Jacinto Flecha
Não me lembro de alguém
ter-me perguntado, quando eu frequentava o grupo escolar, em qual profissão eu
gostaria de trabalhar quando crescesse. Mas se algum curioso quisesse saber a
resposta, provavelmente ouviria algo assim: Quero trabalhar em qualquer coisa
que não dê trabalho.
Esta introdução pouco
autoelogiosa poderia levar alguns a imaginar-me um preguiçoso incorrigível,
vagabundo. Bem longe da verdade estaria essa impressão. Nunca fui preguiçoso,
mas aquela minha provável resposta explicava-se pelos meus escassos
conhecimentos sobre trabalho, limitados então ao uso de instrumentos como
enxada, machado, picareta, serrote, foice. Numa visão retrospectiva, posso
confirmar que nunca me entusiasmariam trabalhos movidos a músculos, suor,
calos, mas era quase só isso que eu via por lá. Conheci depois trabalhos mais
importantes e menos hercúleos, como o de manusear minha caneta enquanto escrevo
uma crônica.
A importância do trabalho
raramente é proporcional ao suor que ele produz. Mesmo sendo o instrumento uma
leve caneta, pode ser até mais cansativo. Com a tecnologia moderna, o trabalho
pesadão foi transferido para as máquinas; e o que já podemos lamentar, neste
nosso mundo desequilibrado, é o excesso de redução do trabalho. Parece
contraditório isso, mas vou explicar-lhe.
Começo por lembrar que as
máquinas, geralmente fabricadas para substituir ou reduzir o trabalho humano,
vêm assumindo papel cada vez mais importante. Muitas censuras se poderiam fazer
ao modo como elas realizam essa substituição, mas quero apenas mostrar que há
limites para isso. Difíceis de estabelecer, mas existem. Farei uma tentativa de
exemplificação, sem a pretensão de esgotar o assunto.
Qualquer um sabe que os
automóveis vêm sendo aperfeiçoados desde os primeiros modelos. Quem conheceu a
manícula (aquela manivela usada para iniciar o funcionamento do motor),
certamente não dispensaria hoje a ignição eletrônica. Muitos outros
dispositivos dos carros modernos quase não são percebidos. Facilitam nossa
vida, e só se dão a conhecer quando param de funcionar. Podem até paralisar o
veículo, e enquanto isso ficamos à mercê da rede autorizada.
Geralmente os dispositivos
novos vão entrando, sem pedir licença. Quando tomam conta do pedaço, é difícil
tirá-los de lá. Ninguém precisava deles, mas tornam-se indispensáveis depois
que entram. Por exemplo, até algum tempo atrás os taxistas conheciam todas as ruas,
trajetos, desvios, acessos, mas um brinquedinho chamado GPS está dispensando e
reduzindo essa habilidade invejável. Um sabe-tudo prepotente vai mandando, por
meio do aparelhinho: Vire à direita na próxima rua; siga em frente até
o viaduto; vire à esquerda… Antes ele sabia tudo isso, por dever de
ofício, e agora se submete às ordens ditatoriais de um sabe-tudo digital. Eis
aí mais um item da decadência universal. Perdendo essa habilidade, o taxista
perde ou reduz também sua capacidade de atender todos os clientes com presteza
e rapidez, informar o caminho a quem está perdido numa metrópole, encurtar ou
simplificar trajetos, etc.
A última referência do
parágrafo anterior me lembra uma economia que fiz, por conhecer melhor o
trajeto do que o GPS. Moro em um edifício de esquina (rua A com rua B, para
facilitar). Tomei um taxi, indiquei o endereço, o motorista digitou no GPS, e
tudo foi bem até uma esquina da rua B, a um quarteirão da minha residência.
Porém a entrada do edifício fica na rua A, e o sabe-tudo mandava dar uma volta
de cinco quarteirões (há mãos e contra-mãos), que nos deixaria diante da
entrada. A despesa aumentaria pouco, mas ordenei entrar pela rua B, percorremos
só um quarteirão até a esquina da rua A, e lucrei ainda o prazer de contrariar
o sabe-tudo. Minha admiração pelo progresso não inclui a aceitação de erros dos
sabe-tudo.
Estão em fase final os testes
de carros que dispensam motoristas. Enquanto o sabe-tudo digital executa o
trajeto que alguém lhe deu, pode-se até dormir. Mas eu não dormiria tranquilo,
sabendo que de fato o sabe-tudo não sabe tudo, e é tão falível
quanto os seus programadores. Quem tem confiança ilimitada na tecnologia pode
assumir as consequências, mas não me inclua nesse procedimento irresponsável.
Todos se acostumam a não
saber, não aprender, e a imbecilidade coletiva avança a passos largos. Se esses
brinquedinhos digitais nos dispensam de pensar, a consequência é ficar inativa
uma área do cérebro feita para ser usada. E ela se atrofia, como acontece com
os músculos de um braço imobilizado. É isso o que você quer para o seu futuro,
para o futuro da humanidade? Não quero ser vítima dessa atrofia mental
comandada pelos sabe-tudo. Suspeito até que eles mesmos já estão atingidos por
essa atrofia. Confiar em gente assim?! Atrofiar meu próprio cérebro!?!
Leitores pouco familiarizados
com minhas diatribes contra brinquedinhos digitais poderiam julgar-me
retrógrado, desligado do progresso, aferrado a métodos antiquados. Bem ao
contrário, estou pensando no futuro, muito à frente do nosso tempo. E vejo que,
sem perceber, caminhamos para uma ditadura digital global, invisível.
Como cidadão que nasceu analógico, tenho todo o direito de recusar e hostilizar
a ditadura digital, ou digitadura. Contesto os objetivos
inconfessáveis dos sabe-tudo digitais, e recuso em caráter definitivo essa
digitadura em implantação.
Esgotou-se o meu espaço de
hoje, mas prometo voltar ao assunto.
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