terça-feira, 11 de outubro de 2016

Os portugueses só não ganham juízo

A humanidade ganha um homem de "causas" e nós não perdemos nada
Alberto Gonçalves
Em 2011, a Assembleia Geral da ONU dispensou um minuto de silêncio à morte de Kim Jong-il, o divertido maluquinho que mandava na Coreia do Norte. Vaclav Havel, que morreu no dia seguinte e era dos raríssimos estadistas contemporâneos que justificavam o epíteto, não obteve igual "honra". Eis um entre incontáveis exemplos que recordam, aos muito esquecidos, a circunstância de, por definição, a ONU congregar maioritariamente ditaduras e, logo, constituir um antro evitável por qualquer pessoa decente.

É por isso que a extraordinária histeria em redor da nomeação de António Guterres [foto] para secretário-geral me soou mais a uma saraivada de insultos involuntários do que à aclamação colectiva que pretendeu ser. O homem certo no lugar certo, nas palavras do dr. Costa? Não é preciso ofender. É verdade que o eng. Guterres deixou, pelo menos aqui, um embaraçoso rasto de inépcia. Mas nem o descontrolo decisivo da despesa pública nem o poder que concedeu a um grupinho de pequenos e médios malfeitores transformam o eng. Guterres no líder ideal de uma organização habituada a relativizar a opressão e o terrorismo. Embora o eng. Guterres não merecesse grande coisa, a ONU merecia bastante pior.


Dado tratar-se de Portugal, porém, estas insignificâncias não vêm a propósito. Enquanto só faltou passear o homem por Lisboa em carro, ou autocarro, aberto, o discurso oficial e o discurso oficioso decidiram fingir - ou, em casos terminais, acreditar - que a ONU é respeitável, que o eng. Guterres recebeu uma prodigiosa distinção, que os seus compatriotas devem rebentar de orgulho e que o país alcançou a glória imortal.

Para já, o objectivo é denunciar os traidores que não desejavam ardentemente a vitória do novo herói nacional. No mínimo, denuncie-se Durão Barroso, que pelos vistos apoiou a candidata búlgara e que possui um carácter baixo a ponto de em tempos ter abandonado o nosso querido país a troco de uma carreira de "prestígio" no "estrangeiro": o eng. Guterres nunca, nunca, nunca faria semelhante. Depois, resta--nos passear a soberba patriótica, inchados por integrar o restrito Olimpo onde cabem o Gana, a Birmânia e o Peru, lugares de origem de alguns dos antecessores do eng. Guterres. O eng. Guterres partilha com cada português a proeza de subir ao "topo do mundo". Esperemos que partilhe o salário.

Tudo isto não significa que o eng. Guterres não possa desempenhar um papel relevante na ONU. O prof. Freitas do Amaral, especialista em assuntos, lembra que o secretário-geral eleito é dado ao "diálogo", capaz de dialogar permanentemente "com todos os países e organizações envolvidos em cada problema", da resolução de conflitos ao combate à pobreza e à luta contra as doenças. Não duvido. Se não mudou desde 2002, o eng. Guterres dialoga tanto que, à conta do aborrecimento, arrisca erradicar dois terços das misérias da Terra. Cansados de o ouvir, inimigos ancestrais acordarão tréguas sem termo, vírus invencíveis farão as malas a caminho de destino indeterminado, e mesmo os pobres perceberão que o seu sofrimento até aí era comparativamente tolerável.

Em suma, a humanidade ganha um homem de "causas" e nós não perdemos nada: é também por causa do eng. Guterres que estamos assim. Como dizia a manchete do Público, todos ganhamos. Excepto juízo. 
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 9-10-2016

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