirá como parâmetro, positivo ou negativo, para os demais países que
decidirem cruzar essa “linha vermelha” dialética.
A falta de clareza com relação
a uma eventual intervenção militar na Síria faz com que seja praticamente
impossível se avaliar a dimensão militar não apenas da missão em si, mas também
dos desdobramentos que se seguirão a ela. O lógico é querer que os depósitos de
armas químicas sejam destruídos com um mínimo de sacrifício de vidas humanas,
mas é difícil determinar onde se situam todos os depósitos dessas armas.
Considerando que, por questões de segurança, elas estejam no subsolo, o
problema fica ainda muito maior para a inteligência americana.
Entre elementos da
inteligência, cogita-se de ataques com mísseis de cruzeiro limpos, mas não está
claro se estes carregam explosivos suficientes para penetrar alvos minimamente
endurecidos. Aeronaves levariam munições mais substanciais e é possível que bombardeiros
estratégicos ataquem os alvos de fora do país. Mesmo assim, a avaliação de danos
de batalha é difícil de fazer. Como se pode saber se os alvos – depósitos de produtos
químicos – continham realmente armas químicas e se elas, lá dentro, foram realmente
destruídas?
Além disso, há muitas
instalações e muitas delas estão propositalmente perto de alvos civis e muitas
munições se desviarão do alvo. Os ataques poderiam, afinal, matar mais gente do
que matariam as armas químicas armazenadas por seu uso. E, finalmente, tal ataque
significará para al Assad usar todas essas armas o quanto puder, pois ele estaria
pagando o preço de usá-los, e seria um contracenso não usá-las à vontade.
Em si, a guerra contra as
armas químicas é insana para Obama, que diz que o problema não é a arma química,
mas, na sua definição desta guerra, e o que seria a existência de um regime que
usa armas químicas. É difícil imaginar como um ataque contra armas químicas
pode evitar um ataque contra o regime – e os regimes não são destruídos no ar.
Isso requer tropas. Além disso, os regimes que são destruídos devem ser
substituídos, e não se pode supor que o regime que sucederia o de al Assad será
grato ou não a quem o depôs. É preciso apenas lembrar os xiitas no Iraque, que
comemoraram a queda de Saddam para, em seguida, se armarem para combater os
americanos que o destituíram.
Armar os rebeldes seria útil
apenas se uma campanha aérea pudesse manter uma área de exclusão aérea sobre o
território sírio, o que parece ser de menor risco e de menos sacrifício humano.
O problema é que Obama já disse que vai armar os rebeldes, para anunciar esta
como a sua resposta pelo fato de al Assad ter cruzado a “linha vermelha”. Armar
os rebeldes também aumenta as chances de dar mais capacidade de combate aos
jihadistas na Síria.
Ao proclamar sua “linha
vermelha” com relação ao uso de armas químicas na Síria, Obama acenou para
aqueles que acreditam que os Estados Unidos têm a obrigação moral de pôr fim à
brutalidade. Fez também um gesto àqueles que não querem ir para a guerra
novamente. Se al Assad perpetrou os ataques, ou se foram os rebeldes, ou ainda
se alguém falsificou as imagens, não importa. A menos que Obama possa obter prova
consistente e indiscutível de que al Assad não fez uso dessas arma – e isso não
vai acontecer – o presidente americano terá que agir de acordo com o “princípio
da linha vermelha” ou mostrar que estava blefando. A complexidade incrível de
intervir numa guerra civil sem se atolar nela torna o processo ainda mais
desconcertante.
Obama enfrenta, agora, pela
segunda vez em sua presidência, o dilema de ter a guerra como uma opção. A primeira
vez foi na Líbia. O tirano está morto, mas o que se seguiu no país não agradou
os americanos e, temos que convir, a Líbia foi fácil em comparação com a Síria.
Agora, Obama deve intervir para manter sua credibilidade. Mas não há apoio
político nos Estados Unidos para tal intervenção. Ele deve tomar uma ação
militar, mas não aquela que faria com que os Estados Unidos parecessem brutais
e devem depor al Assad sem, contudo, substituí-lo por seus adversários. Obama nunca
pensou que al Assad seria tão imprudente, apesar de al Assad ser o que realmente
sempre foi, como é do consenso geral.
As cartas estão na mesa e é hora
do presidente jogar. Por isso, é difícil ver como ele jogará para evitar uma dispendiosa
ação militar e, ao mesmo tempo manter a sua credibilidade. Também é difícil ver
como ele poderá decidir por uma ação militar do outro lado do mundo sem que
isso cause uma revolta política contra ele em casa.
Título e Texto: George Friedman, Stratfor
Tradução: Francisco Vianna
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