quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O blefe de Obama

George Friedman
Muitos cadáveres foram vistos na Síria, chegando a centenas, na semana passada e foi dito que foram todos vitimados por gás venenoso. São em sua maioria civis não engajados na guerra civil, incluindo mulheres, crianças e idosos. As fotos e vídeos circularam em todo o Ocidente, não faltando aqueles que dizem se tratar de imagens falsificadas, além dos que dizem que as armas químicas foram empregadas pelos rebeldes. Todavia, a visão dominante da barbárie é a que afirma que foi o regime de Bashar al Assad que cometeu a prática de genocídio.

O fato de os Estados Unidos terem até agora evitado o envolvimento unilateral com a guerra civil na Síria, não significa que a Casa Branca tenha qualquer simpatia para com o regime de Damasco. Os estreitos laços Bashar al Assad com o Irã e a Rússia já são motivos mais do que suficientes da desconfiança e de certa hostilidade dos Estados Unidos em relação à Síria, não fosse também a atitude desse país para com os vizinhos do Oriente Médio, principalmente em relação ao Líbano e Israel.

Desde que os americanos ajudaram de modo efetivo a fazer recuar as tropas sírias do Líbano, Washington parece ter aprendido a se preocupar não apenas com regimes hostis, mas também, e principalmente, com o que pode advir de tais regimes. O Afeganistão, o Iraque e a Líbia têm mostrado aos americanos que, depor um regime ruim, déspota e sanguinário, o regime substituto pode ter que ser engolido mesmo sendo longe do ideal, em termos dos interesses ocidentais.
O Ocidente parece que se convenceu de que não se pode esperar que países que nunca conheceram uma democracia antes, passem a praticá-la da noite para o dia. Nesses casos, a mudança de regime costuma rapidamente enredar os Estados Unidos em guerras civis, cujos resultados não valem a pena o preço pago pelas intervenções. A Rússia que o diga, com o que sofreu no Afeganistão. No caso da Síria, os insurgentes são muçulmanos sunitas cujas facções mais organizadas têm laços com a Al Qaeda e o Hezbollah libanês.

Por outro lado, como muitas vezes acontece, muitas pessoas nos Estados Unidos e na Europa, revoltadas com os horrores da guerra civil, pedem aos Estados Unidos para que façam alguma coisa. Os Estados Unidos relutam em atender a essas súplicas e a explicação para isso é simples. Como disse antes, Washington não tem interesse econômico ou político direto no que pode resultar a guerra civil na Síria, mas apenas o interesse geopolítico de manter um equilíbrio de forças na região, de preferência sem perder seus aliados tradicionais, como Egito, Arábia Saudita, e Israel, entre outros. Isso ocorre, principalmente, porque todos os resultados possíveis dessa guerra são ruins para a perspectiva americana na região.

Além do mais, é bem provável que os que são mais enfáticos em dizer que os EUA devem fazer algo para impedir a carnificina serão os primeiros a condenar o país quando tal ação começar a resultar em mais mortes para parar o genocídio. O fato é que não se acaba uma guerra civil com flores e palavras bonitas e qualquer intervenção vai gerar mais mortes, talvez em maior número do que seria ocasionada pela não intervenção.

As Linhas Vermelhas de Obama
Assim sendo, ao dizer que os EUA não se envolverão unilateralmente na Síria, Obama adota uma postura compreensivamente cautelosa, a mostrar que, mais do que intervir diretamente no teatro de operações da guerra civil, o melhor é tentar limitar a capacidade de ação de Damasco, seja pelo estabelecimento de uma zona de exclusão aérea, seja por um bloqueio que impeça o regime de Assad de respirar. Tal atitude, entretanto, pode mudar caso o ditador sírio intensifique o emprego de armas proibidas pelo consenso internacional e, mesmo assim, caso haja o aval da ONU para uma intervenção militar da OTAN.

Obama afirma com grande confiança que a América não é obrigada a intervir sozinha, assinalando que, afinal de contas, o presidente sírio Bashar al Assad já sobreviveu a dois anos de guerra civil e está longe de ser derrotado. A única coisa que poderia derrotá-lo seria uma intervenção estrangeira, especialmente dos Estados Unidos e seus aliados da OTAN.      No entanto, presume-se que Obama não faça nada disso, a não ser se solicitado por uma quase unanimidade do Conselho de Segurança da ONU. O custo de tal ação fará falta à economia americana que começa a se recuperar de uma crise que começou em 2008.

Al Assad é um homem cruel e não hesitaria em usar armas químicas contra a maioria sunita, caso se sinta compelido a fazê-lo para garantir a permanência da minoria alauíta no poder. Mas é também um homem muito racional e só usaria armas químicas se elas fossem a sua única opção. No momento, é difícil ver uma situação desesperadora que possa tê-lo feito decidir usar armas químicas e se arriscar à ira internacional ou a reprovação de seus aliados tradicionais como a Rússia e o Irã.

Seus adversários são igualmente cruéis e impiedosos, e não é nenhum absurdo imaginá-los a usar armas químicas para forçarem os Estados Unidos – leia-se o Ocidente – a intervir e destituir al Assad. Mas a capacidade dos sunitas em conseguir e usar armas químicas parece pouco certa, além do fato de que, se isso ficar evidente, poderia custar-lhes todo o potencial apoio ocidental e mundial. O cenário é tão incerto que tudo é possível, ou seja, desde o fato de que chefes militares de baixa de al Assad usem armas químicas, sem o seu conhecimento e talvez até contra a sua vontade, até o fato de o Hezbollah estar provendo essas armas aos insurgentes sírios. É possível, também, que o número de mortes tenha muito menor do que o propalado e que algumas das fotos sejam de fato falsificadas.

Em termos de Oriente Médio, o Ocidente é sempre o último a saber da verdade, mas o mais importante é que os principais governos, incluindo o britânico e francês, estão alegando que al Assad realizou o ataque. Por isso, o Secretário de Estado John Kerry dos EUA fez um discurso, em 26 de agosto último, construindo claramente o caso de uma resposta militar, e referindo-se ao ataque químico do regime de Damasco como "inegável" e dizendo que a avaliação EUA, até agora, é "baseada em fatos".
Al Assad, no entanto, concordou em permitir que os inspetores da ONU examinem o local da chacina. No final, os que se opõem a al Assad afirmam que seus prepostos tiveram tempo de esconder as provas e vestígios de sua culpa, e, claro, os insurgentes vão dizer a mesma coisa. Se estes são culpados, mais do que as forças de Assad, será difícil aos inspetores determinar isso, por não haver evidências conclusivas.

Quem quer que afirme estar dizendo a verdade, provavelmente, estará também mentindo em maior ou menor extensão, dada a politização do assunto na Síria. No entanto, a história emergente dominante é a de que foi al Assad quem perpetrou o ataque, matando centenas de homens, mulheres e crianças, e, com isso, cruzou a “linha vermelha” a que Obama se referiu há um ano como o limite da impunidade.
Em outras épocas, talvez, os Estados Unidos já tivessem interferido e até derrubado a dinastia Assad, mas isso hoje tem um preço salgado e nenhuma contrapartida econômica. Então Obama decidiu levar a questão às Nações Unidas e, caso o Conselho de Segurança aprove a intervenção ocidental, os americanos querem que isso seja feito pela OTAN, embora os EUA sejam a parte que arcaria com o maior custo.

Obama vai fazer um esforço para mostrar que ele está agindo com o apoio da ONU, mas ele sabe que esse apoio é problemático. Os russos, aliados da al Assad e opositores de intervenções militares autorizadas pela ONU, vão vetar qualquer proposta de intervenção. Os chineses – que não estão perto de al Assad, mas também se opõem às intervenções sancionadas pela ONU – provavelmente vão cerrar fileiras com os russos. Sabendo ou não sabendo quem realmente usou as armas químicas contra a população indefesa, esses dois países devem vetar qualquer ação militar na Síria.

O fato, pois, de Obama levar o caso para a ONU, só tem a finalidade de ganhar tempo e tirar da América o peso da responsabilidade de uma eventual intervenção externa na Síria. No campo das palavras, a cautela não é tanta, uma vez que a Casa Branca declarou neste domingo passado que já é tarde demais para a Síria autorizar as inspeções. Se esse discurso for mantido por Obama, a dureza dos EUA pode desembocar numa real intervenção militar na Síria, quer seja ou não aprovada por Rússia e China.

As Consequências de uma intervenção na Síria e mais além
Nesse caso, o problema deixa de ser apenas a questão da Síria. A afirmação americana praticamente obriga uma intervenção. Se não agirem quando há uma violação clara da situação, a chance de uma guerra com outros países, como a Coréia do Norte e o Irã, por exemplo, aumenta para a administração Obama.

Partindo da possibilidade de os Estados Unidos conseguirem refrear o belicismo de países como a Síria, sem terem que ir à guerra – o que indica que haverá uma intervenção apenas indireta –, permite que outros países tratem de evitar cruzar a “linha vermelha”. Se tais países passarem a acreditar que os EUA estão realmente a blefar, então a possibilidade de erro de cálculo sobe. Washington poderia emitir uma linha vermelha, cuja violação não poderia tolerar, como um míssil com armas nucleares da Coréia do Norte, mas, por outro lado, isso seria apenas mais uma ‘Síria’ a cruzar tal linha. Washington teria que atacar de forma desnecessária, caso não estivesse blefando sobre a Síria.

Considerando que russos e iranianos têm investido muito no apoio a al Assad, caso haja um ataque americano a Damasco, ambos podem retaliar em âmbito local como global. Nesse caso, ogivas nucleares provavelmente cairiam no colo dos aiatolás para dar-lhes a tão sonhada capacidade de eliminar Israel do mapa, a não ser que Tel Aviv faça isso antes com relação ao regime islamofascista persa.
Em Beirute já circulam boatos de que o Irã teria recomendado ao Hezbollah que começasse a sequestrar americanos caso os EUA ataquem a Síria. A Rússia, por sua vez, demonstrou no caso Snowden uma atitude que Obama considera claramente como hostil. Um ataque americano à Síria, portanto, deve estar preparado para alguma retaliação militar russa. Se esse ataque não for rapidamente bem-sucedido, russos e iranianos vão ler isso como fraqueza.

A Síria nunca foi um problema para os interesses americanos na região, até o momento em que Obama declarou a tal “linha vermelha”. Com isso o presidente americano elevou a importância da Síria de modo artificial, não condizente com a realidade. Não porque a Síria seja fundamental para os EUA, mas porque a credibilidade dos seus limites estabelecidos é que o são. O problema de Obama é que a maioria dos americanos se opõe a uma intervenção militar e o Congresso não está totalmente a favor de disso. Querem que o país finque o pé em não ter que arcar com o grosso das ações militares e nem tenha que suportar a crítica de que vítimas civis serão inevitáveis, acidentes e crimes que fazem parte da guerra, independentemente da pureza de qualquer intenção humanitária.

A questão torna-se, portanto, a de saber se os Estados Unidos e a nova coalizão estarão dispostos vai fazer se a tal “linha vermelha” for ultrapassada. A fantasia é a de que uma série de ataques aéreos, destruindo apenas a armas químicas, será tão perfeitamente executada que ninguém será morto, exceto aqueles que merecem morrer. Mas é difícil distinguir a alma de um homem a partir de 10.000 pés de altura. Haverá mortes e os Estados Unidos acabarão sendo responsabilizados por elas, pois esse é um filme que todos já assistiram antes. O que decidirem fazer, de agora em diante, servirá como parâmetro, positivo ou negativo, para os demais países que decidirem cruzar essa “linha vermelha” dialética.

A falta de clareza com relação a uma eventual intervenção militar na Síria faz com que seja praticamente impossível se avaliar a dimensão militar não apenas da missão em si, mas também dos desdobramentos que se seguirão a ela. O lógico é querer que os depósitos de armas químicas sejam destruídos com um mínimo de sacrifício de vidas humanas, mas é difícil determinar onde se situam todos os depósitos dessas armas. Considerando que, por questões de segurança, elas estejam no subsolo, o problema fica ainda muito maior para a inteligência americana.
Entre elementos da inteligência, cogita-se de ataques com mísseis de cruzeiro limpos, mas não está claro se estes carregam explosivos suficientes para penetrar alvos minimamente endurecidos. Aeronaves levariam munições mais substanciais e é possível que bombardeiros estratégicos ataquem os alvos de fora do país. Mesmo assim, a avaliação de danos de batalha é difícil de fazer. Como se pode saber se os alvos – depósitos de produtos químicos – continham realmente armas químicas e se elas, lá dentro, foram realmente destruídas?

Além disso, há muitas instalações e muitas delas estão propositalmente perto de alvos civis e muitas munições se desviarão do alvo. Os ataques poderiam, afinal, matar mais gente do que matariam as armas químicas armazenadas por seu uso. E, finalmente, tal ataque significará para al Assad usar todas essas armas o quanto puder, pois ele estaria pagando o preço de usá-los, e seria um contracenso não usá-las à vontade.
Em si, a guerra contra as armas químicas é insana para Obama, que diz que o problema não é a arma química, mas, na sua definição desta guerra, e o que seria a existência de um regime que usa armas químicas. É difícil imaginar como um ataque contra armas químicas pode evitar um ataque contra o regime – e os regimes não são destruídos no ar. Isso requer tropas. Além disso, os regimes que são destruídos devem ser substituídos, e não se pode supor que o regime que sucederia o de al Assad será grato ou não a quem o depôs. É preciso apenas lembrar os xiitas no Iraque, que comemoraram a queda de Saddam para, em seguida, se armarem para combater os americanos que o destituíram.

Armar os rebeldes seria útil apenas se uma campanha aérea pudesse manter uma área de exclusão aérea sobre o território sírio, o que parece ser de menor risco e de menos sacrifício humano. O problema é que Obama já disse que vai armar os rebeldes, para anunciar esta como a sua resposta pelo fato de al Assad ter cruzado a “linha vermelha”. Armar os rebeldes também aumenta as chances de dar mais capacidade de combate aos jihadistas na Síria.

Ao proclamar sua “linha vermelha” com relação ao uso de armas químicas na Síria, Obama acenou para aqueles que acreditam que os Estados Unidos têm a obrigação moral de pôr fim à brutalidade. Fez também um gesto àqueles que não querem ir para a guerra novamente. Se al Assad perpetrou os ataques, ou se foram os rebeldes, ou ainda se alguém falsificou as imagens, não importa. A menos que Obama possa obter prova consistente e indiscutível de que al Assad não fez uso dessas arma – e isso não vai acontecer – o presidente americano terá que agir de acordo com o “princípio da linha vermelha” ou mostrar que estava blefando. A complexidade incrível de intervir numa guerra civil sem se atolar nela torna o processo ainda mais desconcertante.

Obama enfrenta, agora, pela segunda vez em sua presidência, o dilema de ter a guerra como uma opção. A primeira vez foi na Líbia. O tirano está morto, mas o que se seguiu no país não agradou os americanos e, temos que convir, a Líbia foi fácil em comparação com a Síria. Agora, Obama deve intervir para manter sua credibilidade. Mas não há apoio político nos Estados Unidos para tal intervenção. Ele deve tomar uma ação militar, mas não aquela que faria com que os Estados Unidos parecessem brutais e devem depor al Assad sem, contudo, substituí-lo por seus adversários. Obama nunca pensou que al Assad seria tão imprudente, apesar de al Assad ser o que realmente sempre foi, como é do consenso geral.

As cartas estão na mesa e é hora do presidente jogar. Por isso, é difícil ver como ele jogará para evitar uma dispendiosa ação militar e, ao mesmo tempo manter a sua credibilidade. Também é difícil ver como ele poderá decidir por uma ação militar do outro lado do mundo sem que isso cause uma revolta política contra ele em casa.
Título e Texto: George Friedman, Stratfor
Tradução: Francisco Vianna

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