Alberto Gonçalves
A greve mostrou por uns dias o que é
habitar a Venezuela. O nosso “espaço público”, da saloiice do poder à
subserviência dos “media”, mostra-o constantemente. E é ridículo perder tempo a
lamentá-lo.
Domingo.
Tal como o governo, passei o
fim de semana – e as semanas anteriores – a ignorar o anúncio de greve de 600
ou 800 camionistas de “materiais perigosos”. Tal como o governo, julguei que os
materiais perigosos se referiam a adeptos da bola, devoluções do último cd de
Fernando Tordo ou jihadistas refugiados. Tal como ao governo, não me pareceram
produtos cuja falta eu lamentasse excessivamente.
Segunda-feira.
Aumentaram de frequência as
notícias sobre a greve, que afinal se prende com a distribuição de
combustíveis. O governo continuou indiferente. Eu também. O governo porque faz
da inépcia um modo de vida. Eu porque, sempre que assino meia dúzia de linhas
em prol do automóvel, apanho com a indignação dos fervorosos adeptos das
ciclovias, dos veículos eléctricos e sobretudo dos transportes públicos, a
acreditar nas televisões o meio favorito de ministros e autarcas – além disso,
gozam de descontos e, garantem-me, são imensamente práticos.
Tomei café numa bomba de
gasolina em pleno funcionamento e nem me ocorreu abastecer. A que propósito? As
recorrentes reações ao meu apreço por carros criaram-me a impressão de que
apenas uma ínfima minoria dos meus compatriotas apreciaria deslocar-se dessa
anacrónica maneira. Seriam, à minha imagem e semelhança, criaturas poluentes e
ultrapassadas, paradoxalmente por bicicletas partilhadas, calhambeques híbridos
e “metros” de superfície que se movem a 20 km/h. Por isto ou por aquilo,
convenci-me de que estas eram as formas de locomoção da população em peso,
consciente dos “desafios da mobilidade” e convertida à necessidade ambiental de
demorar hora e meia entre Matosinhos e Campanhã.
Quarta-feira de manhã.
Acordei com a revelação de que
os meus compatriotas são, com todo o respeito, uns hipócritas sem remédio.
Tanta lengalenga alusiva aos horrores dos combustíveis fósseis e, à primeira
(ou segunda, ou, vá lá, à décima sétima) suspeita de que os combustíveis
fósseis podem escassear, lançam-se aos trambolhões nos respectivos postos, a
fim de atestar o carrinho, que bom jeitinho lhes dá. Hipócritas e ponderados,
já que, para evitar cortes no fornecimento de um produto, não há melhor do que
correr aos magotes a adquiri-lo. Tal como o governo, aqui comecei a
preocupar-me. O governo, que sempre jurou não ter nada a ver com o problema,
passou a tentar resolver o problema, sinal claro de que o problema não se
resolveria tão cedo e que, com sorte, arriscava agravar-se. Nos intervalos das
“selfies” em velórios e batizados, o prof. Marcelo disse umas frases no seu
estilo próprio, mas, francamente, não prestei atenção e, à excepção do
comentador Marques Mendes, duvido que haja no planeta criatura que preste.
Quarta-feira de tarde.
Após longa hesitação e
moderada preguiça, parti finalmente em busca de gasóleo, mistela que, em janeiro,
o ministro do Ambiente previu abolida em “quatro ou cinco anos”. Aparentemente,
queria dizer meses: nos raros postos abertos, a venda limitava-se à gasolina,
além de tabaco e vitualhas. Esgotadas as lojas óbvias, atirei-me em busca das
obscuras. Com a ajuda do GPS e de indomável coragem, descobri bombas em lugares
ermos. Infelizmente, outros descobriram-nas primeiro. A saga ameaçava terminar
sem glória quando, em território ausente dos mapas, encontrei um
estabelecimento com gasóleo, ou uma promessa do dito. Embora estivesse “no
casco” (cito), o funcionário sugeriu que eu esperasse na fila. A fila era de
dois carros. Esperei um instante, ou o tempo suficiente para que um sujeito se
plantasse junto à minha porta aos gritos: “Não vai meter gasoil! Não vai meter
gasoil!” Baixei o vidro e respondi com serenidade: “Hã?” O sujeito repetia:
“Não vai meter gasoil!” Olhei em redor à cata de um tradutor e percebi que a
fila não era de dois carros: era de uns trinta, e que o condutor de um deles
ficara irado face ao desplante com que os ignorei. Presumi que o “casco” e a
minha paciência não resistiriam a tamanha procura e arranquei de regresso a casa.
Principiei a odisseia com autonomia para 60 km. À chegada, mal dava para 20.
Quarta-feira à noite.
Por motivos óbvios, permaneci
no remanso do lar, a aprender os meandros da situação. Aprendi, por exemplo,
que, avesso a interferir em questões do foro privado, o governo interferira
para decretar racionamento e “serviços mínimos”. Aprendi que os mesmos se
restringiam a Lisboa e ao Porto, na acertada suposição de que o interior se
fornece em Espanha, aliás o que só os maluquinhos não fazem há anos. Aprendi que
esta greve em particular é um ato vil, na medida em que não desfruta do aval da
CGTP e contesta o progresso com que a esquerda nos abençoou. Aprendi que a
autarquia lisboeta disponibilizou bicicletas ao povo, sob o divertido argumento
de que “estas têm o depósito cheio”. Aprendi que é infinita a resignação do
povo perante a prepotência. Aprendi, com a dona Catarina do BE, que a culpa
disto é da “troika”. Aprendi que, em simultâneo aos cérebros que se torce a ver
se dão mais, há cérebros que já nascem torcidos. E aprendi que o prof. Marcelo
voltou a emitir frases, ainda que com ele a aprendizagem seja ilusória.
Quinta-feira.
De manhã, a greve acabou,
graças a um governo que não podia fazer fosse o que fosse para que a greve
acabasse ou para prevenir os seus efeitos. À hora de almoço, naturalmente, as
bombas permaneciam vazias. De tarde havia “gasolina”, a euro e meio o litro.
Ajoelhei e agradeci ao dr. Costa.
Sexta-feira. O
“spin”, designação “fina” de propaganda, arrancou em grande. Avençados
disfarçados de opinadores condenaram a greve. Sociólogos disfarçados de
avençados condenaram o “aproveitamento político” da greve. E o DN, uma filial
disfarçada de zombie, chamou à “capa” (que não tem), um artigo (que não se lê),
assinado por uma “jornalista” (que não se enxerga). A manchete? “Oadvogado de Maserati que dirige os camionistas”. Por esquecimento, não
mencionaram o Fiat Punto do advogado que dirige o DN.
Epílogo. E é
assim. A greve mostrou por uns dias o que é habitar a Venezuela. O nosso
“espaço público”, da saloiice do poder à subserviência dos “media”, mostra-o
constantemente. É ridículo perder tempo a lamentar o buraco a que chegamos se
podemos aproveitar para temer o buraco a que haveremos de chegar. De carro ou
bicicleta, não vai demorar muito.
Notas de rodapé
1. Na Madeira, o acidente com um autocarro levou o vice-presidente
da região a esclarecer, com certo enfado, que o turismo local não seria afetado
por aqueles 29 alemães mortos. Claro que não: a população alemã é de largos
milhões, pelo que ainda sobraram muitos. E então ingleses, americanos,
espanhóis e franceses sobraram todos. Enquanto isso, o presidente madeirense,
que não emitiu um pio a propósito, foi dado em parte incerta num vago
“estrangeiro”, e depois no Dubai. Fez bem. Por um lado, evitou dizer
disparates. Por outro, apesar de lhe imitar a estratégia, não se deixou
fotografar em calções como o dr. Costa durante os incêndios. Um estadista que
ninguém vê: por mim, trocava já 300 estarolas do “continente” pelo dr.
Albuquerque. Quanto aos madeirenses, esses ingratos, suspeito que em setembro
trocarão o dr. Albuquerque por quem calhar.
2. Não sendo sequer remotamente cristão, tive pena do que aconteceu
a Notre-Dame. E tive ainda mais pena de que os escombros não tivessem desabado
em cima dos que, de uma maneira ou de outra, celebraram a tragédia.
3. Greta Thunberg, a criança sueca que inspirou milhares de crianças a marchar
contra o capitalismo de telemóvel em punho, apelou no Parlamento Europeu a que
“salvem [quem?] o mundo como salvaram [salvaram?] Notre-Dame”. Presumo que as
idades mentais da audiência e da oradora sejam equivalentes. Já os jornalistas
que chamam “ativista” a Greta são bastante mais jovens.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
19-4-2019
O vice-presidente do sindicato dos motoristas de matérias perigosas não ocupou palacetes para instalar a sede, não pediu licença aos “donos” dos trabalhadores, Arménio e Silva, se podia fazer greve, não veio do comité central do PC, nem da comissão nacional do PS ou dos TSD do PSD. É quanto basta para o regime o tratar praticamente como um pária a partir de um guião escrito pela jornalista Câncio. Et pour cause.
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