Jacinto Flecha
Depois de quase três horas em
torno de uma mesa de cerveja, meus quatro colegas e eu já havíamos percorrido
as novidades da nossa área profissional, as fofocas sobre os outros colegas, as
últimas piadas sobre o governo ineficiente, as dificuldades reais ou camufladas
da economia. Teriam ampliado muito os assuntos, se eu permitisse piadas
indecentes, perdesse tempo com futebol, etc. Eu tinha um motivo real para sair,
e anunciei minha intenção:
— Gente, eu preciso passar
pelo alfaiate, e já está quase na hora de ele fechar.
— Alfaiate?! Isso ainda
existe? Achei que fosse uma espécie em extinção.
— Em extinção, é verdade. Mas
ainda há alguns espécimes raros. E eles encontram gente de bom gosto como eu,
que valoriza essa mão-de-obra.
O meu uso de flechas não se
limita ao papel, e sei que uma cutucada como esta é muito útil para mudar o
rumo de uma gozação. Logo um dos colegas comentou:
— Agora estou entendendo por
que você anda sempre bem vestido.
— Eu achava isso tão evidente,
que nunca disse a vocês, mas sempre uso roupa sob medida. Tentei comprar roupa
feita, mas minha aparência ficou como a de um aleijado. Acabei dando-a para
alguém não tão exigente, e virei freguês de um bom alfaiate. Não me agrada nem
um pouco usar roupa tipo “o dono dela era maior”. Ou menor, ou mais gordo, ou
mais magro. Ou até mais corcunda, como aquele de Notre Dame… acho que se
chamava Quasímodo.
Um colega mais espirituoso
esclareceu:
— É que a moda virou quase
moda — ou quasímoda, se você preferir.
Um dos amigos, com formação em ciências exatas, ponderou:
Um dos amigos, com formação em ciências exatas, ponderou:
— Não consigo entender essa
espécie de milagre que as fábricas de roupa fazem. Cada homem, com seus quatro
membros, barriga, pescoço, etc., existe em três dimensões — altura, largura e
profundidade — e cada dimensão varia numa faixa muito ampla, gerando inúmeras
combinações. No entanto, com poucos números disponíveis as fábricas conseguem
atender às medidas de todo mundo.
— Atender, atendem, mas eu não
diria que satisfazem. As pessoas hoje não são exigentes, não se importam se
está sobrando na altura, faltando na largura, enrugando na profundidade. Tenho
visto fotos de desfiles onde aquelas modelos esquálidas usam roupas lamentáveis,
mas elogiadas como requintes da próxima estação.
E o das ciências exatas
completou:
— As fábricas já viciaram os
compradores, tornando-os pouco exigentes. Em certas peças, só produzem tamanhos
pequeno, médio e grande, insuficientes para corpos tão diferentes. Quanto ao
preço, é tanto maior quanto menos tecido usaram. Nem preciso dizer que o tecido
se reduz sempre. Gradualmente, Intencionalmente, coletivamente, como quem
recebeu uma palavra de ordem…
— Onde as pessoas não exigem
boa qualidade, não é possível progresso autêntico, pois até o conforto e
aparência pessoal se tornam bens desprezíveis ou inatingíveis. Elogia-se muito
o progresso técnico, mas em muitos aspectos as pessoas eram mais bem servidas
antigamente.

— Por exemplo, durante muito
tempo eu sofri com diversos tipos de sapatos comprados em loja, que sempre me
apertavam em algum lugar, ou então havia sobra no bico e eles se deformavam.
Resolvi encomendar uma forma própria, e acabaram-se os meus problemas de dor
nos pés.
— Você então usa sapatos
feitos à mão, com forma especial?
— Exatamente. Veja só este par
aqui. Bonito, confortável, e não acaba nunca, pois é feito com o bom e
tradicional cromo alemão. Sempre do jeito de que eu gosto. É claro que as
fábricas de sapatos e roupas não têm nenhum interesse em incentivar bons
costumes como os meus. Mas estou muito satisfeito, e ainda dou trabalho a quem
merece, gente que procura tornar seus produtos cada vez melhores.
A conversa se espichou durante
uns bons copos de cerveja, e acabei deixando o alfaiate para o dia seguinte.
Ele tomou com naturalidade minha falta da véspera, agradecendo-me quando contei
como defendi a profissão dele.
Título, Imagens e Texto: Jacinto Flecha, ABIM, 17-04-2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-